Tipo societário

Norma da Receita viola Direito Privado de operadoras

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6 de junho de 2011, 21h04

É preciso analisar a Instrução Normativa 1.052/2010 proferida pela Receita Federal e as implicações deste ato em relação às operadoras de saúde que se perfaçam na forma de cooperativa – sociedade simples. Importa destacar que o artigo 3º da mencionada Instrução veio a gerar a obrigatoriedade para as operadoras de saúde quanto à escrituração fiscal digital referente ao PIS/PASEP e a Cofins, decorrente dos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2012.

Art. 3º – Ficam obrigadas a adotar a EFD-PIS/Cofins, nos termos do art. 2º do Decreto nº 6.022, de 2007:

§ 2º A obrigatoriedade disposta neste artigo aplica-se às pessoas jurídicas referidas nos §§ 6º, 8º e 9º do art. 3º da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, e na Lei nº 7.102, de 20 de junho de 1983, em relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2012.

Sabe-se que as cooperativas apresentam características extremamente peculiares, tanto que se verifica legislação especifica (Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971). Sendo assim, não há que se confundir o conceito de cooperativa com empresa. A finalidade destas, dentre outros, se faz de forma o suficiente para evidenciar que se trata de situações distintas. Cite-se Walmor Franke, o qual caracteriza as formas societárias acima mencionadas:

A cooperativa operando com a clientela associada no intuito de melhorar-lhe a situação econômica mediante serviços específicos que lhe presta, não têm a cooperativa razão para lucrar a suas expensas. Não é esse o caso das empresas do direito mercantil, cujo fim é alcançarem para seus integrantes uma renda proporcional ao capital investido, realizada por meio de negócios efetuados principalmente com terceiros e, eventualmente, com os próprios sócios, que nessas operações, se encontram na posição de terceiros. Nas cooperativas, que operam em círculo fechado com clientela associada, as diferenças entre receitas e as despesas, apuradas nos balanços anuais, quando positivas, podem ter uma aparência de lucro. Na realidade, porém, trata-se de ‘sobras’ resultantes de haver o associado pago a mais pelo serviço que a cooperativa lhe prestou ou, inversamente, de ter ela retido um valor excessivo como contraprestação pelo serviço fornecido. As ‘sobras’, tecnicamente, não são ‘lucros’, mas saldo de valores obtidos dos associados para cobertura de despesas, e que, pela racionalização ou pela faixa de segurança dos custos operacionais com que a cooperativa trabalhou, não foram gastos, isto é ‘sobraram’, merecendo, por isso, a denominação de ‘despesas poupadas’ ou ‘sobras’.[1]

Necessário abordar quanto à distinção entre a cooperativa – sociedade simples e a sociedade empresária, uma vez que o SPED (Sistema Público de Escrituração Digital), objeto deste estudo, apresenta por característica básica, a escrituração comercial e fiscal dos empresários e das sociedades empresárias. Portanto, verifica-se que a obrigação não se estende às sociedades simples. Situação que leva a maiores reflexões quanto à Instrução Normativa em análise, vez que a mesma, conforme o informado acima, imputa às sociedades simples que estas remetam ao Fisco as informações que deveriam ser encaminhadas apenas pelas sociedades que apresentem natureza empresária. Cabe mencionar que a obrigação quanto ao SPED adveio da Lei 8.218/1991, artigo 11, e do Decreto 6.022/2007.

Verifica-se assim, conflito entre as normas acima elencadas e a Instrução Normativa propriamente dita, o que gera margens a discussão quanto à legalidade do ato. Isto posto, cabe mencionar a pirâmide legislativa que consta do artigo 59 da Constituição Federal, a qual compreende quanto ao processo legislativo. Destaca-se que há o entendimento de que as normas ali dispostas se apresentam de forma hierarquizada.

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I – emendas à Constituição;

II – leis complementares;

III – leis ordinárias;

IV – leis delegadas;

V – medidas provisórias;

VI – decretos legislativos;

VII – resoluções.

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

Mediante simples leitura do mencionado artigo, verifica-se que tamanha a fragilidade da Instrução Normativa quanto à força normativa da mesma, esta sequer encontra-se elencada dentre as possibilidades compreendidas no rol do citado artigo. Neste sentido, cabe destacar posicionamento emitido pelo Tribunal Regional Federal e pelo Supremo Tribunal Federal:

ADMINISTRATIVO. CADASTRO NACIONAL DAS PESSOAS JURÍDICAS. CNPJ. NEGATIVA DE INSCRIÇÃO. EXISTÊNCIA DE PENDÊNCIAS FISCAIS. INSTRUÇÕES NORMATIVAS/SRF NºS 112/94 E 82/97. INADEQUAÇÃO DO INSTRUMENTO LEGAL. AFRONTA AO ART. 170 DA CF/88. CARÁTER PUNITIVO. SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF. INSTRUÇÕES NORMATIVAS 20/99 E 200/02. SUPERVENIENTES E MODIFICATIVAS.

I. As Instruções Normativas, enquanto atos normativos secundários, buscam seu fundamento de validade na lei, prestando-se a dar exeqüibilidade aos ditames legais, nunca inovando o Direito, apenas exercitando condições para a sua concretização.

II. Normas administrativas, ao condicionarem a efetivação do registro da impetrante no CNPJ, à inexistência de débitos fiscais estão a desbordar os limites da lei instituidora do cadastro, malferindo, pois, a hierarquia das normas, em direta violação ao Princípio da Legalidade. (…)"

(Destacamos)[2]

ACAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – AGRAVO REGIMENTAL – IMPUGNACAO DE INSTRUCAO NORMATIVA DO DEPARTAMENTO DA RECEITA FEDERAL – ALEGADA VULNERACAO DE PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTARIOS – SEGUIMENTO NEGADO – NATUREZA DAS INSTRUCOES NORMATIVAS – CARATER ACESSORIO DO ATO IMPUGNADO – JUIZO PREVIO DE LEGALIDADE (…)

As instruções normativas, editadas por órgão competente da administração tributaria, constituem espécies jurídicas de caráter secundário. Cuja validade e eficácia resultam, imediatamente, de sua estrita observância dos limites impostos pelas leis, tratados, convenções internacionais, ou decretos presidenciais, de que devem constituir normas complementares. Essas instruções nada mais são, em sua configuração jurídico-formal, do que provimentos executivos cuja normatividade esta diretamente subordinada aos atos de natureza primaria, como as leis e as medidas provisórias, a que se vinculam por um claro nexo de acessoriedade e de dependência. Se a instrução normativa, editada com fundamento no art. 100, I, do código tributário nacional, vem a positivar em seu texto, em decorrência de ma interpretação de lei ou medida provisória, uma exegese que possa romper a hierarquia normativa que deve manter com estes atos primários, viciar-se-a de ilegalidade e não de inconstitucionalidade. (…).[3]

Depreende-se que a Instrução Normativa corresponde a ato normativo secundário, que contém a sua função limitada a nortear preceito legislativo pré-existente. No caso, verifica-se que o conteúdo da Instrução Normativa pretende inovar no ordenamento jurídico, já que através da mesma gera uma obrigação a qual não existia anteriormente.

Sendo assim, interessante verificar se o instrumento legislativo utilizado se faz de forma adequada e legal. Paira o entendimento de que ante às razões expostas, a obrigação não poderia se estender às sociedades civis, uma vez que ao agir desta forma, haveria patente violação ao preceito constitucional basilar, ao princípio da legalidade. A Constituição Federal, esta norteadora de todo o sistema normativo, preconiza que deve-se necessariamente se ater aos preceitos legais existentes e vigentes naquele dado momento.

Ao se considerar como legítima a situação ora apresentada, estaria a possibilitar a equiparação entre o conceito de sociedade empresária à sociedade simples, situação que não apresenta guarida no universo jurídico, ante a incomunicabilidade dos institutos. Conforme o mencionado, ambas as figuras apresentam características totalmente distintas, o que veda qualquer tentativa de proximidade, tanto que mediante o já destacado, as cooperativas se regem mediante legislação específica.

Neste diapasão, conste-se o artigo 110 do Código Tributário Nacional, que contempla que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e alcance dos conceitos e forma do direito privado. Sendo assim, resta demonstrado quanto à ausência de suporte jurídico no que tange à adoção da obrigação mediante aos fundamentos e à via eleita.

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Conforme o mencionado, ao se considerar os termos da Instrução Normativa como legal e válido, estaria-se, a bem da verdade, a deixar margens para equiparar a sociedade simples à empresarial, de forma a modificar todo o conteúdo vigente acerca dos tipos societários e, via de consequência, a confrontar a matéria posta do direito privado, sendo que tal se apresenta expressamente vedado de acordo com o CTN.

Ademais, insta salientar que mesmo que se trate de obrigação acessória e, portanto, desvinculada da obrigação principal, para o presente, imprescindível constar quanto à discussão no que se refere à tributação das cooperativas e os tributos em destaque, PIS /Pasep e Cofins.

Vale mencionar que a cooperativa apresenta seus atos divididos em duas categorias: ato cooperativo e ato não cooperativo. E neste exato momento, da divisão em categorias quanto aos atos, inicia-se a discussão quanto à incidência ou não dos tributos em relação ao ato cooperativo. Ultrapassado este enfrentamento, tem-se a discussão quanto à limitação da extensão dos atos — qual ato efetivamente pode ser considerado de natureza cooperativa e qual pode ser considerado de natureza não cooperativa.

A questão, portanto, se faz extremamente delicada em relação aos enfrentamentos judiciais existentes quanto ao operacional dos tributos, posto que há discussão quanto à base de cálculo e deduções passíveis. Desta feita, pretende-se atentar para outra situação, que consiste no quadro atual polêmico em relação à tributação das operadoras no que se refere ao PIS e a Cofins.

Registre-se a tamanha repercussão quantos aos fatos expostos. Já foram apresentadas diversas consultas à Receita Federal, e a Receita vem se posicionando no sentido da efetiva obrigatoriedade quanto ao cumprimento da obrigação ora em debate.

SOLUCAO DE CONSULTA Nº 125 SRRF/6RF-DISIT, DE 24/11/2010

(DO-U S1, DE 06/12/2010)

ASSUNTO: Obrigações Acessórias

EMENTA: As operadoras de planos de assistência à saúde estão obrigadas à adoção da EFD-PIS/COFINS em relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2012.

DISPOSITIVOS LEGAIS: IN RFB nº 1.052/2010, artigo 3º, § 2º.

SANDRO LUIZ DE AGUILAR

Chefe da Divisão

Pretende-se com as informações acima apenas destacar quão delicada se apresenta a obrigação ora instituída, seja acerca da discussão quanto à legalidade do ato em razão do veículo introdutor da norma, seja em prol dos fundamentos basilares utilizados, ou acerca da discussão judicial existente acerca da própria tributação.

Caso as cooperativas venham a optar por impetrar ação de forma a contestar a legalidade da Instrução Normativa apresentada, estas devem se atentar para o fato de que o descumprimento da normativa implica em multa de elevada monta. Sendo assim, sugere-se que de forma paralela a eventual demanda, estas cumpram para com as obrigações que lhe foram impostas até que se digne o julgamento da lide.

 


[1] FRANKE, Walmor. Direito das Sociedades Cooperativas – Direito Cooperativo. São Paulo: Saraiva, 1973.

[2]TRF da 3ª Região, Processo nº 1999.0399046787-3, DJ 09/04/2003, DP 23/06/2003:

[3] STF, ADI 365/DF, em 07/11/1990

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