Resquícios do holocausto

Julgamento de tenente-coronel completa 50 anos

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1 de maio de 2011, 15h31

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo deste domingo (1º/5)

O livro O Holocausto, do historiador britânico Martin Gilbert, assim como outros que tratam exclusivamente desse tema, nas referências a personalidades nazistas o nome do tenente-coronel Oberstumbannführer Adolf Eichmann só perde em citações para seu chefe supremo, Adolf Hitler. Gilbert, assim como o cineasta Claude Lazmann, em seu caudaloso documentário Shoá, de oito horas de duração, deu voz aos sobreviventes da matança industrial promovida pelo nazismo e o testemunho deles reforçou a veracidade dos fatos, de resto descritos nos livros do genial Primo Levi ao contar a tragédia que as chaminés de Auschwitz e outros campos expeliam de seus fornos crematórios.

"Mandem o mestre em pessoa", determinou o chefe da SS, Heinrich Himmler, referindo-se a Eichmann, logo após as 11 divisões do Exército nazista invadirem a Hungria, em março de 1944, como o mais habilitado – competente e eficiente – para cumprir a ordem de vasculhar o país à procura dos 725.000 judeus, seus cidadãos.

Com a vitória soviética na frente oriental e a pressão dos aliados a partir do ocidente da Europa, a guerra já estava perdida. Mas havia os judeus. E, para isso, era necessário um especialista.

Eichmann tinha a experiência de oito anos como supervisor da questão judaica da SS e responsável pela execução da política de aniquilação dos judeus. Além disso, fora o expedito e diligente secretário da Conferência de Wannsee, em 20 de janeiro de 1942, realizada numa elegante mansão às margens do lago de mesmo nome, nos arredores de Berlim, que pertencera a uma rica família de judeus. Foi nessa reunião que se decidiu como executar a solução final do "problema" judaico.

Pois, neste mês de abril, há 50 anos, começava num tribunal instalado em Jerusalém, o julgamento daquele mestre, em pessoa, com direito a ser defendido com honorários pagos pelo governo israelense, pelo eminente advogado Robert Servatius, o mesmo que defendera vários criminosos de guerra, no Tribunal de Nuremberg, em 1946.

Foi provavelmente o mais importante julgamento da segunda metade do século passado. Dia 11, logo na abertura dos trabalhos, as acusações: responsabilidade pelo assassinato de milhões de judeus; ter confinado estes judeus em condições preparatórias para suas mortes; ter causado às suas vítimas graves danos físicos e morais; ter tomado iniciativas que resultaram na esterilização de judeus; responsabilidade pela escravidão, deportações e fome de milhões de judeus; ter perseguido judeus com base em princípios raciais; responsabilidade pelo confisco de propriedades judaicas com medidas desumanas envolvendo roubos e violências; ter praticado crimes de guerra; responsabilidade pela deportação de meio milhão de judeus poloneses, de 14 mil eslovenos, de milhares de ciganos e pela deportação e assassinato de 100 crianças checas na cidade de Lídice.

Quando a guerra terminou, cerca de 6 milhões de judeus haviam sido assassinados. A eficiente burocracia nazista à qual se deve, por exemplo, a encomenda da criação do holerite, registra 2 sobreviventes do campo de Belzec, 3 no de Chelmno, menos de 40 em Treblinka e 64 em Sobibor.

Ironicamente, o trabalho escravo possibilitou que milhares sobrevivessem no complexo Auschwitz-Birkenau. Além destes, mais famosos, havia outros campos de concentração dos quais só se ouviu falar durante o julgamento de Eichmann.

Como, por exemplo, o de Maly Trostenes, em Minsk, atual capital de Bielo-Rússia, e, durante a guerra, a importante cidade da Lituânia, para onde foram deportadas milhares de pessoas encarceradas no campo de trânsito de Theresienstadt, perto de Praga.

Eichmann fora capturado quase um ano antes do julgamento, num subúrbio de Buenos Aires, pelo Mossad – o serviço secreto externo de Israel – depois de exaustivas e cuidadosas investigações durante as quais se descobriu a existência de uma ampla e bem relacionada rede de proteção a antigos líderes nazistas que lhes providenciava passaportes, fugas, emprego em outros países e educação para os filhos.

Eichmann foi um dos beneficiários. Vários dos agentes que o prenderam fugiram da Europa em razão da ascensão do nazismo, e todos, invariavelmente, tiveram parentes entre suas vítimas. Mas receberam a orientação de que deveriam agir como profissionais, de preferência sem se deixar envolver pela emoção.

A partir do julgamento de Eichmann e dos depoimentos dos sobreviventes que contribuíram decisivamente para sua condenação à morte por enforcamento, a história do Holocausto ganhou nova dimensão porque passou a ser contada por suas vítimas e, ao mesmo tempo, testemunhas.

Pode parecer paradoxal mas, na mesma medida, surgiram os negacionistas, que fizeram fama negando a história documentada nos próprios registros alemães e na sua megalomania estatística. Alguns desses negacionistas são notórios antissemitas. Outros, são políticos de qualquer ideologia. Nesta tarefa, no entanto, o esmero de todos foi tal que se não conseguiam alterar a realidade se compraziam em mudar a versão.

O rastro de morte deixado por Eichmann não desapareceu com suas cinzas atiradas ao Mediterrâneo. Ele foi seguido, com os convenientes aperfeiçoamentos tecnológicos, nas ditaduras espalhadas pelo mundo, em processos de limpeza étnica, em guerras tribais e em todos os locais onde a desordem é sangrenta, a arbitrariedade é consciente e a humanidade é desumanizada. Como se tudo isso fosse absolutamente natural. Mas não é, não.

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