Direito e meio ambiente

"Falta liderança para levantar a bandeira da água"

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4 de junho de 2011, 9h07

Spacca
O Brasil vem tomando medidas importantes no sentido de proteger e preservar as reservas hídricas de que dispõe. A Constituição Federal de 1988 foi um passo fundamental, ao tornar todas as águas de propriedade dos estados ou da União. Mas a legislação ainda tem muito a avançar. O “direito das águas” foi tema de entrevista feita pela ConJur com o promotor Eduardo Coral Viegas, integrante do Ministério Público do Rio Grande do Sul, estado pioneiro na proteção desse bem essencial para a vida.

Há 30 anos, o Rio Grande do Sul se consolidou como referência no esforço pela preservação do meio ambiente, reconhecido tanto pela organização da sociedade civil como pela institucionalização de políticas públicas — até então inéditas.

A Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Natural), por exemplo, completou 40 anos em abril e é a entidade mais antiga do país na militância ambientalista. As suas passeatas e caminhadas estão marcadas na memória dos gaúchos e, principalmente, dos porto-alegrenses. No final dos anos 80, período de grande efervescência política, os protestos gaúchos tiveram grande influência para a introdução do capítulo do meio ambiente na nascente Constituição Federal.

O novo marco constitucional permitiu avanços na proteção e regulação dos recursos naturais em todo o Brasil. A implementação da técnica do plantio direto (sem revolvimento do solo), a criação de microbacias (gestão integrada de solo, rios e vegetação) e a legislação da água sinalizavam que o Rio Grande do Sul viveria sob um padrão europeu nas décadas seguintes. Puro engano.

‘‘Outros estados já implantaram os principais instrumentos de gestão da água, e nós ainda não. Por qual razão não cobramos pela água? Onde está nosso Plano Estadual?’’, questiona-se o promotor Eduardo Viegas. Para ele, a falta de liderança política deixou o estado estagnado nestas questões, pois ninguém quer assumir o ônus das mudanças. ‘‘Fomos pioneiros em quase tudo, e, hoje, como estamos?’’

Durante a entrevista, Eduardo Viegas, que é também professor universitário, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental, discorre sobre as questões jurídicas da água no Brasil, com raro desembaraço. Diferentemente de outros jovens que viveram a epopeia da luta ambientalista das décadas de 70 e 80, Eduardo Viegas não seguiu a política, mas abraçou as letras jurídicas e o ensino universitários, que lhe permitiram conhecer o assunto pelo viés legal.

Viegas se tornou uma das melhores cabeças do estado na questão jurídica da água. O seu primeiro livro sobre o assunto, Visão Jurídica da Água, é referência para quem precisar se situar na legislação.

Leia a entrevista:

ConJur — Nesta Semana do Meio Ambiente, o tema água volta a ser discutido nos mais diversos foros, nos aspectos de manejo, gestão e preservação dos mananciais. Mas não é preciso dar um foco jurídico a esta discussão, para que se possa avançar no marco legal?
Eduardo Coral Viegas — A Semana do Meio Ambiente e o Dia da Água [22 de março] são momentos de reflexão. Temos de focar a questão sob vários ângulos e o jurídico é essencial no processo de implantação de uma proteção mais efetiva do direito fundamental de acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada. A água é um tema universal, tratado por praticamente todas as ciências. Assim como há múltiplos usos e usuários, conforme o artigo 1º, inciso IV, da Lei 9.433/97, há interesse e estudos multidisciplinares sobre a gestão hídrica. Quando comecei a escrever sobre o direito das águas, não havia mais do que meia dúzia de livros jurídicos na área. Visão Jurídica da Água, que publiquei em 2005, foi um dos primeiros. Antes dele, lembro de poucos, escritos por Paulo Affonso Leme Machado, Vladimir Passos de Freitas e Maria Luíza Machado Granziera. Atualmente, são muitas dezenas. Ao longo dos últimos anos, os profissionais da área do Direito passaram a abordar a temática de uma maneira mais constante e profunda. O jurista não deve se focar em discorrer a respeito da água sob a ótica de outras disciplinas, podendo apenas nelas transitar, citando, de preferência, as fontes de consulta. Nossa tarefa é dar a conotação jurídica à questão, sob pena de incorrermos em erro que tenho visto corriqueiramente. Há ainda muitas questões tortuosas a serem trabalhadas em nossa área de atuação.

ConJur — Como o bem jurídico água é visto na Constituição brasileira?
Eduardo Coral Viegas — O direito de acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada é um direito humano fundamental. Sem ele, não se pode gozar de outros direitos da mesma natureza, como os direitos à vida, saúde e liberdade. A escassez de água impede o ser humano até mesmo de buscar e manter um emprego, o que é essencial para sua sobrevivência pessoal e familiar. O Brasil, preocupado com essa realidade, vem tomando medidas importantes no sentido de proteger e preservar as reservas hídricas de que dispõe, que são muitas. Um passo fundamental foi dado com a Constituição de 1988, que tornou todas as águas propriedade dos estados ou da União. Quase todas as águas são dos Estados-membros, inclusive a integralidade das águas subterrâneas. E algumas reservas estratégicas são da União, como as que banham mais de um estado ou façam limite com outros países [artigos 20, inciso III, e 26, inciso I]. O restante veio tratado pela lei ordinária, em especial pela Lei das Águas [Lei 9.433/97].

ConJur — Em termos legais, como se repartem as atribuições dos governos federal, estaduais e municipais — já que estes últimos fazem o tratamento para torná-la potável?
Eduardo Coral Viegas — As águas pertencem apenas aos estados e à União. Os municípios exploram o fornecimento de água justamente por ser da competência municipal a exploração de serviços públicos de interesse local [artigo 30, inciso V, da Constituição Federal]. É o caso do saneamento básico, que consiste no fornecimento de água tratada à população e no recolhimento, transporte e destinação do esgoto sanitário. Assim como não há águas particulares, também não existem águas municipais no Brasil.

ConJur — Quer dizer que o estado é o único dono da água? Que deveres e prerrogativas dispõem, de um modo geral?
Eduardo Coral Viegas — Exato. Uma das tarefas mais importantes do poder público é a regulamentação da gestão hídrica. Nesse passo, após a Constituição Federal de 1988, a legislação brasileira sobre recursos hídricos avançou significativamente. A Lei das Águas foi acompanhada de vários instrumentos normativos federais, estaduais e municipais. No início de 2006, publicou-se o Plano Nacional de Recursos Hídricos. Ao lado do arcabouço legal, surgiram fontes secundárias de relevo, como doutrina especializada, decisões jurisprudenciais, atos dos Comitês de Bacias, dos Conselhos de Recursos Hídricos, entre outros. Enfim, pode-se sustentar que um novo “direito de águas” está sendo rapidamente construído nos últimos anos, e que as inovações rompem com os paradigmas do Código Civil de 1916 e do Código de Águas de 1934. A gestão da água deve ser descentralizada e participativa, nos termos do artigo 1º, inciso VI, da Lei das Águas. Portanto, as responsabilidades não são apenas do estado, mas também da sociedade de um modo geral, como determina, aliás, o artigo 225, caput, da Constituição Federal.

ConJur — Os particulares não podem ser donos de aguadas, poços artesianos, veios d’água, barragens etc.? E as empresas que engarrafam água mineral?
Eduardo Coral Viegas — Não podem ser donos, só usuários. E os modelos de autorização para uso dos recursos hídricos têm regimes distintos. No caso do Rio Grande do Sul, os proprietários de áreas onde existam aguadas, poços artesianos, nascentes e barragens necessitam de outorga de uso destas águas, concedidas pelo Departamento de Recursos Hídricos, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, nos termos da Lei do Rio Grande do Sul 10.350/94. O regime de uso das águas minerais é diferente e necessita da autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Em muitos casos, também há necessidade de licenciamento ambiental, se a atividade for potencialmente poluidora, conforme a Resolução 237/97/Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente]. Estes bens naturais são protegidos e de uso comum de toda a sociedade, o que explica o cuidado e as exigências legais.

ConJur — E o caso dos agricultores, para quem a água se constitui num insumo vital, sem o qual não há como produzir alimentos? Eles pagam pela água que consomem? Se não pagam, isso acontecerá?
Eduardo Coral Viegas — Antes de responder esta questão, cabe um esclarecimento necessário. A cobrança pela água é apenas um dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, que tem como finalidade primordial “incentivar a racionalização do uso da água”, conforme redação do artigo 19 da Lei 9.433/97. Os agricultores, desde a aprovação da Constituição de 1988, não são mais proprietários dos mananciais hídricos existentes em suas propriedades. As águas são todas públicas, e quem delas fizer uso em volumes significativos (caso da agricultura, que consome 70% do total) terá de pagar por isso, conforme o princípio do usuário-pagador. Entretanto, até o momento, nenhum agricultor pagou pelo uso da água no Rio Grande do Sul, porque a cobrança ainda não foi implementada. Nosso estado foi pioneiro em vários aspectos da política hídrica nacional. Só para citar dois relevantes exemplos, aqui nasceram os dois primeiros Comitês de Bacia do País — Sinos e Gravataí; e nossa Lei das Águas, de 1994, serviu de base para a Lei Nacional das Águas, de 1997. Mas há longa data estamos estagnados. Outros estados já implantaram os principais instrumentos de gestão da água, e nós ainda não. Por qual razão não cobramos pela água? Onde está nosso Plano Estadual? Estamos respondendo aos pedidos de outorga? Temos agências de águas? E o Conselho Estadual respeita, em sua composição, a gestão democrática e participativa, ou o poder público tem assento majoritário? Não cobramos porque não queremos. Falta lei estadual, sim. Mas ela é necessária? Entendo que não, pois a Lei Federal 9.433/97 dá o embasamento jurídico de que se precisa. Mas temos Agências de Águas para dar o suporte técnico aos Comitês de Bacia e para efetivar a cobrança? Não. E por qual motivo? Falta de vontade política.

ConJur — E o que mais falta?
Eduardo Coral Viegas — Um Plano Estadual. Para isso, é necessário, antes, alterar a Lei estadual 10.350/94, para que sua aprovação se dê pelo Conselho Estadual, e não por lei. E por que isso não é feito? E a outorga, ao menos isso fazemos? Sim, mas muito malfeito, pois o Departamento de Recursos Hídricos não dispõe de estrutura mínima. Lá, há milhares de pedidos de outorga pendentes de exame. E menos ainda fiscalizam a utilização do bem público, inclusive da superexploração do precioso Aquífero Guarani. Temos muitos órgãos interessados na implementação da política estadual de recursos hídricos. Mas são órgãos técnicos. No Rio Grande do Sul, falta uma liderança política que leve à frente o assunto de forma prioritária, que levante a “bandeira da água”, que promova os ajustes que precisam ser feitos.

ConJur — Os arrozeiros gaúchos, que ostentam uma das lavouras mais tecnificadas do mundo, argumentam que, na verdade, são usuários e não consumidores finais de água, pois esta passa pela lavoura e é devolvida limpa ao meio ambiente. Isto é fato? Por quê?
Eduardo Coral Viegas — Como usuários, necessitam de outorga e licença ambiental em seus empreendimentos, uma vez que se trata de atividade efetiva ou potencialmente poluidora, nos termos da Lei Federal 6.938/81. Há controvérsias sobre a qualidade da água lançada pelas lavouras no ambiente após seu uso da cultura de arroz. Parte dos materiais em suspensão sofre processo de filtragem e decantação quando se desloca pelo sistema de drenagem das lavouras, mas há de se destacar a perigosa contribuição dos diversos tipos de agrotóxicos utilizados na atividade. Visualmente, a água pode parecer ‘‘limpa’’, mas, se analisada quimicamente, a presença desses agroquímicos representa grave risco de poluição e contaminação ambiental. Em muitos casos, nas lavouras onde se aplica a cultura do pré-germinado, as canchas para plantio do arroz recebem agrotóxicos para evitar o crescimento de outras plantas invasoras (herbicidas), misturando-se ao lodo. Esse material não é decantado. É lançado diretamente nos cursos d’água, alterando as condições ambientais dos arroios e rios. Além disso, as lavouras devem observar as distâncias mínimas das áreas de preservação permanente (como a mata ciliar), o que em muitos casos não ocorre.

ConJur — Muitos agricultores também alegam que são, na verdade, produtores de água. Há cerca de 40 anos, os produtores de arroz fazem barragens e açudes para armazenar água. Retendo este bem precioso, conseguem viabilizar a produção de arroz, gerar empregos, renda e impostos para a sociedade. Se não tivessem a preocupação em segurar esta água, esta se perderia no oceano, sem gerar nenhuma riqueza ou benefício. O governo e a sociedade devem levar em consideração estes aspectos, para não jogar os produtores contra a opinião pública?
Eduardo Coral Viegas — Nas culturas de arroz, é muito comum os conflitos pelo uso da água. Um produtor faz reserva de água e altera o regime hídrico do rio ou arroio, gerando repercussões que perpassam a sua propriedade. O que se questiona não é o fato de os produtores de arroz utilizarem ou não a água, mas a forma como isso é feito. Quando um produtor de arroz aplica doses maciças de veneno em suas culturas; altera ou desvia os cursos d’água, sem autorização prévia dos órgãos competentes; faz reserva sem observar a vazão ecológica mínima para sustentar a vida à jusante de seu empreendimento, está causando danos ao meio ambiente. Por outro lado, um produtor que evita o desperdício de água, faz reciclagem da mesma, observa as área de preservação ambiental, reduz o uso de agrotóxicos e realiza os devido licenciamento da sua atividade, não pode ser comparado ao primeiro. Estes dois comportamentos não estão claramente diferenciados pelos órgãos de representação dos arrozeiros. É preciso separar o joio do trigo, para não ser injusto com aquele que cumpre as normas ambientais vigentes. Entretanto, em ambos os casos, o uso da água necessita de outorga prévia do órgão ambiental competente, e sua obtenção é de caráter precário.

ConJur — Quais as principais ações do Ministério Público no sentido de preservar as bacias estaduais?
Eduardo Coral Viegas — O Ministério Público gaúcho aprovou, em 2005, o seguinte Enunciado: “O MP adota o tema ‘proteção da água’ como prioridade absoluta, na esteira das mais modernas tendências mundiais, em razão da escassez quali-quantitativa dos recursos hídricos, tomando-o como assunto de interesse institucional”. Nesse passo, instituiu, em 2010, a atuação regional por bacia hidrográfica. O primeiro modelo foi instituído nas bacias do rio dos Sinos e do Gravataí. O promotor de Justiça Daniel Martini vem realizando excelente trabalho na proteção destas bacias. Uma de nossas grandes preocupações também é com as águas subterrâneas. Os poços são furados sem controle e, da mesma forma, são negligenciados em seu uso. É comum encontrarmos poços artesianos perfurados sem a menor técnica, que depois ficam abandonados, sem nenhuma proteção. Este descuido leva à contaminação das águas subterrâneas. Desde o final da década de 1990, o Ministério Público do Rio Grande do Sul vem trabalhando no sentido de coibir o uso de água de poços de captação nos locais alcançados por redes de abastecimento de água potável, pois seus efeitos prejudiciais são inúmeros. Pelo que consta, o único estado brasileiro a ter legislação proibindo o uso de água de fontes alternativas nas zonas servidas por redes gerais é o Rio Grande do Sul, que permite apenas os usos em agricultura, floricultura e industriais. A fundamentação jurídica que vem embasando os litígios, crescentes, em torno do assunto é a Lei 6.503/72 [artigo 18] e seu Decreto regulamentar [23.430/74, artigos 87, 96 e 97]. O Ministério Público entende que tais diplomas jurídicos são legais e constitucionais. Porém, muitos julgados são no sentido de entender que o Decreto 23.430/74 é ilegal, pelo quê, afastam sua incidência. O que há de inovação nessa seara é a Lei 11.445/2007, que estabeleceu diretrizes nacionais para o saneamento básico, e que tratou do uso de água de fontes alternativas, proibindo-o nos locais abastecidos por rede pública. Por isso, estou otimista no sentido de que o combate ao uso de fontes alternativas, quando desnecessário, será reforçado por decisões que levem em consideração as inovações da Lei Federal de Saneamento.

ConJur — Quais os crimes mais comuns em que incidem os infratores e a quê penalidade estão sujeitos, se condenados?
Eduardo Coral Viegas — Infelizmente, poucos são os casos de condenação pela prática de crimes ambientais, envolvendo os recursos hídricos. A falta de uma legislação específica dificulta bastante. Temos a Lei dos Crimes Ambientais [Lei 9.605/98], mas ela não disciplina como criminosas diversas condutas de alto impacto negativo ao meio ambiente ligadas à (má) gestão hídrica.

ConJur — O senhor colaborou com a redação de um projeto de lei que criminaliza o mau uso da água, apresentado no ano passado na Câmara dos Deputados pelo deputado Cléber Verde, do Maranhão. O que prevê este projeto de lei e como anda a sua tramitação?
Eduardo Coral Viegas — Foi apresentado parecer favorável, em maio, na Comissão de Meio Ambiente. Trata-se de um projeto de lei inédito, que estabelece a punição para condutas envolvendo recursos hídricos e saneamento. Ele foi elaborado com minha participação e a do desembargador federal Vladimir Passos de Freitas, que foi convidado pelo deputado Cleber Verde para redigir o texto. É fundamental que, ao lado dos crimes em geral, o legislador tipifique condutas, que são cada vez mais peculiares. A Lei dos Crimes Ambientais permite a punição de alguns agentes que abusam da água, mas é insuficiente para abranger outras condutas extremamente gravosas à sociedade. Segundo o texto do projeto de lei, passam a ser ilícitos penais: perfurar poços sem licença ambiental; extrair água de poços sem outorga; lançar efluentes líquidos sem tratamento em mananciais; deixar de tamponar poços quando esgotada a autorização para sua exploração; deixar o proprietário de imóvel urbano de se conectar às redes de abastecimento de água e de esgoto sanitário postas à sua disposição; adotar o agente público providência contrária a deliberação do Comitê de Bacia ou do Conselho de Recursos Hídricos. As penas variam de detenção mínima de seis meses até reclusão de cinco anos, e multa. A proposta foi acolhida na íntegra, utilizando, inclusive, a exposição de motivos sugerida por nós. Procuramos criminalizar as condutas mais graves e recorrentes nas Promotorias de Justiça. São questões sobre as quais sinto, há mais de 10 anos, dificuldade para coibir e para responsabilizar aqueles que atentam contra os mananciais superficiais e subterrâneos, além de desconsiderar a Lei das Águas, que é das mais avançadas do Mundo, mas carece de mecanismos de punição adequados até o momento. As condutas e punições possíveis do projeto de lei foram fundamentadas em estudos teóricos e técnicos a respeito do tema. Entre eles, um relatório elaborado pela Divisão de Assessoramento Técnico do Ministério Público, que trata sobre problemas ambientais decorrentes da exploração excessiva de água subterrânea por poços artesianos. É importante salientar também que o projeto colabora para a melhoria da saúde pública, pois cerca de 80% das doenças no mundo estão ligadas à ausência de água tratada. Gostaria de lembrar as palavras do desembargador Vladimir Passos de Freitas: “Água é assunto sério demais, diz respeito à própria sobrevivência da humanidade. Logo, não há lugar aqui para o Direito Penal mínimo; ou seja, considerar a conduta dos que atingem tal bem algo de pouca relevância e que deve ser apenada com uma simples multa ou algo semelhante”. Para ter acesso ao Projeto de Lei, o número é 7.915/2010.

ConJur — Muita gente defende a concessão para particulares, como forma de atrair investimentos em captação, tratamento e distribuição, já que o estado não tem recursos suficientes para investimentos de vulto. É uma ideia válida?
Eduardo Coral Viegas — Não partilho desta visão. A água é um dos recursos naturais mais importantes para a vida, pois, ao lado do ar que se respira, é fundamental em toda a trajetória delimitada entre o nascimento e a morte. Um bem desta envergadura não pode estar nas mãos da exploração privada. Pertence a todos, devendo ser administrado pelo poder público, ente abstrato que tem como missão a satisfação do interesse social. O estado tem a incumbência de proteger e de preservar a água para a atual e para as futuras gerações, na medida em que, com o auxílio da sociedade que representa, exerce os encargos de seu depositário e guardião. O saneamento básico é condição mínima de reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Sem água tratada e escoamento do esgoto sanitário, nenhuma família pode-se constituir adequadamente, nenhuma criança tem assegurado seu direito a um desenvolvimento integral, em condições dignas e de liberdade. A falta ou deficiência significativa na prestação deste serviço público essencial gera doenças evitáveis, morte, baixo padrão de qualidade de vida; enfim, sem ao menos o ser humano sair de casa de banho tomado e com sua sede saciada, que oportunidades de vida terá nos grupamentos sociais?

ConJur — Em quem deveríamos nos espelhar como modelo?
Eduardo Coral Viegas — Não precisamos ir muito longe. O vizinho Uruguai deu demonstração recente de como o assunto deve ser enfrentado. Em 31 de outubro de 2004, paralelamente à eleição do presidente da República, o povo uruguaio foi às urnas para ser consultado acerca dos rumos que seu país deveria dar à água. O resultado é uma emenda constitucional que reconheceu a água como de domínio público estatal, dispondo ainda que o serviço público de saneamento e o serviço de abastecimento de água para o consumo humano serão prestados exclusiva e diretamente por pessoas jurídicas estatais. Traçando-se um paralelo com nossa legislação, pode-se afirmar que o Uruguai avançou muito. Isso porque, apesar de o Brasil ter declarado por lei que toda a água é pública, não vedou a possibilidade de privatização do serviço de saneamento público. Em verdade, os governos de todos os níveis federativos sofrem pressão interna para implementar um efetivo serviço de saneamento e, para darem vazão a esse anseio social, preferem transferir a responsabilidade à iniciativa privada, como forma de se livrarem de um “grande problema”, ainda que, assim agindo, estejam gerando danos irreparáveis ou de difícil reparação ao interesse público. A mercantilização e a privatização da água também são estimuladas por virem ao encontro dos interesses de “parceiros” do Brasil de grande expressão internacional, que não solicitam; ao revés, ditam as políticas que devem ser desenvolvidas pelos países, os quais se encontram, mais do que nunca, escravizados pela dependência econômica. Embora a gestão democrática interna da água seja reconhecida em nosso sistema jurídico-normativo, na realidade não tem proteção efetiva, prática.

ConJur— Qual país seria paradigma desta gestão democrática da água?
Eduardo Coral Viegas — Exemplo de participação concreta da sociedade na solução das controvérsias, envolvendo os recursos hídricos, nos dá o Tribunal das Águas de Valência, que há mais de mil anos reúne na Espanha um grupo de camponeses, com mandato temporário, para solver conflitos que lhe são trazidos por outros agricultores. Os fundamentos desse tribunal espanhol evidenciam importantes lições em torno da relevância da água e com que seriedade ela deve ser tratada, democraticamente. Dentre elas, pode-se extrair o ensinamento de que a água e os conflitos que a cercam devem ser administrados por quem está próximo, jamais por grandes corporações transnacionais ou por organismos internacionais, que visam, sobretudo, ao lucro. O Brasil somente assegurará justiça social se vier a estabelecer uma política em torno dos recursos hídricos que se concretize na prática. Ela deve ter como norteadora a diretriz de que a água é integralmente pública, e que, como tal, deve ser gerida com vistas à satisfação prioritária do interesse coletivo. Com esta postura, estará resguardando um direito fundamental do homem e outorgando-lhe melhores níveis de qualidade de vida. No plano externo, a postura ora preconizada reforçará a soberania nacional, que muitas vezes tem sido violada, sem que haja respostas adequadas de parte de nossa República Federativa.

ConJur — Muitas vezes, para garantir a inviolabilidade de direitos, é preciso contar com recursos materiais.
Eduardo Coral Viegas — Não é a carência de recursos econômicos que faz com que um país tenha deficiências de saneamento. Recursos não faltam. O que não se tem são políticas corretas, seriedade e retidão de caráter daqueles que poderiam modificar a triste realidade com a qual o povo brasileiro depara-se diariamente. Pode-se dizer isso com tranquilidade, porque, ao longo de muito tempo, as notícias vêm dando conta da corrupção em grande escala que assola a classe política e empresarial dominante, que se move, não raras vezes, almejando apenas vantagens pessoais, esquecendo-se de olhar em sua volta. O que não se pode aceitar é que, por serem corriqueiras, essas notícias passem a ser tidas como normais. A indignação tem de estar presente sempre, e é com ela que se poderá combater inúmeras posturas nefastas, como a mercantilização e a privatização da água, tal como fez a população uruguaia, que nos deu o exemplo e nos mostrou o caminho a ser trilhado, logo, sob pena de, amanhã, ser tarde demais para tentar percorrê-lo.

ConJur — O Aquífero Guarani, reserva de água subterrânea que abrange o território do Sul do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, necessita de uma legislação especial, já que este recurso é compartilhado por países com diferentes legislações?
Eduardo Cora Viegas — O Aquífero é pouco conhecido e defendido. Os países sobre os quais ele perpassa não têm demonstrado muito interesse na sua proteção. Por essas e outras que o “mercado” acaba “tomando conta” dessas riquezas naturais e de valor econômico inestimável. Mais do que leis, necessitamos é de políticas públicas concretas de proteção do Guarani.

ConJur — O Banco Mundial e o IFC (International Finance Corporation), desde 2002, vêm restringindo o crédito para empresas e instituições de governo que desconsideram as boas práticas sustentáveis. Internamente, o Brasil faz o mesmo com o seu Protocolo Verde. O senhor entende que estas condicionantes para concessão de crédito são suficientes para desestimular o desrespeito à legislação ambiental?
Eduardo Coral Viegas — O atendimento das exigências ambientais para obtenção de crédito e financiamento público é condição irreversível. A exigência de licenciamento prévio para obtenção de crédito muito veio a contribuir com a diminuição dos impactos ambientais. Entretanto, não são totalmente suficientes. É preciso ainda que os empreendedores desenvolvam a necessária consciência ambiental na implantação dos seus empreendimentos. As exigências para liberação de crédito são necessárias e importantes, mas ainda o mais significativa é a internalização do compromisso privado com a efetiva proteção ambiental e redução do desperdício. As empresas necessitam incorporar procedimentos de produção mais limpa, com redução do uso de insumos agressivos ao meio ambiente, com a redução do desperdício de energia e água, com um modelo de produção mais sustentável.

ConJur — Estamos caminhando para as soluções? Ou: o que nos reserva o futuro?
Eduardo Coral Viegas — O modelo econômico neoliberal, que atualmente une os mundos ocidental e oriental, baseia-se na ampliação constante e crescente do capital. O foco está na quantidade da produção e no estímulo ao consumismo. As preocupações sociais e com o equilíbrio ecológico são diminutas. Tanto é assim que China e Índia destacam-se por seus elevados índices de crescimento econômico, porém, às custas da escravidão laboral. No mesmo sentido, as grandes economias admitem a existência de fortes impactos ambientais em razão da produção industrial, mas não aceitam a adoção de medidas internas de contenção da degradação da natureza se, com isso, tiverem de desacelerar sua economia. O exemplo clássico é a não-adesão dos Estados Unidos ao Protocolo de Kyoto [tratado de redução de carbono, logo, propondo diminuição de atividade industrial]. Em razão da lógica insustentável retratada, que atinge de forma nefasta os recursos hídricos, é forçoso debater sobre a compatibilidade entre capitalismo e desenvolvimento sustentável. Se a proteção ambiental está centrada na subserviência do ser racional às leis da natureza, preservando-se a biodiversidade, e, no outro pólo, a base de nossa economia está estruturada na extração dos recursos naturais em proveito do homem (antropocentrismo), os objetivos são flagrantemente antagônicos. Assim, é justa a preocupação filosófica daqueles que pensam ser impossível a construção da sustentabilidade no sistema capitalista. Não se tem a pretensão de colocar um ponto final à questão. Apenas se pondera que, ou parte-se para a modificação da estrutura econômica clássica, ou opta-se pela mudança de visão do homem em face do mundo, com sua inclusão organizacional na natureza, não fora dela. Esta escolha implica respeito e cuidado do meio ambiente como forma de autoproteção. A terceira via seria o abandono do desenvolvimento sustentável, que é aqui desconsiderada por ir de encontro à continuidade da vida, em todas suas formas, na Terra. A normatização internacional ISO (International Organization for Standardization), existente desde 1947, e cuja organização é sediada em Genebra (Suíça), nos últimos anos, editou normas para assegurar a qualidade dos produtos e dos processos produtivos. Não tem força de lei, a não ser que o ordenamento jurídico do país que a adote lhe confira normatividade, mas tem autoridade indiscutível no mercado globalizado. O Brasil é associado à ISO pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). No sistema ISO, é fundamental o comprometimento ambiental daquele que pretende obter a certificação. Essas referências são feitas para demonstrar-se que caminhos de conciliação entre a lógica de mercado neoliberal e o desenvolvimento sustentável existem. Todavia, só o futuro dirá se, de fato, a sociedade vai acolher e estimular iniciativas como a acima festejada, optando, assim, por crescimento econômico conjugado com equilíbrio ecológico e com melhoria da qualidade de vida de todos, não apenas de parcela da coletividade.

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