Ideias do Milênio

"Alemanha é dos países mais tolerantes da Europa"

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17 de junho de 2011, 12h41

Reprodução/Globo News
Leila Sterenberg, da Globo News, e Peter Frey, jornalista alemão, diretor da rede de TV ZDF - Reprodução/Globo News

Entrevista do jornalista Peter Frey, da rede de TV pública ZDF, da Alemanha, à jornalista   Leila Sterenberg para o programa Milênio, da Globo News, transmitido no dia 6 de junho. O Milênio é  um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Onze homens em campo, dez troféus na vitrine. O craque tem origem turca. O time conta com descendentes de nigerianos, um filho de mãe alemã e pai tunisiano, um que nasceu na Polônia. A atual seleção da Alemanha pode dar a entender que o país finalmente se tornou multicultural, teria integrado etnias, imigrantes. Mas não é o que sugere o sucesso do livro Deutschland schafft sich ab, (A Alemanha se extingue, em tradução livre). Com mais de 1,2 milhão de exemplares vendidos, é o maior êxito editorial do país, desde Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler. A obra do ex-conselheiro do Banco Central Alemão, Tillo Sarrazin, defende teses polêmicas, como a de que a Alemanha está se tornando mais burra, por causa dos imigrantes mulçumanos.

O que acontece, afinal, nessa Alemanha de hoje? É a maior economia da zona do Euro. É governada por uma mulher que tem tido um papel cada vez mais decisivo na crise que atinge o velho continente. As grandes questões da Alemanha atual foram temas da conversa com um dos mais influentes e respeitados jornalistas do país: Peter Frey é ex-correspondente internacional, âncora, comentarista. No ano passado se tornou editor chefe da ZDF, uma das duas emissoras públicas de TV alemãs. Em visita ao Brasil, ele falou ao Milênio.

Leila Sterenberg – Por que este livro tem tanto sucesso, na sua opinião?
Peter Frey – Sarrazin tocou num ponto nevrálgico. Isso comprova a grande aceitação que leva as pessoas a comprarem o livro, mas também o sucesso da argumentação junto aos leitores. Apesar disso, eu acho que as teses — como as que tratam dos turcos — são muito genéricas. É um livro que, com certeza, capta o que muitos expressam na Alemanha, mas, se as afirmações realmente têm fundamento, é algo que pode ser discutido.

Leila Sterenberg – Então, a Alemanha não se tornou islamofóbica?
Peter Frey – Seria errado dizer que a Alemanha é inimiga do Islã ou dos turcos. O sucesso do livro ocorreu porque muitos não estão de acordo com a maneira como o nosso país se transformou. A Alemanha tornou-se um país de imigrantes e a política não percebeu, durante muito tempo, o que muitos tomavam como fato consumado, entende? Nós falamos dos trabalhadores estrangeiros – dos italianos, espanhóis, turcos que vieram para o nosso país. E trabalhador estrangeiro aqui significa alguém que em algum momento volta ao seu país. Mas isso não ocorreu e, hoje, a segunda e a terceira geração vivem na Alemanha e eles desejam ficar. A Alemanha não é um país de trabalhadores estrangeiros. A Alemanha é um país de imigrantes. 

Leila Sterenberg – Sarrazin também tem a teoria de que todos os judeus teriam “um gene específico”. Muitas pessoas ficaram indignadas com isso e nós sabemos que o antissemitismo cresceu não só na Alemanha, mas em toda a Europa. Até onde chega esse problema?
Peter Frey – Sarrazin, com essa observação, que, por sinal, não está em seu livro, mas foi feita durante uma entrevista, ultrapassou um linha vermelha. Esse foi o ponto no qual a grande maioria dos políticos não o seguiu. O antissemitismo na Alemanha, neste momento, não é um fenômeno ameaçador. Não há dúvida que a instituição judaica deve ser protegida, mas deve ser protegida em outras partes do mundo também. Existe um tipo de parcialidade, porque infelizmente, muitos alemães tiveram poucas oportunidades de conviver com judeus. É importante conhecer o outro e construir percepções positivas, mas creio que a Alemanha não é nem antissemita, nem xenófoba. A Alemanha tornou-se, invés disso, um país tolerante se comparado com outros países da Europa.

Leila Sterenberg – E o que o senhor acha do crescimento dos radicais de direita, por exemplo?
Peter Frey – Não há um grande crescimento. Os partidos radicais de direita nunca tiveram sucesso significativo, nunca entraram no Parlamento. Eles têm representação em algumas poucas assembleias legislativas estaduais e, nesses estados, como na Saxônia, por exemplo, ou em Brandemburgo, não tiveram um sucesso sustentável. No nível político, não existe, no momento, nenhum perigo de tendências ou partidos radicais de direita. A questão é, naturalmente, mais sobre o que se faz sob a superfície da sociedade e se precisamos lutar contra determinadas tendências que vão contra o que entendemos ser uma atitude democrática.

Leila Sterenberg – A chanceler Angela Merkel não ficou satisfeita com Tillo Sarrazin, ela o criticou. Ele não está mais no Bundesbank, mas em outubro passado ela falou sobre a integração na Alemanha e disse que “a abordagem multiculturalista está fracassada, totalmente fracassada.” Foi algo polêmico. O que o senhor pensa sobre isso?

Peter Frey – A chanceler optou por dar um passo inusitado quando ela criticou o livro de Sarrazin, logo que foi publicado. Além disso, ela estabeleceu uma linha clara e se distanciou dele, mas nós a conhecemos como representante de opiniões claras, mesmo quando o tema é antissemitismo ou excessivas críticas à Israel. Por outro lado, com sua crítica ao multiculturalismo, ela se alinhou a seu partido conservador. Nós entendemos que o conceito da Alemanha como um país de trabalhadores estrangeiros temporários está ultrapassado. A Alemanha é um país de imigrantes. Para os conservadores, isto é difícil de aceitar. Ela constrói, de certa maneira, um contrapeso quando diz que o conceito de multiculturalismo está fracassado. Mas existe um ponto em que ela tem razão: as pessoas só entendem o multiculturalismo como uma forma de que cada um pode fazer o que quiser, mas sem se preocupar em aprender a língua e a cultura alemãs, se inteirar da constituição e da história, aí sim. Pode-se dizer que nós compreendemos a Alemanha como um país de imigrantes, mas aqueles que quiserem viver na Alemanha devem encontrar um denominador comum sob o qual se integrem. E isso é, certamente, a língua e a nossa constituição, o Grundgesetz [Lei Fudamental].

Leila Sterenberg – Quais seriam os maiores problemas da Alemanha, na sua opinião?
Peter Frey – Nós temos ainda um problema: as diferenças entre Leste e Oeste ainda não foram superadas. O desemprego, por exemplo, na Alemanha Oriental, é muito maior do que na Alemanha Ocidental. E existe ainda um problema de mentalidade: os alemães são, eles querem sempre perfeitos, e nós ainda buscamos fazer uma reunificação perfeita. Nós consertamos as ruas, consertamos os prédios, construímos novas universidades, mas ainda não incluímos os alemães orientais. Eles se sentem um pouco subjugados superar essa subjugação é, por exemplo, um problema que tem a ver com a Alemanha e creio que continuará a ser um problema por mais alguns anos.

Leila Sterenberg – Existe uma solução?
Peter Frey – Existe uma solução, mas, no momento, ainda existem problemas no cenário político. Além disso, há um partido, o partido de esquerda, um partido pós-comunistaque é predominante na Alemanha Oriental, que na Saxônia ou em Brandermburgo consegue quase 30% do eleitorado, mas que não tem presença marcante na Alemanha Ocidental. Também existem outras rupturas e o país precisa se integrar mais, mesmo 20 anos após a reunificação.

Leila Sterenberg – Deixando de lado essas questões, inclusive o debate sobre integração, a Alemanha é, em muitos aspectos, um país bem sucedido. Ciência, economia, cultura… Berlim, onde o senhor morou, é, talvez, a capital mais interessante e mais cheia de vida da Europa. Como o senhor descreveria a Alemanha atual?
Peter Frey – O charme que a Alemanha e, também, Berlim ganharam tem a ver com uma história que teve muitas rupturas. Certamente foi uma tremenda ruptura a derrota da Alemanha após o esfacelamento do nazismo alemão. Depois teve a partilha do país, a experiência em 1989 [a queda do Muro de Berlim] que foi um acontecimento tão feliz, não só para os alemães, mas para a Europa. Quando chega-se a Berlim hoje, é possível ver os traços dessas diferentes épocas em nossa história. Traços positivos e traços negativos. As pessoas sentem que algo ainda está acontecendo e, talvez, seja essa heterogeneidade em nossa cultura que torne a Alemanha e, principalmente, Berlim tão interessantes. Berlim não é a cidade mais glamourosa, outras cidades são muito mais glamourosas, mas Berlim é, de certa forma, uma cidade interessante e isso atrai gente do mundo todo, inclusive de Israel. É impressionante a quantidade de jovens israelenses que vêm nos visitar. Por exemplo, ano passado, mais de 70.000 vieram a Berlim como turistas.

Leila Sterenberg – Desde o início da crise financeira, a chanceler Angela Merkel tornou-se uma importante líder europeia. Agora ela quer proteger a União Europeia da crise monetária com o pacto de competitividade. Este tipo de pacto funciona e será que a chanceler pode proteger o Euro?
Peter Frey – Veja bem, a Europa fez um experimento incrível. Existe apenas uma moeda para mais da metade dos Estados europeus e quem unifica a moeda com outro, unifica por causa de um futuro em comum. Agora, para os alemães, a estabilidade monetária é algo de valor excepcional, porque nós, em nossa história, experimentamos duas vezes a desvalorização do marco e as pessoas perderam suas riquezas. O marco alemão, a forte moeda da Alemanha Ocidental, também um pedaço da identidade alemã pós-reunificação, foi abandonado em prol da Europa. Por isso é tão importante para os alemães defender o Euro e Angela Merkel não está sozinha, por exemplo, está acompanhada dos franceses.

Leila Sterenberg – A figura de Angela Merkel é muito interessante. Ela vem da anntiga República Democrática Alemã e se tornou uma líder continental.
Peter Frey – Foi uma carreira incrível a que ela fez. Uma alemã oriental, uma mulher separada sem filhos em um partido conservador, uma protestante em um país em que a maioria prega o catolicismo e uma mulher que se tornou chanceler da Alemanha e, há seis anos, permanece no cargo. É uma carreira incrível e uma carreira que decolou ao mesmo tempo em que a Alemanha se levantou. Na verdade, ela incorpora – para a Alemanha e para o mundo – o desenvolvimento que a Alemanha teve desde 1989.

 Leila Sterenberg – O senhor visitou, em São Paulo, a Delegacia contra Crimes de Racismo e Intolerância e eu acho que o tema da intolerância e da integração é importante para o senhor. O senhor é patrocinador de uma organização que ajuda imigrantes sem seguro de saúde. Então, pensando sobre os preconceitos em geral – contra estrangeiros na Europa e contra homossexuais no Brasil – existe uma solução para isso? E como os meios de comunicação poderiam promover a integração?
Peter Frey – Todas as sociedades devem se esforçar para integrar o estrangeiro e, em certa medida, ser tolerante para aceitar que o outro viva de forma diferente. E, mais do que tolerância, é necessário respeitar e integrar a vida de cada um. Com certeza os meios de comunicação podem contribuir bastante, por exemplo, quando, em seus programas, representam as minorias. Na Alemanha, foi um passo importante que um alemão mestiço ou um alemão negro pudesse apresentar um noticiário. As minorias querem ser reconhecidas. Elas querem ver na mídia que elas têm um lugar na sociedade. Isso deve ser um tipo de realidade, algo cotidiano, e isso é um sinal de que tal sociedade funciona.

 Leila Sterenberg – Tem a série “Turco para Iniciantes” na Alemanha.
Peter Frey – Também foi algo interessante… Isso demonstra que, às vezes, é possível conquistar algo com humor. Nem sempre com seriedade, mas também com diversão.

Leila Sterenberg – A ZDF é uma emissora pública, ligada ao governo. Isso poderia ser um problema para a independência jornalística?
Peter Frey – Nós não somos ligados ao governo. Emissora pública na Alemanha significa independência. E isso, para um jornalista, é o que há de mais importante, mesmo para o jornalista que trabalha em uma televisão que é financiada por uma  taxa. Independência política, econômica, cultural e partidária. As taxas não são impostos. As taxas vêm diretamente de quem paga e que requer nossos serviços. O governo não é nosso chefe. Nós somos independentes.

Leila Sterenberg – Mas e sobre, por exemplo, o superintendente. Ele não deve ser eleito?
Peter Frey – Deve ser eleito por uma assembleia que tenha representação na sociedade e ela é composta da forma mais variadas, as mais diversas organizações, os mais diferentes partidos, os mais diferentes governos e, graças a Deus, a Alemanha é um país muito heterogêneo. As pessoas precisam construir uma maioria muito ampla e serem eleitas. Isso é um sinal de que uma emissora como a ZDF  é independente, e, aliás, também a concorrente ARD é independente.

Leila Sterenberg – Facebook, Internet, TwitterQue tipo de desafios essas novas mídias apresentam para as emissoras de TV tradicionais?
Peter Frey – Esse é um grande desafio, talvez o maior desafio que já se apresentou. É possível compará-lo com o início da década de 60 quando o rádio foi tirado de seu trono e, de repente, a televisão estava lá. As imagens, o poder das imagens é inquebrantável, e nós já notamos que nosso conteúdo, por exemplo, tem sido acessado por muitas pessoas em nosso site. Muitos consumidores utilizam essas novas plataformas como um veículo de disseminação. Não apenas usam o rádio, a TV aberta, a TV pro assinatura, mas também a internet. E sabemos que esta é a principal mídia para atingir os jovens. É claro que é muito legal que as pessoas possam assistir no Brasil a uma emissora como a ZDF, pela internet, por exemplo. Nós temos uma midiateca, um tipo de arquivo de imagens, no qual as pessoas podem receber nossos programas e é possível fazer isso no mundo todo.

Leila Sterenberg – E a Globo News também pode ter telespectadores na Alemanha (risos).
Peter Frey – Exatamente. Correto! Com certeza é uma grande possibilidade quando as pessoas querem, por exemplo, aprender uma língua ou discutir circunstâncias políticas em um país.

Leila Sterenberg – Essa entrevista pode então… ser vista na Alemanha!
Peter Frey – Eu espero que você me envie o link (risos). 

Leila Sterenberg – O senhor, há pouco tempo, moderou o programa E agora, Oriente Médio?. Qual a sua opinião sobre o assunto? Depois das chamadas Revoluções do Facebook, como poderia a situação no Oriente Médio e no Norte da África se desenvolver?

Peter Frey – As pessoas devem compreender que são desdobramentos políticos enormes que as novas mídias tornaram possíveis. Os antigos mecanismos da esfera pública não funcionam mais e esses velhos regimes, velhas ditaduras não podem mais encarcerar o povo. O Facebook, o Google, a internet contribuíram para que fossem rompidas as algemas, mesmo em um país tão sombrio quanto a Líbia. Nós precisamos, no Ocidente e na Europa, na América, ver esse desenvolvimento com confiança. No final das contas é sobre liberdade e devemos confiar no povo e nos países árabes para montarem um sistema de liberdade e de democracia. Essa fase de transição vai ser difícil, vai haver retrocessos, e é um processo que durará anos.

Leila Sterenberg – O que o senhor acha da ampliação e do crescimento da Al-Jazeera [maior rede de televisão independente do mundo árabe, com sede no Qatar]? É um sinal de que os telespectadores, na maior parte do mundo, não conseguem se identificar com a mídia ocidental?
Peter Frey – Eu discordo. Eu acho que é mais uma questão de autonomia cultural, singularidade cultural, que, por sinal, foi uma dinastia árabe que progressivamente tornou possível. Não é apenas a Revolução do Facebook, é, de certa maneira, também uma Revolução da Al-Jazeera, porque a Al-Jazeera deu voz à oposição em muitos países e tornou-se uma mídia confiável. Isso é, sem dúvida, jornalismo imbuído dos valores ocidentais, da democracia ocidental, do Iluminismo, da crítica e, nesse sentido, eles aprenderam algo da BBC e da CNN. Eu compreendo que se não fosse por essa orientação pela mídia ocidental, que vem da Inglaterra ou dos Estados Unidos, eles não teriam tanta credibilidade porque são feitos por árabes para árabes. 

Leila Sterenberg – No começo do século, o senhor escreveu o livro De Bagdá a São Petersburgo: Meu caderno de viagem. O que impressionou mais o senhor em suas viagens?
Peter Frey –
Foi um tempo em que tive sorte de poder viajar muito pelo mundo. Eu publicava essas impressões com o título Vida em um mundo vulnerável. Precisamos precisamos ter essa consciência. Que nós, apesar do processo de globalização, que apesar da incrível intercomunicação por meio das linhas aéreas, que aumentam a cada dia, nós podemos hoje facilmente decidir estar em Nova York pela manhã, amanhã em Frankfurt e, depois de amanhã, em Pequim. Apesar da Internet e do Facebook, vivemos em um mundo impregnado de perigos, do fanatismo religioso, do extremismo político, do crescimento econômico incontrolável, da destruição ecológica, e, por sinal, também do perigo do aprofundamento da distância entre ricos e pobres. Isso é, portanto, também um problema para um país como o Brasil. Como podemos tornar esse crescimento distribuído de forma que a sociedade possa viver em paz e de maneira integrada? Nesse caso, do modelo europeu de igualdade social e paz social, devemos optar por um modelo de crescimento econômico que garanta o sucesso e que não se oriente por outros modelos, como por exemplo, o modelo chinês, onde o crescimento econômico combina-se com repressão política.

 

 

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