Direito fundamental

Educação infantil: política de Estado ou de governo?

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28 de junho de 2011, 7h52

O presente estudo tem o escopo de apresentar os aspectos jurídicos que delineiam a trajetória do ensino infantil no Brasil, com o mister de analisar as políticas públicas contemporâneas de responsabilidade das três esferas de governo. Estrutura que permite discutir a viabilidade econômica do direito assegurado no artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal. Levando-se em conta a concretização na conjuntura atual como arena de disputa entre políticas de Estado e políticas de governo, em prejuízo da universalização de direitos inscrita na Constituição nomeada cidadã, uma vez que a jurisprudência brasileira recentemente reconheceu que o custo dessa política de Estado é dos municípios, minimizando a responsabilidade dos demais entes federativos detentores da maior parcela do orçamento público.

Para melhor compreender a questão proposta é necessário fazer a distinção entre política de Estado e política de governo à luz da lição do professor Paulo Roberto de Almeida[1] in verbis:

Políticas de governo são aquelas que o Executivo decide num processo bem mais elementar de formulação e implementação de determinadas medidas para responder às demandas colocadas na própria agenda política interna – pela dinâmica econômica ou política-parlamentar, por exemplo – ou vindos de fora, como resultado de eventos internacionais com impacto doméstico. Elas podem até envolver escolhas complexas, mas pode-se dizer que o caminho entre a apresentação do problema e a definição de uma política determinada (de governo) é bem mais curto e simples, ficando geralmente no plano administrativo, ou na competência dos próprios ministérios setoriais. 

Políticas de Estado, por sua vez, são aquelas que envolvem as burocracias de mais de uma agência do Estado, justamente, e acabam passando pelo Parlamento ou por instâncias diversas de discussão, depois que sua tramitação dentro de uma esfera (ou mais de uma) da máquina do Estado envolveu estudos técnicos, simulações, análises de impacto horizontal e vertical, efeitos econômicos ou orçamentários, quando não um cálculo de custo-benefício levando em conta a trajetória completa da política que se pretende implementar. O trabalho da burocracia pode levar meses, bem como o eventual exame e discussão no Parlamento, pois políticas de Estado, que respondem efetivamente a essa designação, geralmente envolvem mudanças de outras normas ou disposições pré-existentes, com incidência em setores mais amplos da sociedade.

Com efeito, a educação infantil é definida como política de Estado, por se tratar de marco regulatório decorrente do Plano de Estado formalizado no texto constitucional, no qual o Brasil se comprometeu, tanto no plano interno, como também na seara internacional, em tratar a educação como matéria estratégica para alcançar o desenvolvimento social e econômico. Isso porque, diante do panorama geral de discriminação das crianças e a persistente negação de seus direitos, que tem como consequência o aprofundamento da exclusão social, que devem ser combatidos com uma política que promova inclusão, elimine a miséria, para isso deve colocar a educação infantil como prioridade nas políticas de governo de todos os entes da federação.

O Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança, das Nações Unidas, afirma que a humanidade deve às crianças o melhor dos seus esforços. A Constituição Federal, em seu artigo 227, com o escopo de concretizar a norma internacional determina:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Nesse diapasão, compete ao Estado formular políticas, implementar programas e viabilizar recursos que garantam à criança desenvolvimento integral e vida plena, de forma que complemente a ação da família. Assim, a educação, como um direito, vem conquistando cada vez mais afirmação social, prestígio político e presença permanente no quadro educacional brasileiro.

Em razão de sua importância no processo de constituição do sujeito, a Educação Infantil em creches ou entidades equivalentes (crianças de 0 a 3 anos) e em pré-escolas (crianças de 4 a 6 anos) tem adquirido, atualmente, reconhecida importância como etapa inicial da Educação Básica e integrante dos sistemas de ensino. No entanto, a integração das instituições de Educação Infantil ao sistema educacional não foi acompanhada, em nível nacional, da correspondente dotação orçamentária.

Nessa contextualização da Educação Infantil no Brasil é essencial que se destaquem as competências dos entes federados, não se perdendo de vista o cumprimento do regime de colaboração que deve orientar as ações educacionais voltadas para a infância.

A Constituição Federal atribuiu ao Estado o dever de garantir o atendimento às crianças de zero a seis anos em creches e pré-escolas (artigo 208, inciso IV), especificando que à União cabe prestar assistência técnica e financeira aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para garantir equalização das oportunidades e padrão mínimo de qualidade. Especificando ainda mais, determinou que os municípios atuassem prioritariamente no Ensino Fundamental e na Educação Infantil (artigo 211, parágrafo 2º). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) estabelece em seu artigo 11, inciso V, que os municípios incumbir-se-ão de:

oferecer a Educação Infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o Ensino Fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino apenas quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e ao desenvolvimento do ensino.

Assim, a educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível que, deferida às crianças, a essas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal).

Essa prerrogativa jurídica, em consequência impõe, ao Estado, por efeito da significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das crianças de zero a seis anos de idade (artigo 208, inciso IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola; sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

Como decorrência da política de Estado definida para a educação infantil, vê-se o aumento substancial do número de matrículas de crianças de zero a seis anos de idade na rede pública de ensino. Não obstante, a implementação de tal direito deve ser realizada por meio de políticas governamentais definida pelos respectivos governos municipais, estatuais e federal, levando-se em conta as restrições orçamentárias. Para compreender o problema sob análise, uma constatação e um questionamento se fazem necessários: para implementar esse direto haverá aumento da despesa pública, e quem irá dispor de recursos financeiros para pagar a conta?

Nesse contexto, em 2001, foi aprovado o Plano Nacional de Educação, que assim se expressa em relação às competências dos entes federados:


Na distribuição de competências referentes à Educação Infantil, tanto a Constituição Federal quanto a LDB são explícitas na co-responsabilidade das três esferas de governo – município, estado e União – e da família. A articulação com a família visa, mais do que qualquer outra coisa, ao mútuo conhecimento de processos de educação, valores, expectativas, de tal maneira que a educação familiar e a escolar se complementem e se enriqueçam, produzindo aprendizagens coerentes, mais amplas e profundas. Quanto às esferas administrativas, a União e os estados atuarão subsidiariamente, porém necessariamente, em apoio técnico e financeiro aos municípios, consoante o art. 30, VI, da Constituição Federal.

A autonomia dos entes federados e o regime de colaboração são dois princípios indissociáveis no sistema federativo brasileiro. O objetivo comum de garantir os direitos da criança, entre eles o direito à educação, só pode ser alcançado, portanto, mediante a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, de acordo com as definições constitucionais e legais vigentes. Mas o que se constata é que a responsabilidade pela educação infantil tem ficado a cargo dos municípios, gerando prejuízo na concretização do direito, sob o argumento da reserva do possível orçamentária, violando o princípio da universalização do ensino infantil, criando distinções entre crianças que habitam em municípios com recursos orçamentários vultosos idôneos a ofertar o ensino infantil; em detrimento daquelas que residem em municípios com escassez de recursos orçamentários, conforme a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 410.715-5 – relator: ministro Celso de Mello, in verbis:

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. (grifos nossos)

Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.

O paradigma jurisprudencial apresentado comporta análise econômica sob duas vertentes: quando atribui responsabilidade vinculante ao município para atender a demanda na educação infantil destinada às crianças de 0 a 6 anos de idade, ignorando a responsabilidade dos Estados e da União; bem como, a determinação pelo Poder Judiciário de concretização de políticas de Estado, pois inexoravelmente reflete na questão orçamentária, matéria que a priori é de competência exclusiva dos poderes legislativos executivos, dos respectivos entes federativos.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu que a Constituição Federal ampliou significativamente os direitos à educação, neles incluindo pela primeira vez o direito da criança ao atendimento em creches e pré-escolas, estendido a toda faixa etária de 0 a 6 anos de idade. Confere assim à educação infantil um novo status, constituindo importante marco para a redefinição de princípios doutrinários capazes de informar a implementação de novas políticas na área, bem como impõe ao Estado o seu atendimento. Sendo o atendimento institucional à criança de zero a seis anos de idade considerado de caráter eminentemente educacional, passa ele a recair no âmbito dos sistemas de ensino.

Em decorrência da garantia constitucional, mais crianças de 4 e 6 anos estão na escola. O percentual de alunos matriculados nessa faixa de ensino a chamada pré-escola subiu 2,5% em todo o país, passando de 67,6% para 70,1% entre 2006 e 2007. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ressalta-se que a ampliação de direitos não correspondeu, entretanto, à criação de novas fontes de recursos. Ademais, pelo texto constitucional, compete aos municípios manter programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental com o apoio dos estados e da União. Constata-se que, em relação ao ensino fundamental, podem prevalecer dúvidas quanto ao seu lócus preferencial: estado ou municípios, dada a história da sua expansão e a ambigüidade da legislação, já com referência à educação infantil confirmam-se os municípios como os seus provedores públicos.

Embora possa haver distinções entre as esferas administrativas quanto à assunção de competências específicas em relação aos níveis de ensino, na Constituição predominam as competências concorrentes entre as instâncias e a corresponsabilidade entre elas é claramente explicitada no caso da manutenção do ensino fundamental.

Todavia, a determinação da implementação do ensino infantil, criando obrigação de fazer para os municípios, não foi acompanhada pelos recursos financeiros correspondentes ao crescimento proporcional de matrículas no ensino infantil. As competências concorrentes das esferas administrativas, cujo pressuposto é o princípio redistributivo, uma vez que todas elas devem contribuir para a oferta de um mesmo serviço, têm dado ensejo a varias formas de cooperação entre a União, estados e municípios. Não obstante, a corresponsabilidade decorre uma ambiguidade que, em última instância, possibilita que todos os níveis de governo atuem concomitantemente na manutenção de todos os níveis de ensino. Em vista da acentuada descentralização de recursos, a probabilidade de superposição de serviços em mais de uma esfera tende a aumentar em função do aumento da autonomia relativa de cada uma. As dificuldades de equilibrar o pacto federativo mediante o qual se efetua o regime de colaboração, em face das disputas de poder e das fragilidades do quadro político-partidário ganham mais evidência, diante da execução de políticas de governo traçada pela autonomia administrativa de cada ente federativo no cumprimento de políticas de Estado. Para corroborar o raciocínio esposado, apresenta-se estimativa do percentual do investimento direto em educação por esfera de governo em relação ao gasto público social (GPS) – Brasil 2000 – 2009[2]:

Tabela: GPS - 27/06/2011

Essa situação mostra a necessidade de reestruturar o quadro de distribuição de recursos e encargos relativos à expansão e manutenção do ensino. Nesse sentido é mister buscar modelos mais equitativos de redistribuição com o objetivo de diminuir as discrepâncias encontradas entre as redes públicas de ensino, de modo a que a clientela escolar venha a ser efetivamente contemplada. A União como detentora da maior parcela orçamentária tem o dever de equilibrar a oferta do ensino infantil no país, diante da necessidade orçamentária dos municípios, especialmente daqueles com baixo índice de desenvolvimento econômico.


A dificuldade de implementação dessa política de Estado refere-se à dimensão econômica desses direitos, pois as prestações necessárias para a sua efetivação dependem da disponibilidade financeira e da capacidade jurídica de quem tenha o dever de assegurá-las. Dessa forma, sustenta-se que a prestação desses direitos estaria condicionada pela reserva do possível e pela relação desta com as competências constitucionais, com o princípio da separação dos Poderes, com a lei orçamentária e com o princípio federativo, conforme a lição de Sarlet e Figueredo (2008, p.27).

A construção teórica da reserva do possível tem sua origem na Alemanha e representa uma adaptação:

[…] construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos. (KRELL, 2002, p. 52).

Essa teoria foi utilizada pela Corte alemã quando “recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos” (KRELL, 2002, p. 52), entendendo que existem limitações para o atendimento de todas as demandas.

Segundo Krell (2002), a reserva do possível é fruto de um direito constitucional comparado equivocado, sendo questionável a transferência de teorias jurídicas, que foram desenvolvidas em países “centrais”, com base em realidades completamente diferentes, para países, como o Brasil.

Assim, a teoria apresentada na Alemanha não se adéqua ao direito brasileiro, uma vez que a Alemanha optou pela não-inclusão de direitos fundamentais na Constituição, representando o conceito do Estado Social uma “norma-fim de Estado”, que fixa, de maneira obrigatória, as tarefas e a direção da atuação estatal presente e futura, sem, no entanto, criar direitos subjetivos para a sua realização”. A doutrina alemã se refere a essas normas constitucionais como “mandados” e não propriamente “direitos”. (KRELL, 2002, p. 48).

No Brasil, nos últimos cinco anos, centenas de ações judiciais versando sobre o acesso à educação infantil foram julgadas pelo Poder Judiciário brasileiro e o reconhecimento da exigibilidade judicial para a concessão do direito à vaga em creche e pré-escola não foi sempre consenso entre os julgadores, mas diante da decisão proferida pelo STF no Recurso Extraordinário 410.715-5 haverá mudanças na interpretação da concretização do direito ao ensino infantil.

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, relator do recurso impetrado pelo Ministério Público contra a decisão do TJ-SP que reivindicava o acesso à educação infantil, argumentou sobre a cláusula da reserva do possível, para efetivação dos direitos sociais considerados de segunda geração:

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. 

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou política – administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. 

[…] a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais […] (R.E nº 410.715-5, 2005). 

Cabe destacar que o ministro Celso de Mello apresenta uma ressalva para que a reserva do possível seja invocada: “justo motivo objetivamente aferível”. A escassez de recursos, comprovada pelo orçamento, poderia estar nessa exceção?

Desta forma, quando se reivindica a matrícula e os municípios as negam, tendo em vista a limitação de recursos, está em jogo o caráter universal e igualitário deste atendimento, pois para algumas crianças a matrícula é concedida e a outras faltam vagas. Ademais, a oferta do ensino infantil no país não atende a demanda, pois conforme os dados apresentados pelo IBGE em 2002 apenas 36,5% das crianças de zero a seis anos de idade freqüentavam creche ou escola no país. O percentual ainda é menor se levarmos em conta as crianças de zero a 3 anos de idade. Destas, apenas 11,7% estão matriculadas em creche ou escola. Na tabela abaixo, encontra-se as proporções de crianças e jovens que freqüentam escola, segundo as faixas etárias, para o Brasil e as cinco grandes regiões[3]:

Tabela: taxa de frequencia - 27/06/2011

Como dito alhures, a Constituição brasileira congregou um amplo leque de direitos sociais, entre eles a educação infantil, sendo que a sua concretização requer uma atuação positiva do Estado, acompanhada da realização de desembolsos financeiros em prol da universalização do ensino infantil como direito fundamental do indivíduo em desenvolvimento; mas o que se percebe é a promoção desigual do direto à educação infantil, conforme os parâmetros de desenvolvimento econômico do município no qual a criança encontra-se, em detrimento da universalização determinada pela Constituição Federal, mantendo-se as diferenças e o desequilíbrio no desenvolvimento humano e econômico entre as diversas regiões do país.

O financiamento da educação é um tema urgente nas discussões sobre os rumos que se pretende dar à educação em nosso país, uma vez que, sem os recursos adequados, torna-se praticamente impossível atender ao princípio constitucional que assegura uma escola de qualidade para todos os brasileiros. Os valores destinados à educação não são idôneos a manter uma educação de qualidade em todo o país. Sem perder de vista, que se deve destinar atenção especial ao ensino infantil, uma vez que garantirá uma base adequada do educando aos outros níveis de ensino, sob pena de não alcançar a necessária eficiência no serviço de educação pública, pois as políticas públicas permanecerão atuando apenas nos efeitos e não nas causas dos problemas educacionais no Brasil. Apresenta-se a estimativa do percentual do investimento público total em educação por nível de ensino em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) – Brasil 2000 – 2009[4]:

Tabela: PIB - 27/06/2011

Embora o governo Federal tenha empreendido políticas promissoras para a expansão do número de matrículas, com o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação), os resultados ficaram aquém do esperado e necessário.

A comparação dos dados do Censo Escolar de 2009 e 2010 mostra que o Brasil perdeu mais de 1,2 milhão de matrículas nas redes públicas de educação básica, devido a inúmeros fatores. Em lugar de ganhar matrículas com o Fundeb, em vigor desde 2007, a educação infantil e o ensino médio públicos perderam juntos mais de 65 mil matrículas em um ano[5].

Em consequência do aumento da demanda e da ausência da oferta de vagas no ensino infantil, tem-se observado um recrudescente movimento por parte de membros do Poder Judiciário, no sentido de atuar como genuínos protagonistas na promoção da concretização dos direitos sociais, voltados para a educação infantil. Oportunas, a esse propósito, as palavras de Jean Cruet, citado por Carlos Maximiniano (2001. p.39):

O juiz, esse ente inanimado, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artífice laborioso do Direito novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional. Esta participação do juiz da renovação do Direito é, em certo grau, um fenômeno constante, podia-se dizer uma lei natural da evolução jurídica: nascido da jurisprudência, o Direito vive pela jurisprudência, e é pela jurisprudência que vemos muitas vezes o Direito evoluir sob uma legislação imóvel. É fácil dar a demonstração experimental deste acerto, por exemplos tirados das épocas mais diversas e dos países mais variados.

A atuação encampada pelos juízes brasileiros, no entanto, não permaneceu imune a críticas. Deveras, há quem afirme que a atuação do Judiciário consubstancia usurpação do poder e funções conferidas constitucionalmente ao Executivo e Legislativo, o que atentaria ao cânone basilar da separação de poderes. O Judiciário estaria, pois, adentrando numa esfera de escolhas nitidamente políticas, alheia às suas atribuições.

Não obstante, um dos pilares dos Estados Modernos é a positivação do princípio da separação de poderes, cujo conteúdo contempla peculiaridades imanentes a cada país, de modo que não há um modelo global uníssono. A celeuma ocorre diante das peculiaridades do exercício do poder do Estado distribuído em funções exclusivas para órgãos constitucionalmente definidos, o debate se impõe no sentido de analisar a legitimidade do Poder Legislativo na concretização direta de políticas de Estados, ou seja, quando ausentes leis infraconstitucionais ou atos infralegais regulamentares do direito posto na previsão constitucional.

Gustavo Amaral preceitua que o Brasil optou por filiar-se ao sistema norte-americano, mais conhecido como "freios e contrapesos" ou check and balances, cuja tônica não é um rompimento rígido entre os "poderes" do Estado. Ao revés, o que se almeja é uma harmonização e um controle (ou fiscalização) recíproco entre os atores estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário.

Já o sistema francês de separação de poderes finca seus alicerces na severa distinção de funções públicas. Estas variações no modelo de tripartição de poderes, verificadas nos diversos sistemas jurídicos, tem como fio condutor o processo evolutivo histórico de cada ordenamento. O Brasil não se desapercebeu desse contexto histórico e terminou enveredando pelo regime norte-americano.

Robert Alexy afirma que os direitos sociais mínimos têm inexoráveis efeitos financeiros, o que, por si só, não justifica inferir a não-existência desses direitos. "A força do princípio da competência privativa do legislador não é ilimitada. Não é um princípio absoluto. Direitos individuais podem ter mais pesos que as razões da política financeira". 

De outro lado, Gustavo Amaral defende que não cabe ao juiz propriamente suprir a mora do Poder Público, porém controlar as escolhas efetuadas pelo Legislativo e Executivo. Incumbe ao magistrado, pois, perquirir a pretensão individual levada a Juízo, cotejando-a com as opções realizadas pelo Poder Público. Gustavo Amaral sustenta que deve ser averiguado o grau de essencialidade da medida, bem como seu nível de excepcionalidade. Para ele, não basta que o direito postulado seja de cunho essencial, mas que se trate de medida excepcional:

(…) a decisão judicial para o indivíduo deve ser sempre circunstancial, respeitando, assim, a pluralidade de opções alocativas existentes, a heterogeneidade da sociedade e seu reflexo necessário sobre as concepções que tem sobre suas necessidades e a deficiência na coleta de informações que é inerente ao procedimento judicial. Com decisões para o caso concreto e não para a generalidade dos casos, como se tem visto nas decisões relacionadas à saúde, mantém-se a flexibilidade para o futuro, o que é uma virtude notável no que diz respeito à saúde, onde a evolução dos tratamentos torna o quadro sempre mutante.

Gustavo Amaral menciona o "controle das escolhas alocativas". Ele defende que o Judiciário não deve fazer o controle fato-norma, mas controlar as escolhas feitas pelos demais "poderes". Tratar-se-ia de um exame lógico entre variáveis como escassez de recursos, essencialidade da medida reclamada (mínimo existencial), bem como sua excepcionalidade. Essa teoria remete, na verdade, às ideias de proporcionalidade e razoabilidade. Dito de outra maneira, o Judiciário poderia controlar posturas ou escolhas do administrador, lançando mão dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, ou seja, controla o mérito, mas nunca substitui o mérito administrativo, sob pena de configurar abuso de poder.

Diante do exposto, destaca-se a necessidade das políticas públicas dos entes federativos atenderem a demanda nacional da educação infantil, por trata-se de uma política de Estado, ainda mais em um contexto de extensão da educação básica obrigatória, para que o reconhecimento dos direitos proclamados em nossa legislação não se torne inviável, quando a sua efetivação estiver relacionada a limites orçamentários; bem como a destinação universal do direito a todos os brasileiros, para que não se configure na prática um direito apenas dos que habitam em municípios com vultosos orçamentos ou para os que demandem a concretização do direito perante o Poder Judiciário; a proposta em evidência neste trabalho é a de que as políticas públicas em favor da educação brasileira — apesar da urgência por melhores condições pedagógicas e funcionais — não deixem de contemplar estratégias e mecanismos para que os serviços educacionais sejam acessíveis a toda a população brasileira. Neste sentido, fica a expectativa de que as reflexões aqui contidas possam contribuir para estudos e ações que busquem a democratização das oportunidades de ensino infantil, reiterando a questão da universalização do acesso, ao lado da permanência, como predicado do desenvolvimento da educação brasileira de qualidade, razão pela qual deve obrigar juridicamente não somente os municípios, mas também a União e os estados.

Referências Bibliográficas.

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ALEXY, Robert (1993). Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzon Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Politicos y Constitucionales.

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SILVA, José Afonso da (2006). Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros.

SILVEIRA, A. A. D. Exigibilidade do direito à educação infantil: uma análise da jurisprudência. In: Anais do XXIV Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação. Niterói; Vitória: Anpae; UFES/PPGR, 2009.


[1] “Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções necessárias”, Brasília, 11 julho 2009, 3 p. Exatamente o que diz o título. Postado no blog Diplomatizzando (12.07.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/07/1218-sobre-politicas-de-estado-e.html). Revisto ligeiramente e adaptado para publicação no Instituto Millenium (13.08.2009; link: http://www.imil.org.br/artigos/sobre-politicas-de-governo-e-politicas-de-estado-distincoes-necessarias/).

[2] Fonte: Inep/MEC. Tabela elaborada pela Deed/Inep.

[3] Fonte: Síntese de Indicadores Sociais 2003-IBGE.

[4] Fonte: Inep/MEC. Tabela elaborada pela Deed/Inep

[5] Fonte: IBGE/Censo/2010 e http://noticias.uol.com.br/politica/2011/01/03/analise-avancos-timidos-perante-as-necessidades-na-educacao.jhtm

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