Marcha ré

Limites da liberdade de expressão na democracia

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4 de junho de 2011, 8h37

Acontecimentos recentes trouxeram à tona um assunto vital para o regime democrático: a liberdade de expressão. Liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a Marcha da Maconha, o que não impediu, no entanto, que manifestantes, convocados por meio do Facebook, do Twitter, de e-mails, fossem atraídos para o local do encontro. A proibição judicial acabou por respaldar atitude violenta da Polícia, que, a fim de coibir o ato, usou gás de pimenta e lacrimogêneo, além de distribuir ponta pés, conforme vídeos, imagens e reportagens divulgados pela imprensa.

Até onde vai o direito do cidadão de defender a legalização da erva alucinógena, ou o que mais lhe convier, seja o direito ao aborto, à homossexualidade, à sustentabilidade, entre outras causas? Existe uma linha tênue entre a defesa da descriminalização e fazer apologia ao crime.

Está no artigo 33, parágrafo 2º, da Lei 11.343/2006 (Lei Antidrogas) a ilicitude da conduta de quem instiga, induz ou ajuda alguém a usar drogas. O artigo 286 do Código Penal prevê detenção ou multa para quem incitar publicamente a prática de crime. Baseado nesses dispositivos, o desembargador relator do caso, Teodomiro Mendez, concretizou a proibição.

No ano passado, o desembargador Sérgio Ribas também proibiu a marcha em São Paulo, com o seguinte entendimento: “Enquanto não houver provas científicas de que o uso da maconha não constitui malefícios à saúde pública e que a referida substância deva sair do rol das drogas ilícitas, toda tentativa de se fazer uma manifestação no sentido de legalização da ‘maconha’ não poderá ser tida como mero exercício do direito de expressão ou da livre expressão do pensamento, mas sim, como sugestão ao uso estupefaciente denominado vulgarmente ‘maconha’, incitando ao crime”.

O Ministério Público de São Paulo, que preferiu não se manifestar na reportagem, entrou com ação no TJ-SP argumentando que o ato incitaria o consumo de drogas a céu aberto, incentivaria o tráfico e haveria possibilidade de ocorrência de violência, pelo fato de muitas pessoas serem contrárias a isso, como de fato ocorreu.

A advogada Taís Gasparian é categórica ao citar a Convenção dos Direitos Humanos, que tem o Brasil como signatário, para defender a livre manifestação de convicções. Em seu artigo 13, a convenção afirma: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.

Em 2008, 2009 e 2010, a Marcha aconteceu em Porto Alegre, graças a um HC preventivo, obtido pelos organizadores do movimento. Neste ano, o HC não foi necessário, e a marcha aconteceu pacificamente. No Rio de Janeiro, o juiz Alberto Fraga, do 4º Juizado Especial Criminal, concedeu HC preventivo, garantindo que os manifestantes não fossem presos no ato que ocorreu no dia 7 de maio.

Por trás da Marcha da Maconha, está envolvida uma ONG, a fim de garantir que a Marcha aconteça em diversos locais. O movimento nacional está articulado a um internacional, e a Marcha ocorre em mais de 100 países ao redor do planeta.

Leonardo Günther, representante da Marcha da Maconha de Porto Alegre, diz que a proibição em São Paulo fará com que o tema, em breve, esteja na pauta no Supremo Tribunal Federal, cujo objetivo será definir se esse tipo de marcha pode ou não acontecer livremente. “Não estamos falando de apologia ao crime, na verdade esta é uma discussão sobre política pública e temos o direito de discutir qualquer coisa, sobretudo drogas”, explica Günther.

A opinião acima é compartilhada pelo advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, que já exerceu o cargo de Presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes durante o governo Mario Covas, em São Paulo. “Há uma diferença clara entre fazer apologia, no sentido de estimular o uso das drogas, e, de outro lado, propor a descriminalização destas, confundir as coisas não só revela intolerância e falta de uma concepção pluralista da sociedade.”

Para Toron, é evidente que drogas não são coisas boas, como não é o álcool ou o tabaco. Daí a se impedir o uso por conta do que a maioria pensa, é uma intromissão. “A repressão a uma determinada conduta só se legitima quando esta represente um mal a terceiros individualmente considerados, como numa agressão física, ou à sociedade como um todo, como no caso do envenenamento do reservatório de água da cidade”, argumenta o criminalista.

“Se o desejo de ver modificadas as leis fosse sempre grotescamente confundido com a apologia ao uso das drogas, as mulheres ainda não estariam votando ou os negros, nos EUA, ainda viveriam segregados”, compara Toron. Segundo ele, pedir alterações na lei só é considerado ato subversivo em sociedades autoritárias, que acabam engessando mudanças sociais. A liberdade filosófica, na Idade Média, foi por muitos anos condenada, e os pensadores eram tratados como hereges.

Questionado sobre a decisão liminar, Nelson Calandra, desembargador e presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), diz que esta é realmente uma decisão difícil, em que o risco de errar é muito grande. “Se alguém morrer ou se ferir, a culpa será atribuída ao magistrado”, afirma. “Debates e manifestações sobre o tema não são proibidos, mas houve um entendimento do colega de que aquilo seria apologia ao crime.”

Seu posicionamento, entretanto, é sempre a favor da liberdade, sobretudo porque viveu num tempo em que era proibido pensar, quem dirá escrever, disse referindo-se à ditadura.

Depois do desastre da Marcha da Maconha em São Paulo, a Marcha da Liberdade foi a maneira encontrada pelos organizadores para protestar contra a proibição e a violência. A Justiça, novamente, proibiu a manifestação, por entender tratar-se da mesma causa, com o nome disfarçado. E, novamente, o ato aconteceu. Dessa vez com um desfecho pacífico, graças a um acordo entre a Polícia e os manifestantes onde ficou combinado que seriam evitados cartazes com alusão a drogas. O jeito foi partir para o bom humor. O chavão, “Legalize a maconha já”, foi substituído por um cartaz com os dizeres: “Legalize o frango assado já”.

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