Idade da razão

Ministros do Supremo defendem PEC da Bengala

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30 de junho de 2011, 13h16

Oito anos depois de ter sido apresentada pelo senador Pedro Simon (PMDB-RS) ao Senado, a Proposta de Emenda Constitucional que aumenta a idade da aposentadoria obrigatória de servidores públicos de 70 para 75 anos dormita nos escaninhos da Câmara dos Deputados, a despeito de representar uma economia de R$ 20 bilhões para os cofres públicos em cinco anos.

Os números da economia foram apresentados por servidores públicos ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), na semana passada. Reunidos com Sarney, eles reclamaram que a PEC 457/2005, apelidada de PEC da Bengala, foi aprovada pelo Senado há seis anos, mas não andou com a mesma celeridade desde que chegou à Câmara. E, ao que tudo indica, não deverá andar tão cedo.

Um dos maiores defensores da proposta, o deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), afirmou à revista Consultor Jurídico que o texto não tramita por conta de um lobby contrário de juízes de primeira instância, que levariam mais tempo para ter a chance chegar aos tribunais por meio de promoções. "A proposta é boa e reflete a realidade atual do país. Quando esse limite etário foi fixado, há mais de 50 anos, a longevidade era outra", afirma Faria de Sá.

O deputado também reforça o argumento de que a aprovação da PEC traria grande economia aos cofres públicos. Somente este ano, Faria de Sá apresentou quatro requerimentos para que a proposta fosse incluída em votação pelo plenário. O último foi apresentado em 14 de junho. Nenhuma de suas solicitações foi atendida.

A ConJur procurou ouvir os deputados Marco Maia (PT-RS), presidente da Câmara dos Deputados, e Cândido Vaccarezza (PT-SP), líder do governo na Casa, sobre a possibilidade de votação do texto. Os dois estavam viajando, mas suas assessorias informaram que a matéria não tem sido colocada nas reuniões do colégio de líderes, onde se definem as prioridades e os projetos que devem ir à votação. Na gestão de Maia, de acordo com sua assessoria, nenhuma liderança de partido provocou a votação do texto.

Preço da experiência
Questionado pela ConJur, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, se mostrou um entusiasta da proposta. "É inteligente, principalmente no que se refere ao grau de eficiência do Estado", disse sobre o texto. Para o ministro, ao obrigar um servidor no auge de sua capacidade intelectual a se aposentar e contratar um novo funcionário ainda inexperiente, o Estado perde duas vezes: passa a pagar a aposentadoria do funcionário antigo que ainda tinha plena condição de trabalho e acumulado conhecimento e, ao mesmo tempo, o salário do jovem admitido.

"Isso traz prejuízos aos cofres públicos. Esse limite de idade era adequado para outro tempo, quando a medicina não tinha as ferramentas que tem hoje. Quantos ministros do Supremo já se aposentaram no auge de sua capacidade produtiva, completamente lúcidos e dando contribuições importantes para o tribunal?", questionou.

Peluso contou que o Ministério da Previdência já lhe apresentou números que mostram que a economia para o erário atingiria, de fato, a casa dos bilhões de reais. O presidente do STF lembrou que o ex-governador de São Paulo, André Franco Montoro, morto em 1999, desde a década de 1980 já defendia o aumento do limite imposto aos servidores públicos em seu mandato como senador.

O ministro Marco Aurélio também defendeu a ampliação do limite de idade para a aposentadoria compulsória. "Uma coisa é o servidor não estar apto a exercer o ofício. Neste caso, podem-se pedir exames de uma junta médica ou o próprio jogar a toalha. Outra coisa é obrigá-lo a deixar de trabalhar", afirmou à ConJur.

Marco Aurélio lembrou que escreveu, em 2002, um artigo intitulado O Brasil lugnagiano — o castigo da aposentadoria compulsória, contra a aposentadoria compulsória aos 70 anos, publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo. No artigo (leia a íntegra abaixo), o ministro lamenta a saída do colega Neri da Silveira do Supremo. "Recentemente, deparamos mais uma vez com um exemplo muito ilustrativo dos malefícios dessa despropositada aposentadoria compulsória: no último mês de abril, o ministro Néri da Silveira viu-se compelido a deixar a Corte Suprema do país por ter alcançado sábios 70 anos. Quem já se deleitou com a imagem magistral de um condor ganhando os céus jamais haverá de se conformar com o abate desse altivo pássaro, muito menos se em pleno voo", escreveu.

No mesmo texto, o ministro questiona: "Já pensou se essa desumana lógica houvesse cerceado a obra de Leonardo da Vinci, Machado de Assis, Handel, Villa-Lobos, Monet, Matisse, ou, para ser bem contemporâneo, a esplêndida carreira da nossa Fernanda Montenegro?"

Renovação necessária
Os argumentos não são capazes de demover as entidades de classe da magistratura e da advocacia da ideia de combater a proposta. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Ordem dos Advogados do Brasil são contrárias ao aumento da idade para a aposentadoria compulsória.

O presidente da Ajufe, Gabriel Wedy, diz que a renovação é necessária para que os tribunais não se transformem em cortes muito conservadoras, sem que se permita uma atualização da jurisprudência. "O juiz mais jovem traz ideias novas, arejadas para o Judiciário", disse. Wedy também afirma que o juiz jovem tem maior capacidade de produção do que os mais antigos, o que faz com que a Justiça seja mais célere. "Até por uma questão de condição física, a produtividade tende a ser maior entre os mais jovens", diz.

O juiz diz duvidar dos números apresentados pelos servidores ao presidente do Senado, de que a PEC geraria uma economia de R$ 20 bilhões em cinco anos. "Ainda que forem verdadeiros, juízes mais jovens julgam os processos de forma mais rápida e, no caso da Justiça Federal, arrecadam mais para os cofres públicos", conclui o presidente da Ajufe.

Para o presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcante Junior, "a PEC representa um obstáculo ao arejamento do Poder Judiciário e empecilho ao surgimento de novos valores na magistratura dos estados e dos tribunais superiores". Ophir opina que é importante para o Judiciário que ocorra a renovação: "Da mesma forma como acontece na democracia onde a alternância do Poder é um eixo em defesa da sociedade, essa renovação garante a possibilidade de haver uma oxigenação com a chegada de novos juízes. A renovação fortalece o caminhar da justiça".

O presidente da AMB, Nelson Calandra, também ataca a proposta. "Em muitos estados brasileiros, o magistrado de primeiro grau passa a vida profissional toda, mais de 30 ou 40 anos, à espera de uma promoção para o tribunal local. Se o limite de idade para aposentadoria for estendido, grande parte dos colegas jamais chegará ao tribunal. Isso provoca nossa objeção", afirmou.

Calandra afirmou que os juízes começam a trabalhar, em média, com 25 anos de idade e param aos 70 anos. "Ou seja, são 45 anos de trabalho dentro de uma estrutura de poder. Convenhamos, é um tempo mais do que razoável." Para o presidente da AMB, o que se deve fazer é um acompanhamento do magistrado para que ele não pare com todas as suas atividades, talvez permitir que ele continue colaborando com o tribunal de outras formas. Mas ele reafirma que aumentar a idade para a aposentadoria cristalizaria as cúpulas dos tribunais e prejudicaria a maior parte dos juízes.

Não é a opinião do presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso. "Não cristaliza. As promoções podem demorar um pouco mais, mas os juízes chegarão aos tribunais e também poderão, quando chegarem aos 70, contribuir mais em razão de sua experiência. Também serão beneficiados com a mudança. Todos ganham. Os juízes, o jurisdicionado e o Estado", concluiu Peluso.

Leia o artigo do ministro Marco Aurélio publicado em 2002 na Folha de S.Paulo:

O Brasil lugnagiano — o castigo da aposentadoria compulsória

No clássico “As Viagens de Gulliver”, Jonathan Swift, um dos mais satíricos escritores da língua inglesa, imagina um lugar — a terra dos lugnagianos — em que, uma ou duas vezes a cada geração, nascia uma criança cunhada com uma mancha circular vermelha na testa, símbolo da imortalidade. Estes seres especiais, por eternos, aos 80 anos tinham seus bens distribuídos aos descendentes, que de outra forma não os herdariam. Tristes, alijados, sua sina era acumular rancores e doenças, o que mais agravava as dores da velhice, sem que lhes aguardasse, porém, o alívio da morte.

No Brasil, parece que os legisladores se inspiraram nessa tenebrosa fantasia para marcar com uma espécie de terrível nódoa vermelha uma classe — os servidores públicos em geral e os membros da magistratura e do Ministério Público em particular. Estes, sabe-se lá por qual razão, aos 70 anos são considerados incapazes para continuar trabalhando na esfera pública, ou seja, sob remuneração do Estado, pouco importando se estejam no ápice de uma brilhante carreira ou no auge da capacidade produtiva.

Recentemente, deparamos mais uma vez com um exemplo muito ilustrativo dos malefícios dessa despropositada aposentadoria compulsória: no último mês de abril, o ministro Néri da Silveira viu-se compelido a deixar a Corte Suprema do País por ter alcançado sábios 70 anos. Quem já se deleitou com a imagem magistral de um condor ganhando os céus jamais haverá de se conformar com o abate desse altivo pássaro, muito menos se em pleno vôo.

Pois foi também de perplexidade a sensação que pairou sobre mim por algum tempo quando da saída do Ministro, secundada por uma série de insistentes e silenciosas perguntas: a que propósito, nos dias de hoje, serve a vetusta regra constitucional que sustenta a chamada “expulsória”? Não estaria visivelmente anacrônica essa norma, introduzida na Carta de 1946, em face dos avanços tecnológicos que alargaram em muito as expectativas de vida da população? (No meio acadêmico, alguns cientistas mais entusiasmados afirmam que, para um homem saudável de 40 anos, tal expectativa é, hoje, de 120 anos.) Não seria discriminatório um preceito que obstaculiza a atividade de determinados agentes políticos — os magistrados —, beneficiando com a liberalidade os demais, isto é, aqueles que integram os Poderes Executivo e Legislativo?

Por que se afigura pouco relevante as idades dos candidatos aos cargos eletivos, casos em que normalmente o peso dos anos testemunha a favor? Alguém já aventou a possibilidade de se retirar o mandato do Presidente da República, professor Fernando Henrique Cardoso, por haver atingido os 70 anos? (Entretanto, o ministro Maurício Corrêa, o próximo Presidente do Supremo Tribunal Federal, não poderá completar o mandato para o qual for eleito, já que 11 meses depois de assumir o cargo, “marcado” pela estranha “pecha”, terá de se aposentar. Forçosamente.) Por último, mesmo sem querer adentrar na espinhosa discussão acerca da inconstitucionalidade de certos dispositivos constitucionais, alguém poderia explicar por que, em se tratando dessa malfadada jubilação, os princípios da isonomia e da liberdade de trabalho, elevados à condição de cláusulas pétreas, não se sobrepõem a todo o tipo de filigrana jurídica? Aos que venham a redargüir com o pretexto da legitimidade proporcionada pelo processo eleitoral, pergunto, de pronto, se teriam alguma dúvida sobre a consagradora aprovação seguramente obtida pelo ministro Moreira Alves — decano da Corte e o próximo a ser “aposentado” em virtude da desditosa norma — no bojo de eventual referendum.

É de fato peculiar a situação dos juízes brasileiros, em cujo rol de prerrogativas funcionais está a vitaliciedade, garantia que, por aqui, não significa “enquanto viver” ou enquanto permanecer capaz e produtivo, diferentemente do que acontece, por exemplo, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, onde os magistrados ficam no cargo pelo tempo em que se acharem em condições, alguns chegando aos 90 anos, cumprindo àquele Tribunal decidir sobre a interdição de algum membro por incapacidade física.

No Brasil, talvez tudo se deva ao peso atribuído ao cargo. Julgar realmente é tarefa das mais complexas, a envolver, sempre, a equação de inúmeros valores. Quem sabe esse aspecto tenha induzido o legislador a imaginar que tão árdua missão incapacite, com o correr dos dias, os magistrados, embotando-lhes o entendimento, por isso ficando caducos mais depressa. O ofício de julgar mostrar-se-ia, assim, dos mais cruéis, desfavorecendo quem a ele ousou se dedicar. Já pensou se essa desumana lógica houvesse cerceado a obra de Leonardo da Vinci, Machado de Assis, Handel, Villa-Lobos, Monet, Matisse, ou, para ser bem contemporâneo, a esplêndida carreira da nossa Fernanda Montenegro?

Na magistratura, o fardo dos anos como que se revela acachapante, diminuindo paulatinamente quem enverga a toga, ao reverso do que ocorre nas grandes empresas, cujos executivos são premiados com títulos pomposos de “masters” ou “seniors”, com o que angariam ainda mais respeito e prestígio – e, por conseguinte, atribuições e salários mais elevados. Nos poderosos conglomerados econômicos, a experiência é um bem valioso a ser generosamente recompensado. No serviço público brasileiro, dá-se o inverso: de um modo geral, investe-se na formação dos servidores como que os preparando para gerar os melhores frutos no âmbito privado, de vez que, no vértice da carreira, são coagidos a se afastarem, pouco interessando o quanto poderiam realizar em prol do serviço público, que tanto ainda deixa a desejar. Num contra-senso, as maiores autoridades administrativas do País não cansam de apontar o rombo da Previdência como uma das principais causas do déficit orçamentário nacional. Quem há de compreender?

Em “Tempo de Memória”, Norberto Bobbio, influente cientista político de nossa era, ao discorrer sobre o efeito do tempo, testemunha que sua maior dificuldade, aos 80 anos, residia em conciliar a lucidez dos pensamentos, a agilidade de raciocínio, com a lentidão dos movimentos própria aos mais idosos. As ordens emanadas de uma cabeça desenvolta eram processadas de maneira pouco destra pelo corpo cansado. Convenhamos: tal dificuldade desabilita o genial pensador italiano? De forma alguma. A sabedoria dos anos mais o credencia no seu incansável mister de, observando o mundo, descortiná-lo à visão dos menos doutos.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a idade cronológica não é o melhor parâmetro para delimitar a fronteira da velhice, mostrando-se mais adequado recorrer ao conceito de idade funcional, medida de acordo com a autonomia do indivíduo, ou seja, à luz da aptidão para realizar tarefas rotineiras, como fazer compras, cuidar da higiene pessoal, ir sozinho ao local de trabalho. Se assim é, necessariamente devem ser revistos preceitos constitucionais que arbitrariamente imprimem um limite não biológico à capacidade produtiva de um ser humano, que restringem o exercício livre do universal direito ao trabalho. A aposentadoria há de ser uma recompensa, nunca um castigo para quem, pelo tanto que se dedicou à causa pública, merece ao menos ser considerado digno e apto a concluir por si mesmo já ter cumprido a própria jornada.

*Texto atualizado às 16h do dia 1º de julho para acréscimo de informação.

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