ALTERAÇÃO PROCESSUAL

Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário

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6 de junho de 2011, 14h40

A figura do “juiz das garantias” foi introduzida na redação final do Projeto de Lei 156/2009, aprovada pelo Senado, (Capítulo II do Título II do Livro I, artigos 14 a 17), e encaminhada no início deste ano (2011) à Câmara dos Deputados, onde se encontra.

Tudo partiu do Anteprojeto elaborado, em 2009, por uma Comissão designada pelo presidente do Senado, composta por renomados e ilustres juristas brasileiros.

Vou destacar alguns tópicos da Exposição de Motivos do Anteprojeto:

 

“Para a consolidação de um modelo orientado pelo princípio acusatório, a instituição de um juiz de garantias, ou, na terminologia escolhida, de um juiz das garantias, era de rigor”.

“O juiz das garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais”.

“O deslocamento de um órgão da jurisdição com função exclusiva de execução dessa missão atende a duas estratégias bem definidas, a saber: a) a otimização da atuação jurisdicional penal, inerente à especialização na matéria e ao gerenciamento do respectivo processo operacional; e b) manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação”.

“Evidentemente, e como ocorre em qualquer alteração da organização judiciária, os tribunais desempenharão um papel de fundamental importância na afirmação do juiz das garantias, especialmente no estabelecimento de regras de substituição nas pequenas comarcas”.

“A investigação não serve e não se dirige ao Judiciário, ao contrário, destina-se a fornecer elementos de convencimento, positivo ou negativo, ao órgão da acusação”. (grifos nossos).

 

A partir desses trechos, passo não só a analisá-los como a efetuar observações críticas do que consta do aludido projeto, no sentido da inconveniência e da inadmissibilidade do “juiz das garantias”, fruto do garantismo exacerbado dominante no meio acadêmico, que, não só pela instituição do juiz das garantias como por inúmeros outros trechos e propostas, e por levar em conta somente os direitos e interesses do réu – importantíssimos, sem dúvida -, olvida-se dos direitos da sociedade e dos da vítima e de sua família, podendo levar à impunidade, ao mau funcionamento e ao descrédito da Justiça Criminal, além de transformar o Processo Penal em um ramo “capenga” do Direito, uma espécie de “saci pererê” do ordenamento jurídico pátrio.

O juiz das garantias é inviável, desnecessário e arbitrário, além de integrar um sistema híbrido, confuso e contraditório.

Segundo levantamento anual feito pelo Conselho Nacional de Justiça, o Brasil possui, atualmente, uma média de oito juízes para cada grupo de 100 mil habitantes, muito abaixo da de países do chamado “primeiro mundo”, como alguns que adotam figuras parecidas com a do juiz das garantias, como Espanha, França, Itália e Portugal (que, aliás, juntos, cabem dentro do Brasil, diante de suas dimensões constitucionais); com efeito, possuem eles uma média entre dez a 17 juízes por 100 mil habitantes (dados extraídos da revista Consultor Jurídico de 14 de fevereiro de 2011 e revelados pelo Conselheiro Paulo Tamburini, do CNJ).

A Lei de Responsabilidade Fiscal fixou em 6% da receita da União e dos estados o teto para o orçamento do Poder Judiciário, engessando a possibilidade de autossustentação, de aprimoramento e de crescimento desse Poder, tão importante para o Estado Democrático de Direito.

São notórias as dificuldades financeiras que há muito tempo assolam a Justiça Federal e as Justiças Estaduais, inclusive nos estados mais desenvolvidos, como São Paulo.

Para este ano (2011), por exemplo, o Executivo estadual paulista cortou para menos da metade (de R$ 12 bilhões, propostos pelo Tribunal de Justiça, para R$ 5 bilhões), o orçamento do Judiciário bandeirante.

Há, pelo Brasil afora, muitas e muitas comarcas que não têm nenhum juiz, e os tribunais locais não conseguem preencher essas vagas, não só por falta de recursos como também pelo baixo nível de conhecimentos dos candidatos inscritos nos concursos de ingresso. No estado de São Paulo, consoante levantamento levado a cabo no ano passado pelo Tribunal de Justiça, cerca de 40% das comarcas têm apenas um magistrado.

Se nos ativermos ao Brasil como um todo, no qual as metrópoles e cidades de médio porte são minoria, mais de 50% das comarcas e das seções e sub-seções judiciárias têm apenas um juiz.

Os prédios dos fóruns, em sua maioria, são antigos, mal aparelhados, em mau estado de conservação (alguns nem papel higiênico têm em seus banheiros), pouco avançados na informatização e carentes, mesmo na Grande São Paulo, de outras coisas básicas (como copiadoras e computadores, e sei disso por experiência própria).

Há grande falta de material humano, como escreventes, escrivães, oficiais de justiça, estenotipistas, peritos, etc. Os que existem trabalham, usualmente, no limite, e constantemente paralisam seus serviços por meio de greves e outros movimentos, pleiteando aumentos salariais e melhores condições de trabalho.

As prateleiras dos cartórios (inclusive criminais) estão entulhadas de inquéritos e de processos, muitos dos quais colocados em corredores ou no chão.

O próprio presidente do Senado, José Sarney, apresentou, em sessão de 30 de novembro de 2010, uma emenda ao texto do Projeto de Lei 156, aprovado pela Comissão Especial Temporária, texto esse que fixava prazos para que os Poderes Judiciários Federal e Estaduais colocassem pelo menos um juiz das garantias em cada comarca ou seção judiciária do país. A emenda eliminou esses prazos (de três a seis anos), absurdos, irreais e até inconstitucionais, e foi aceita, como, aliás, se vê pela redação do atual artigo 748, inciso I, do Projeto, que não fixou nenhum prazo para tanto.

Por sinal, um dos membros da comissão encarregada da elaboração do anteprojeto, o ilustre jurista e professor Antonio Magalhães Gomes Filho, já advertira anteriormente, na sessão da comissão encarregada da elaboração do anteprojeto, do dia 26 de fevereiro de 2009 (conforme notícia constante do site Jusbrasil), que aquela determinação de prazos poderia dificultar a atuação de pequenas comarcas, uma vez que nem todas elas possuem mais de um juiz. E acrescentou o ilustre jurista e professor que, nas comarcas onde houver apenas um juiz, a legislação da Organização Judiciária determinará quem atuará como juiz das garantias, que, para ele, poderá ser o juiz de uma comarca próxima (grifo meu).

“Data maxima venia”, essa previsão não se sustenta na realidade brasileira. Pode valer para países como Portugal (que tem área menor que a do Estado de São Paulo), mas não para os rincões de Pindorama.

Há, em vários Estados tupiniquins, comarcas e sedes de seções e subseções judiciárias que se distanciam, das mais “próximas”, centenas de quilômetros (como no Amazonas, no Pará, no Acre, em Rondônia, em Tocantins, em Roraima, no Amapá, no Maranhão, no Piauí etc.), muitas delas acessíveis apenas por barco, o que faz com que o envio de documentos de uma para outra dure às vezes até uma semana ou mais… Imaginemos inquéritos policiais tramitando incessantemente entre comarcas (ou seções, ou subseções judiciárias) longínquas umas das outras, muitas vezes para que o juiz das garantias de uma delas decida sobre um pedido urgente, emanado da Polícia ou do Ministério Público de outra, de busca domiciliar, de prisão preventiva, de prisão temporária, de interceptação telefônica etc.

Evidentes as dificuldades logísticas, não somente nos locais anteriormente citados, como em praticamente todo o Brasil, inclusive no Estado de São Paulo, onde até a tramitação de cartas precatórias é problemática, ainda mais de inquéritos policiais…


Outro ilustre membro da comissão de juristas, o eminente processualista Jacintho Nelson de Miranda Coutinho, afirmou, em entrevista dada ao tablóide Carta Forense, em setembro do ano passado, que “a comissão, aqui, levou em consideração o fato de que em um CPP não se pode criar cargos, como é primário, mas dispondo sobre a competência é possível influenciar a que os tribunais saiam atrás de novos juízes (sic), o que é uma necessidade e uma demanda nacional. Com isso, ter-se-á novos magistrados, inclusive para as comarcas menores, mas não necessariamente com competência exclusiva de juiz das garantias, abrindo-se um espaço para uma maior repartição de trabalho.”

Doce ilusão, correspondente ao “wishful thinking” dos norte-americanos…

E, como consequência dessa inviabilidade dos juízes das garantias, muitos inquéritos terão tramitação extremamente morosa, e inúmeros processos serão anulados porque na fase investigatória não funcionou o juiz que deveria ter funcionado…

Enfim: o sistema de juiz das garantias é, além de inviável, burocrático, podendo gerar confusões, erros e desencontros, retardando investigações e medidas urgentes e, por consequência, os processos delas derivados, propiciando o advento indesejável da prescrição e incrementando a impunidade, de forma muito distante daquela “otimização da atuação jurisdicional penal” a que se refere a Exposição de Motivos do Anteprojeto da comissão de insignes juristas.

Outrossim, a outra justificativa da comissão, no sentido de que o sistema de juiz das garantias contribuirá para a “especialização” dos magistrados, não resiste à menor análise. Ficarão eles especializados em quê, já que não atuarão somente nos inquéritos policiais, mas também como “juízes dos processos”, em todos e quaisquer delitos?

A verdadeira especialização, altamente desejável, principalmente nos crimes financeiros e complexos, como lavagem de dinheiro, delitos contra o sistema financeiro, contra a ordem econômica, contra a regularidade das licitações e outros, dar-se-á pela criação de equipes especializadas da Polícia e do Ministério Público, bem como de varas judiciais especializadas, com delegados, promotores, procuradores da República e juízes bem preparados para entender os meandros das falcatruas perpetradas por banqueiros, empresários, empreiteiros de obras públicas e funcionários públicos, apreciando desde as intrincadas investigações realizadas pela Polícia ou pelo Ministério Público como as provas produzidas na instrução processual, como, ademais, ocorre em inúmeros outros países.

O juiz das garantias é desnecessário, porque hoje, como sempre foi, o juiz do processo exerce essa função também na fase pré-processual, sem prejuízo algum em relação à sua imparcialidade.

A Exposição de Motivos do Anteprojeto assevera que as investigações não são feitas para o Poder Judiciário, e sim para o órgão da acusação.

Nada mais errôneo.

O destinatário imediato delas é, de fato, o MP, em sua condição de único titular da Ação Penal Pública, para a formação de sua “opinio delicti”, necessária ao oferecimento da denúncia.

Mas o destinatário mediato delas é o Poder Judiciário, sim, e o aludido “distanciamento do juiz do processo em relação aos elementos colhidos na investigação”, mencionado na Exposição de Motivos, não é, de forma alguma, desejável, além de ser, como procurarei demonstrar, impossível.

Alguns chegam a dizer que o juiz do processo não pode ser “contaminado” pelos elementos coligidos no inquérito, como se este instrumento investigatório nunca contivesse em seu bojo a verdade real, como se (numa generalização indevida) todos os policiais fossem corruptos, violentos, torturadores e fraudadores de provas, a revelar indiscutível preconceito em relação à polícia judiciária. Que se extinga o inquérito policial, então…

Dizer-se que o juiz que funciona na fase de inquérito para decidir sobre interceptações telefônicas, quebra de sigilos, buscas domiciliares, decretações de prisões temporárias e preventivas etc. perde sua imparcialidade, ficando inclinado à condenação, é, no mínimo, falacioso.

Na maioria das vezes, os magistrados autorizam, na fase investigatória, diligências, mas ficam sabendo de seus resultados e do conteúdo da prova eventualmente coligida, somente mais tarde, quando da análise liminar da petição inicial da ação penal ou durante a instrução processual.

O juiz que autoriza uma busca domiciliar, por exemplo, não está pré-julgando o indiciado, assim como também o que decreta a prisão preventiva, pois, ao fazê-lo, formula apenas um juízo de cognição sumária, de acordo com o estado atual das investigações, sem se comprometer com o valor probatório delas, que será analisado posteriormente. Pode ele, inclusive, ter autorizado ou decretado tais atos e depois se afastar do caso e da comarca ou seção judiciária por promoção, remoção, aposentadoria etc.

Mesmo porque essas medidas todas, no sistema do próprio projeto, podem ser também autorizadas e decretadas durante o processo, pelo juiz da causa, que, por isso, não se torna automaticamente “suspeito”.

Fôssemos levar às últimas consequências o novo sistema que se quer implantar, teríamos que ter três ou mais juízes no mesmo processo criminal: um no inquérito, outro para decidir sobre o recebimento (ou a rejeição) da denúncia ou da queixa e sobre a absolvição sumária, além de outro para imposição de medidas cautelares, pessoais ou reais, no curso do processo, e, por fim, mais outro, somente para presidir a instrução e proferir a sentença…

O tal “distanciamento do juiz do processo” em face dos elementos probatórios colhidos na investigação é impossível, pois a ele cabem, entre outros atos :

1) O recebimento ou a rejeição da denúncia ou queixa (artigos 15, parágrafo 1º e 274 “caput” do projeto).

Que condições terá ele de realizar tais atos, senão consultando os autos do inquérito policial (ou outro tipo de investigação), para aquilatar da justa causa para a ação penal, assim entendida a viabilidade da acusação, baseada em um começo de provas que demonstre a existência de fundada suspeita contra o acusado, bem como das condições da ação e dos pressupostos processuais? Limitar-se-á a levar em conta a resposta inicial escrita do acusado e eventuais documentos que a acompanhem (artigos 272 e 273), fazendo vistas grossas às investigações, por mais completas, complexas e extensas que sejam? Cuidado com o Processo Penal saci pererê…

2) A absolvição sumária do acusado (artigo 275).

Essa esdrúxula figura, que já existe no Código de Processo Penal atual em razão das recentes reformas pontuais e é prevista pelo artigo 275 do projeto, depende de análise do mérito dos fatos e das provas constantes dos autos da investigação, para que o juiz possa considerar evidente uma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, por exemplo. Essa absolvição sumária configura, por sinal, verdadeiro julgamento antecipado da lide, com eiva, aliás, de inconstitucionalidade, pois impede o autor de produzir provas na instrução em audiência, ao contrário do que ocorre no Processo Civil, no qual, por força do artigo 331, inciso I, do Código de Processo Civil, o juiz só pode julgar antecipadamente a causa se não houver prova a ser produzida em audiência.

Que elementos terá o juiz do processo para absolver ou não sumariamente o acusado, se não puder formar seu convencimento com o que consta até então dos autos (a investigação e a resposta inicial escrita do réu)?

Ao receber a inicial, ao não absolver sumariamente o réu, permitindo, assim, o prosseguimento do processo, analisando, nesses casos, os elementos probatórios coligidos na fase investigatória, ficará ele impedido para julgar a causa, por ter sido “contaminado” por eles?


Diga-se de passagem que as funções de analisar a petição inicial (para recebê-la ou rejeitá-la) e a de absolver (ou não) sumariamente o acusado incumbem ao juiz do processo, pois, por força do “caput” do artigo 15 do projeto, as funções do juiz das garantias “cessa com a propositura da ação penal”.

3) A prisão preventiva também pode ser decretada pelo juiz do processo (artigo 535 do projeto).

Se for, por exemplo, solicitada pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia, que elementos terá o magistrado para decretá-la ou não, a não ser pelos dados constantes do inquérito e da resposta inicial do acusado?

Para decretar ou denegar o pedido de prisão preventiva no curso do processo, o juiz da causa deverá, queira-se ou não, haurir seu convencimento no material probante da fase investigatória, até mesmo para aquilatar da gravidade do fato, dos antecedentes do acusado, de sua periculosidade, de sua perseverança criminosa, de seu poder de influir na instrução processual, de sua facilidade em fugir etc.

Ao realizar tais atos (e outros), o juiz do processo não estaria perdendo seu “distanciamento das provas colhidas na investigação”? Teria de ser afastado por suspeição, para que um terceiro juiz passasse a presidir o processo? Estaria fatal e incuravelmente “contaminado” pela infecção da investigação policial?

E não é só.

“Ex vi” do parágrafo 2º do artigo 15 do Projeto, “as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz do processo, que, após o oferecimento da denúncia, poderá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso” (grifo nosso).

Como fazê-lo, sem examinar o inquérito?

Estranha situação essa, aliás, em que um juiz de primeiro grau (o do processo) reexamina, como se tribunal fosse, decisões de outro magistrado de mesmo grau…

Além disso, de acordo com o artigo 166 “caput”, “o juiz decidirá sobre a admissão das provas, indeferindo as vedadas pela lei e as manifestamente impertinentes, irrelevantes ou protelatórias” (grifo meu).

Como poderá ele considerar certas provas impertinentes, irrelevantes ou protelatórias, sem consultar os autos da investigação?

Por outro lado, dispõe o projeto que “os autos do inquérito instruirão a denúncia, sempre que lhe servirem de base”. E o parágrafo 3º do artigo 15 edita que “os autos que compõem as matérias submetidas à apreciação do juiz das garantias serão apensados aos autos do processo”.

Isso quer dizer que os autos do inquérito devem ser juntados ao processo, não sendo dele desentranhados (ainda bem). Já os autos de algumas medidas tomadas pelo juiz das garantias serão apensados aos autos principais do processo.

Será que consistirão eles verdadeiros “cofres fortes”, lacrados e invioláveis, não passíveis de consulta, em momento algum, pelo juiz do processo (ou pelos jurados)?

Sobre os jurados, aliás, o artigo 391, inciso III, proíbe que as partes, nos debates em plenário, façam menção “aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal, ressalvada a prova antecipada”. Isso não corrói a soberania do tribunal popular, podendo prejudicar, inclusive, o próprio réu?

Nota-se, ademais, incoerência do projeto, ao prescrever, no artigo 393, parágrafo 3º, que “os jurados terão acesso aos autos e aos instrumentos do crime se solicitarem ao juiz presidente”. Será esse acesso será parcial, com proibição de consulta ao inquérito (que faz parte dos autos)? O projeto não faz essa ressalva, não cabendo ao intérprete,k ou ao juiz presidente do júri, ou ao aplicador da lei, fazê-la.

Só haveria coerência no sistema se os autos da investigação fossem desentranhados dos autos do processo. Por sorte, não há essa previsão no projeto, mas isso, vamos e venhamos, quebra totalmente o sistema de “distanciamento brechtiano” que se pretende introduzir, demonstrando sua inviabilidade.

Ainda mais: como é pacífico, o inquérito policial não é imprescindível à formação da “opinio delicti” do Ministério Público, podendo ser substituído por outros instrumentos de convicção, como investigações levadas a cabo por Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), pelo Banco Central, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pela Secretaria de Direito Econômico (SDE), pelo Fisco de qualquer das entidades federativas (nos PAFs – Processos administrativos Fiscais), pelos órgãos da Administração Pública nos PADs (processos administrativos disciplinares), pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (no caso de lavagem de dinheiro), pela Controladoria-Geral da União – CGU (quando estiver envolvido funcionário público federal), ou por investigação realizada autonomamente pelo próprio Ministério Público (que vem sendo, progressivamente, aceita pelos tribunais) etc.

Nesses casos de investigações extrapoliciais, haverá juiz das garantias?

O juiz do processo não poderá haurir pelo menos parte de seu convencimento, quer para condenar, quer para absolver o réu, dos elementos nelas coligidos?

Mas, atenção: na verdade, a figura do juiz das garantias está umbilicalmente ligada ao artigo 168, “caput”, do Projeto, segundo o qual

 

“O juiz formará livremente seu convencimento com base nas provas submetidas ao contraditório judicial (grifo meu), indicando na fundamentação todos os elementos utilizados e os critérios adotados, resguardadas as provas cautelares, as não repetíveis e as antecipadas”.

 

Em outras palavras: o juiz do processo não poderá, nem sequer em caráter complementar, levar em conta o material probatório do inquérito policial (ou de outro tipo de investigação), com as exceções previstas no dispositivo.

É lógico que ninguém pode ser condenado somente com base em uma investigação.

Nada impede, contudo, que o magistrado sentenciante forme seu convencimento também com base na investigação, desde que ela seja confirmada por pelo menos alguma prova produzida na fase processual (como, ademais, ocorre há muito tempo e continua ocorrendo hoje em dia, de forma pacificamente aceita pela jurisprudência, há décadas).

Aliás, essas provas produzidas no inquérito e que podem, excepcionalmente (nos termos do artigo 168 “caput”) servir para formar a convicção do juiz do processo (cautelares, não repetíveis e antecipadas) são portadoras de nebuloso conceito.

A categoria “prova cautelar” não existe no projeto, mas talvez se refira às buscas domiciliares e pessoais (que o projeto não define como provas, mas sim “meios de obtenção da prova”), além de algumas perícias (como o exame de corpo de delito, do qual o indiciado e o ofendido podem participar oferecendo quesitos , consoante o parágrafo 3º do artigo 201). Não se fica sabendo, contudo, a que se refere essa expressão.

“Provas não repetíveis” (igualmente sem definição legal) devem ser aquelas cuja produção não pode ser refeita em juízo. Isso deveria valer para todo tipo de prova que se encaixasse em tal situação. Contudo, além da indefinição legal, temos o preceito do artigo 14, inciso VII, segundo o qual elas serão presididas pelo juiz das garantias “assegurados o contraditório e a ampla defesa”, o mesmo ocorrendo com as “provas antecipadas”, produzidas em razão de urgência.

A “irrepetibilidade” de certas provas, no entanto, não pode ser aquilatada a priori, só podendo ser determinada, muitas vezes, tempos depois de sua realização (sem contraditório) no inquérito ou na investigação (como o depoimento de testemunha presencial que vem a falecer sem que tenha sido feita “produção antecipada” dessa prova). Se, por exemplo, um jovem saudável de 20 anos de idade (não enquadrável, portanto, no artigo 190, que permitiria sua oitiva “antecipada”) presta, no inquérito ou na investigação, um depoimento de dez páginas, narrando pormenorizadamente o delito que presenciou, como prever que morrerá antes da instrução criminal, para que sua inquirição seja efetuada como “prova não repetível”?


Somente as “provas antecipadas” são definidas pelo projeto, mas tão-somente em relação às testemunhas (artigo 190) e à vítima (parágrafo único do artigo 191).

Ou seja: de acordo com o artigo 168 “caput”, o juiz só pode formar seu convencimento, ainda que complementarmente, com base em provas realizadas na fase investigatória, desde que submetidas ao contraditório e à ampla defesa.

Estamos querendo enfatizar, contudo, que muitas provas produzidas na fase inquisitorial, mesmo não “cautelares”, nem “não repetíveis”, nem “antecipadas”, mesmo realizadas sem contraditório judicial, devem ser levadas em conta pelo juiz do processo, não só para o recebimento ou a rejeição da inicial, como para a absolvição sumária (ou não) do acusado, ou, até mesmo, para a sentença que julga o mérito da causa (seja ela condenatória ou absolutória).

Que se ressalte, neste ponto, a enorme contradição do projeto: ao mesmo tempo em que cerca o inquérito policial de toda a proteção quanto aos direitos e garantias individuais, sob a supervisão constante de um juiz, quase nenhum valor probatório lhe dá… Sim, porque, de acordo com o “caput” do artigo 4º, uma das funções do juiz das garantias é a de ser “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal” .

Passo a exemplificar.

Como pode o juiz do processo, por exemplo, ignorar a confissão pormenorizada, firme e coerente prestada no inquérito pelo indiciado, na presença de seu advogado constituído?

E como fica, então, a interceptação telefônica, que, via de regra, é realizada na fase investigatória? O juiz não pode formar convicção com base nela, que tem se mostrado de grande valia principalmente nos casos de organizações criminosas, crimes do colarinho branco, tráfico e corrupção? Anote-se que esse meio de prova não pode, por sua própria natureza, e sob pena de se transformar em algo inútil, ser produzido com observância do contraditório e da ampla defesa.

Isso não infringiria o inciso XII do artigo 5º da CF, que permite a interceptação de comunicações telefônicas não só para fins investigatórios mas também para a instrução processual penal?

Teria o juiz de fazer “vistas grossas” ao depoimento minucioso, detalhado, verossímil e esclarecedor de uma testemunha presencial ouvida na investigação, e que, ao depois, desaparece, impossibilitando sua oitiva em juízo ?

Quanto à reprodução simulada dos fatos (reconstituição do crime), efetuada sem contraditório no inquérito, mas na presença do advogado do indiciado, de nada serviria, por mais útil que fosse ao esclarecimento detalhado sobre o modo de execução do delito?

E nos casos de prisão em flagrante, ficaria o juiz do processo impedido de constatar as circunstâncias em que se deu essa prisão, muitas vezes importantes para o deslinde da causa? Mesmo porque se ficarmos sempre dependendo da inquirição do condutor em juízo, muitas vezes ele – que, quase sempre, é um policial militar, envolvido em muitas ocorrências diárias – costumeiramente não se lembrará dos fatos com presteza e exatidão?

E mais: às vezes, o sujeito, preso em flagrante delito por certo crime, acaba confessando, ao ser interrogado, outros delitos, dos quais a polícia nem sequer tivera conhecimento prévio (por falta de lavratura de boletim de ocorrência pela vítima). Isso não tem valor probatório, ainda que inicial? A Polícia, que se saiba, não tem dons adivinhatórios nem bola de cristal, e, por isso mesmo, jamais poderia forçar alguém a confessar um crime cuja própria existência lhe é desconhecida… E isso consta do inquérito!

E o que dizer da perícia que muita vez é a primeira a ser feita, antes mesmo que se tenha certeza da existência de crime ou a menor suspeita de autoria, ou seja: a do local do fato? Nela, é absolutamente impossível permitir que indiciado e vítima façam quesitos: o primeiro, por ainda não existir, e a segunda, por ainda não ter sido, em vários casos, definida como tal, ou…por estar morta.

E se no inquérito tiverem sido colhidas provas que demonstrem a inocência do acusado, ou que ponham em dúvida sua culpa (como, por exemplo, o reconhecimento pessoal negativo do indiciado feito pela vítima na Polícia, ou positivo “sem muita certeza”? Nem em favor do réu o juiz do processo poderá espiar o conteúdo do inquérito policial? Pelo sistema do projeto, o magistrado, diante de um firme e categórico reconhecimento pessoal positivo do réu durante a instrução processual, pelo ofendido ou por testemunha, não poderá cotejá-lo com ato semelhante realizado na fase inquisitorial, para aquilatar da compatibilidade de ambos.

E por falar em cotejo, por qual misteriosa razão o projeto impede que o juiz do processo o faça, entre as provas produzidas “sob o contraditório judicial” e as que não o foram?

E os documentos juntados aos autos do procedimento investigatório? Não poderão, por mais importantes que sejam, servir como adminículo à formação do convencimento do juiz? Terão que ser formal e burocraticamente retirados dos autos do inquérito (que estão inseridos nos autos principais) e juntados aos do processo, para que valham alguma coisa?

Outra observação: muitas vezes (sem generalizarmos), as provas colhidas no inquérito é que trazem a verdade real, por vários motivos, como: 1) foram realizadas pouco tempo após a prática criminosa, quando a memória dos fatos ainda está clara na mente de vítimas, testemunhas, condutores, co-indiciados e peritos); 2) os depoimentos e as declarações prestados no inquérito são alterados em juízo em misteriosas “retratações” porque, entre o inquérito e a inquirição judicial, vítimas, peritos, testemunhas e co-autores ou partícipes foram corrompidos, coagidos, violentados ou convencidos a mentir perante o magistrado (como pude observar, em incontáveis ocasiões, em minha carreira de promotor de justiça); 3) muitos membros do Ministério Público e vários juízes criminais, infelizmente, não têm o menor interesse na busca da verdade, inquirindo burocraticamente na instrução as pessoas envolvidas no caso concreto, até mesmo preparando terreno para uma futura e planejada absolvição…

E mais: a tal proibição de utilização das provas do inquérito para a formação do convencimento do juiz do processo acarretará, inexoravelmente, um aumento considerável das inquirições de policiais (delegados, escrivães, agentes e investigadores) em juízo – que, com isso, ficarão ainda mais sobrecarregados do que já estão -, para que venham confirmar os atos levados a efeito na fase investigatória, submetendo-se-os ao “contraditório judicial”.

O sistema instituído pelo projeto é híbrido e peca pela incoerência.

Sim, porque, a teor de seu artigo 748:

 

“o impedimento do artigo 16 não se aplicará:
I – às comarcas ou seções judiciárias onde houver apenas um juiz, enquanto a respectiva lei de organização judiciária não dispuser sobre criação de cargo ou formas de substituição”.

 

É mister salientar que o artigo 16 dispõe:

 

“O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do artigo 14, ficará impedido de funcionar no processo, observado o disposto no artigo 748”.

 

Assim sendo, teremos, por tempo indefinido, a depender de normas de organização judiciária, dois tipos de juízes nos processos criminais: os que podem ser “contaminados” pelas provas contidas na investigação, e os que não podem sê-lo! Os primeiros, vacinados contra o vírus investigatório, e os últimos, com nenhuma imunidade contra essa contaminação! E os tribunais também: aqueles que julgarem apelações interpostas contra sentenças proferidas por “juízes legalmente contaminados” também se contaminarão (legalmente) pelo contágio dos elementos coligidos na fase investigatória.


Outrossim, foi mantido o atual sistema de arquivamento dos inquéritos policiais, por ordem do juiz das garantias, a pedido do Ministério Público, e o par. único do artigo 38, que corresponde ao artigo 28 do Código em vigor, coloca o dito magistrado na posição acusatória de provocar a atuação do órgão de cúpula do Ministério Público, por entender que a ação penal deve ser movida no caso concreto.

Que “sistema acusatório” é esse?

Por fim: o juiz das garantias é arbitrário e pode ser parcial.

Sim, porque quase todas as suas decisões são irrecorríveis, não se enquadrando nas hipóteses de agravo (artigo 473) nem de apelação (artigo 480).

Dir-se-á que o agravo será possível nos casos em que o juiz das garantias “deferir, negar, impor (sic), revogar, prorrogar, manter (sic) ou substituir qualquer das medidas cautelares, pessoais ou reais” (inciso V do artigo 473).

Ocorre que uma simples leitura dos dispositivos seguintes, que regulam o processamento do agravo, demonstra ser ele cabível somente contra decisões proferidas no curso do processo.

Quanto ao mandado de segurança (artigos 682 e seguintes), dificilmente será aceito pelos tribunais (como já não vem sendo aceito no caso do atual artigo 366 “caput” do Código de Processo Penal), pela ausência de “direito líquido e certo”. Além disso, sua tramitação frustrará, muita vez, a premência da realização de alguma diligência investigatória, ainda que com pedido de liminar.

A correição parcial (artigos 93 a 96 do Código Judiciário do Estado de São Paulo e artigo 6º, inciso I, da Lei Federal 5.010/1966) será de duvidosa e difícil aplicação, por não atacar decisões que contenham “error in judicando”, mas tão-somente o “error in procedendo”, além de tramitar morosamente como um verdadeiro recurso.

Por outro lado, o fato de o “juiz das garantias” ter sido previsto como fiscal da legalidade das investigações, como protetor somente dos direitos do suspeito ou indiciado (“salvaguarda dos direitos individuais”, no dizer do “caput” do artigo 14), já o transforma em verdadeiro “juiz de defesa”, o que afeta sua tão propalada (e desejável) imparcialidade.

O sistema acusatório, reintroduzido no Processo Penal pela Revolução Francesa de 1789, procurou colocar as três funções processuais (acusar, defender e julgar) em mão distintas e independentes entre si.

O espírito parcial “pro reo” do projeto se escancara em seu artigo 4º , segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”(grifo meu).

Indaga-se, então: pode o juiz substituir a atuação probatória do advogado de defesa?

Suprime-se – corretamente – a figura do “juiz acusador”, proveniente do processo inquisitivo medieval, mas se deixa aberto campo para acusação do “juiz defensor”…

Insisto: trata-se do Processo Penal “capenga”, o saci pererê…

Além de tudo isso, alguns dos poderes do juiz das garantias são amplos em demasia e outros colidem com o sistema acusatório, que o artigo 4º do projeto proclama aos quatro ventos.

Basta citarmos um exemplo:

O inciso IX do artigo 14 dá a esse magistrado (o das garantias) o poder enorme, vago, impreciso e obscuro de “determinar o trancamento do inquérito policial, quando não houver fundamento razoável para a sua instauração ou prosseguimento” (grifos meus).

Em tal situação, qualquer “fundamento razoável” (conceito subjetivo e indefinido) poderá interferir diretamente na investigação, com lesão ao sistema acusatório, que não proíbe, como já frisado, apenas o juiz acusador, mas também o juiz defensor. Isso, sem falarmos do verdadeiro cerceamento da investigação, eventualmente motivado por razões ou pressões políticas, econômicas, militares, sociais ou menos nobres, além de introduzir e reforçar o “achismo” atualmente vigente no processo penal (como ocorre , “exempli gratia”, com a absurda aplicação, importada da Alemanha, do “princípio da insignificância”, que não é previsto no Direito Penal Brasileiro, de acordo com o qual a conduta humana é insignificante e atípica quando o magistrado “acha” que é, ou é passível de investigação e punição quando ele “acha” que deve ser).

Hoje, o trancamento de um inquérito, conforme pacífica doutrina e remansosa jurisprudência, somente se dá por meio de Habeas Corpus, nos casos de atipicidade evidente da conduta investigada, inimputabilidade etária do indiciado ou extinção da punibilidade.

No caso do inciso IX do artigo 14 do projeto, porém, estamos diante de uma decisão irrecorrível, imprecisa, nebulosa, ampla em demasia. No silêncio do projeto, inclusive, correremos o risco de nos defrontarmos com esse tipo de decisão prolatada pelo juiz das garantias de ofício. Os laxistas de sempre dirão, por certo, invocando a regra do favor rei, que se trata de exceção à proibição constante do artigo 4º do projeto, que veda “a iniciativa do juiz na fase de investigação”. E o juiz das garantias, portanto, provavelmente poderá utilizar o inciso IX sem a necessidade, sequer, de impetração, pelo interessado, de “habeas corpus” (que é previsto em outro inciso, o XII, do mesmo artigo). Diga-se, en passant , que o projeto não prevê recurso algum contra a decisão concessiva, em primeiro grau, de HC, em cujo processo, no primeiro grau de jurisdição, não atua o Ministério Público…

Diante de tantas aberrações, que tal suprimir inteiramente o juiz das garantias (artigos 14 a 17 do projeto e todos os demais que a ele se refiram), inserindo, em seu lugar, no Capítulo II do Título II do Livro I do projeto, a regulamentação da investigação criminal efetuada pelo Ministério Público, prevista há muito tempo nos mesmos poucos países (Portugal, Espanha, Itália Estados Unidos) em que existem figuras parecidas com a do juiz das garantias?

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