Nova Justiça

No sistema brasileiro, recursos podem ser ilimitados

Autor

  • Pablo Cerdeira

    é advogado e professor de Evolução Aperfeiçoamento e Reforma da Justiça na Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. Atuou como gestor de projetos como "Justiça sem Papel" e "Prêmio Innovare".

22 de junho de 2011, 13h02

Spacca
Caricatura: Pablo Cerdeira - Colunista - Spacca

O Brasil vive um momento de conflitos no que toca aos recursos nos processos. Por um lado estão medidas facilitadoras de acesso, como por exemplo o processo eletrônico no STF — que reduz drasticamente os custos de se impetrar um recursos na mais alta corte do país. Por outro lado, a complexidade de recursos e os abusos que se comete em seu uso tem feito com que partes reconhecidamente culpadas consigam se esquivar do cumprimento de penas ou condenações civis que lhes foram impostas.

No meio disso tudo, temos um Supremo que tem a obrigação de julgar mais de 30 mil processos por ano, de interesse restrito às partes, ao mesmo tempo em que decide questões de interesse geral da sociedade, como a união homoafetiva, a liberação da marcha da maconha, questões fundiárias como a da Raposa Serra do Sol, a Lei da Ficha Limpa, o uso de células-tronco etc.. Se quisermos um Judiciário mais democrático, mais célere, mais econômico e ao mesmo tempo mais justo, todas essas questões precisam ser analisadas em conjunto.

Entre os fatores excludentes no Poder Judiciário brasileiro é a quantidade e a complexidade de recursos disponíveis às partes. Apesar de suas espécies serem limitadas pelos Códigos de Processo Civil e Penal (entre 8 e 10 diferentes recursos em cada um deles), na prática, nos processos reais, é difícil definir um número limite. Os recursos podem ser até mesmo ilimitados, só sendo possível se chegar ao final se uma das partes desistir ou se um ministro concluir que não mais irá analisar recursos sobre aquele caso.

Apenas a título de exemplo, em um mesmo caso, envolvendo as mesmas partes, é possível que existam processos preparatórios cautelares, principais, incidentes processuais (chamar um terceiro a integrar o processo, conflitos de competências entre órgãos diferentes dentro do Poder Judiciário, impugnação do valor da causa, alegação de falsidade de documentos apresentados, alegação de insanidade mental etc.), Mandados de Segurança, Habeas Corpus ou até mesmo ações rescisórias. E ainda é possível recorrer de recursos. Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração, ou os Agravos Regimentais nos Agravos decorrentes de decisões negativas em recursos extraordinários são exemplos. Para quem não é especialista no tema, tudo isso é “recurso”, já que demandam decisões distintas sobre um mesmo fato envolvendo as mesmas partes.

No modelo brasileiro atual, essa vastidão de “recursos” tem destino final certo: o Supremo Tribunal Federal. É o que mostrou o I Relatório Supremo em Números, realizado pela FGV Direito Rio com o apoio da Escola de Matemática Aplicada também da FGV. Cerca de 92% de todos os processos julgados pelo STF entre 1988 e 2009 foram recursos (recursos extraordinários e agravos de instrumento), e mais de 86% dos casos estavam, no mínimo, em terceira instância (ou seja, já contavam com pelo menos duas decisões em sua história). Em números: mais de 1,2 milhão de recursos no STF em 21 anos. Em alguns anos foram mais de 110 mil casos diferentes.

Mas essa grande quantidade de recursos ao STF não quer dizer que todos conseguem acesso a ele de forma igualitária. Isso não é verdade, apesar dos esforços do Supremo na tentativa de facilitar o acesso das partes, como, por exemplo, com a adoção dos processos eletrônicos. De fato, existe uma enorme concentração no número de partes que propõem recursos ao Supremo. Das mais de 1,2 milhão de pessoas que participaram de recursos junto ao STF entre 1988 e 2009, apenas as 10 mais representativas são as recorrentes em mais de 50% dos casos.

Ou seja, apenas alguns se utilizam muito do STF. Esses “alguns” são, em grande parte, ligados ao Poder Executivo e algumas grandes empresas. Isso decorre de um efeito natural na economia: o ganho em escala.

Para exemplificar. Quem, em sã consciência, levaria um processo questionando pulsos excedentes em uma conta telefônica até o STF? Ninguém. Mesmo que houvesse pulsos cobrados a mais em diversas contas, provavelmente o custo de levar o processo até o Supremo seria maior do que o ganho. Mas para a empresa de telefonia — que tem milhões de clientes — essa é uma discussão que vale a pena levar até onde for possível. É por isso que a Oi Telemar do Rio de Janeiro, a maior recorrente privada no STF, tem mais de 8,2 mil recursos apenas questionando excedentes de pulsos telefônicos de processos que se iniciaram em Juizados Especiais (ou seja, de baixo valor). Essa é apenas uma das distorções do atual sistema recursal. Para quem tem muitos casos, vale a pena, para quem tem poucos, não.

Mas existem outras distorções também. Quando não se tem nada a perder e se tem recursos financeiros disponíveis, o acesso ao STF vale a pena, especialmente se ele representar a diferença entre permanecer livre ou ser preso. Podemos usar o caso Pimenta Neves como um exemplo. Foram 23 “recursos” levados às cortes superiores (STF e STJ) entre Habeas Corpus, recurso em Mandado de Segurança, recursos especiais, Embargo em Recurso Especial, agravos, medidas cautelares, recursos extraordinários (distribuídos), agravos de instrumento (decorrentes de outros recursos extraordinários não-distribuídos) etc..

Outro exemplo semelhante é do jogador Edmundo. Por um crime cometido em 1995, sem qualquer dúvida quanto à autoria, ele ainda não cumpriu a pena. Sua condenação pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se deu em 1999, mas desde então interpôs recursos ao STJ e ao STF e alguns destes, em tumultuado procedimento, ainda encontram-se pendentes, impedindo sua prisão. Se dependessem apenas de decisões de segundo grau, Pimenta Neves estaria preso desde 2006, e Edmundo, desde 1999.

E mais. Mesmo sendo um caminho em tese disponível a todos, em um país no qual mais da metade das pessoas não conta com o suporte de defensores públicos, como anotou Maria Tereza Sadek em reportagem no O Globo de 21 de junho de 2011, e no qual cada um desses recursos tem custos de advogados, cópias, deslocamentos etc., apenas aqueles que têm amplas condições, como o Poder Executivo, grandes empresas ou os Pimenta Neves e Edmundos, conseguem manter-se distantes das prisões ou postergar um pagamento devido.

Atualmente discute-se a reforma do Código de Processo Civil, a PEC dos Recursos e o III Pacto Republicano entre os Três Poderes em favor de um Judiciário mais célere e acessível. É o momento de se definir que tipo de Judiciário queremos. As cartas, e os números, estão na mesa.

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  • é advogado e professor de Evolução, Aperfeiçoamento e Reforma da Justiça na Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. Atuou como gestor de projetos como "Justiça sem Papel" e "Prêmio Innovare".

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