Ato ilegítimo

Atuação da Abin na Satiagraha contaminou operação

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28 de junho de 2011, 15h48

A Constituição Federal promulgada em 1988 delineou o projeto democrático da nação brasileira. O aspecto político da realização humana é a igualdade de todos perante a lei e nesse sentido o Estado e as suas instituições devem existir em prol da harmonia social. A prevalência dos interesses do Estado sobre os interesses da sociedade leva as garantias fundamentais ao naufrágio e frustra o sonho democrático.

A vocação libertária é inerente a todo e qualquer povo, enquanto do governo e do poder instalado não se pode falar o mesmo. A retórica dos direitos humanos é artifício permanente dos tiranos.

As críticas ao STJ por anular o emblemático processo rotulado de “operação satiagraha” e as defesas populares das manobras ilícitas cometidas pela polícia federal revelaram que construção da democracia brasileira é artesanal.

Aqui a lei ressoa com ruídos à medida que só é justa se for “em meu benefício” ou se “atender as minhas vontades”.

O Poder Judiciário é a última porta de súplica do cidadão. Alheio ao clamor popular e aos interesses de todos os matizes que cercam a prestação jurisdicional, a sua missão é aplicar a legislação disponível.

Um Tribunal independente não pode ser o escudeiro de ilegalidades e muito menos de linchamentos.

Na busca de sua consolidação, a democracia deve impor segurança nas relações jurídicas, mesmo quando tiver que reconhecer o mais comezinho direito de um cidadão comum em oposição aos interesses do Estado ou de seu supremo mandatário, a exemplo do fato imortalizado na obra “J’accuse” ou “O Julgamento do Capitão Alfred Dreyfus” de Émile Zola.

Em uma sociedade igualitária, as garantias individuais da vítima não são diferentes dos direitos assegurados ao seu algoz. Por isso, outra postura não se poderia aguardar senão a nulidade das decisões que antecederam o “gran finale” da “operação satiagraha”.

O acesso aos procedimentos em segredo de Justiça é exclusivo aos profissionais neles nomeados. Justifica-se essa restrição porque os limites desse sigilo – o segredo de Justiça – são pessoais, circunscritos tão somente ao limitadíssimo número de autoridades e auxiliares comprometidos com a liturgia processual.

A nenhuma autoridade e a nenhum funcionário que não esteja jungido ao processo ou ao inquérito policial é permitido compulsar documentos sigilosos, sob pena de sua violação, exigindo então que a guarda e os deslocamentos dos autos ocorram com rigorosa vigilância.

De outra forma, em casos de vazamentos, não seria possível identificar o seu autor para fins de responsabilização. Esta é uma das muitas razões de caráter prático que compõem o cenário da ordem constitucional fundada na proteção e respeito ao cidadão.

O sigilo judicial não é um instituto de propriedade do Poder Judiciário. Embora tenha a sua posse e o seu domínio, ele é instrumentalizado e destinado aos interesses da sociedade, não podendo, portanto, o seu detentor, transferir o sigilo segundo o seu talante.

O termo “segredo de Justiça” somente possui significado, em uma ordem de Constituição – como pretende ser a nossa –, se interpretado à luz do devido processo legal, que, por sua vez, é incompatível com um juízo administrativo, que franqueie o conteúdo de autos sigilosos a terceiros ou a instituições sem a autorização judicial. Entender de outra forma é inverter o sentido da proteção constitucional, cujos objetivos originários repousam na defesa do indivíduo em face das possíveis arbitrariedades do poder.

O acesso de qualquer outro órgão, de inteligência ou não, que não esteja legalmente vinculado aos procedimentos preservados pelo segredo de Justiça estará claramente violando a Constituição e incorrendo em crime.

Não é diferente o entendimento do legislador nacional, haja vista o alerta que nos deixa no § 1° da Lei 9.883/99, que instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência – Sisbin:

"§ 1º O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária."

Sob esta perspectiva, é clara a disposição dos limites da atuação do Estado com relação à possibilidade de acesso aos autos em segredo de Justiça. Compreensão contrária seria subverter a própria ordem constitucional e proteger o Estado ao invés do cidadão.

O sigilo judicial existe enquanto instituto protetor do cidadão e invocá-lo para dar acesso institucional com mascarada justificativa de proteção da sociedade é tema perigoso, já conhecido, principalmente, dos regimes totalitários.

Acabar com garantias para protegê-las, definitivamente não é a melhor solução. Para aqueles que argumentam quanto à necessidade de abusos para fazer frente a uma criminalidade cada vez mais organizada, é bom lembrar que o sangue de mil culpados jamais valerá a dor de um único inocente.

E mais, não há comunicação entre o Poder Judiciário e o Sisbin. E nem poderiam ter ligações, são de natureza extremamente opostas: a Justiça é pública, prestando os seus serviços à sociedade e, o Sisbin, por sua vez, é reservado aos seus Agentes e atende os interesses do governo.

Em uma brevíssima conclusão, o limite do conhecimento dos dados coletados pela Abin é institucional e circula pelos órgãos que integram o Sisbin, podendo, inclusive, transitar pela comunidade internacional de informações.

O controle do acesso sigiloso enquanto pessoal é possível, mas a manipulação institucional jamais.

Se a Abin participou em operações sigilosas da Polícia Federal, não se pode admitir que a prática reiterada de um ato ilegítimo revista-o de legalidade.

Estas colocações podem ser ilustradas da forma seguinte:

Tabela: DISTINÇÕES FUNDAMENTAIS - 28/06/2011

Além disso, as normas que regulamentam as atividades do Sisbin são diversas e não se confundem com a legislação processual que disciplina autos em segredo de Justiça.

Concluindo, o mais ingênuo contato de pessoas ou instituições estranhas aos procedimentos chancelados pelo segredo de Justiça contamina-os por inteiro.

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