Advocacia em risco

Perigos da expansão desenfreada de cursos de Direito

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3 de junho de 2011, 12h01

Ganhou espaço esta semana na mídia a notícia de que o Ministério da Educação (MEC) cortou 11 mil vagas de 136 faculdades de Direito no Brasil em razão de seus resultados insatisfatórios, de acordo com avaliações do próprio Ministério. Este seria o primeiro ato da recém-criada Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC, responsável especificamente pela supervisão das instituições de ensino superior (IES) por conta da grande expansão do número desses estabelecimentos no Brasil. Na mesma semana, foi publicada no Diário Oficial da União a autorização para o funcionamento de 33 novos cursos de Direito, num total de 4,2 mil novas vagas.

Segundo o professor Luís Fernando Massonetto, titular da Secretaria, em entrevista à Agência Câmara, o número de vagas encerradas é maior do que o de autorizadas, e isso se aplica especialmente a cursos que já estão com algum grau de saturação. “A dinâmica é oferecer novas vagas e retirar vagas ruins do mercado”, afirma. “E, nos cursos mais saturados, com uma retirada maior do que daquelas que são recolocadas”. Ainda segundo o professor, “é muito melhor um controle pela expansão gradual das vagas do que ter que tomar medidas para reduzir vagas em instituições que não cumprem satisfatoriamente o seu propósito”.

A suspensão é uma medida cautelar e pode ser ou não mantida processo de renovação da autorização de funcionamento do curso. Caso a instituição consiga melhorar a qualidade do ensino, as vagas podem ser “devolvidas”.

Eis o ponto interessante: aparentemente, o número de vagas foi cortado, mas só em uma avaliação preliminar. Conforme o item III do despacho do secretário publicado no Diário Oficial da União do dia 2 de junho, a redução de vagas para o ingresso de novos alunos nos cursos de bacharelado em Direito poderá ser reconsiderada caso o Conceito Preliminar de Curso, critério usado pelo MEC para avaliar a qualidade das instituições de ensino superior, volte a ser satisfatório. Ou seja, a redução não é definitiva, e, considerando o natural prejuízo que traz para as IES, é quase certo que medidas para recuperar pontos nos critérios do MEC serão tomadas para reverter tais perdas.

Essa, ao que tudo indica, é a tendência. Em entrevista ao site Tudo na Hora, o coordenador de uma das instituições prejudicadas, o Cesmac, de Maceió (AL), professor Fernando Sérgio Tenório de Amorim, afirmou que “o MEC exige o mínimo de 30% de professores com mestrado e doutorado, e nós superamos esta meta; a matriz curricular do MEC é de 3.700 horas, a nossa tem 4.120; temos Laboratório de Prática Jurídica funcionando, Núcleo de Produção, iniciação científica, Núcleo de Estudos em Direito, Sociedade e Violência e implantamos o Plano de Cargos e Carreiras dos professores, que são avaliados semestralmente, adquirimos 10 mil títulos para a biblioteca e temos um novo plano pedagógico”. Naturalmente, a instituição irá lutar para recuperar suas vagas, e provavelmente o conseguirá.

Pode-se ponderar, então, sobre a efetividade da redução do número de vagas determinada pelo MEC e sua real eficácia diante do quadro de expansão do ensino superior jurídico brasileiro. Na aparência, cortaram-se vagas, mas, em termos práticos, houve uma ampliação, pois 33 novas faculdades de Direito receberam autorização para dar início as suas atividades. O corte, portanto, foi ilusório.

Essa constatação é extremamente preocupante, porque mostra a incapacidade da Ordem dos Advogados do Brasil em frear a expansão do número de IES jurídicas, tendência esta aparentemente inevitável.

E por que evitar essa expansão?

Pelo simples fato de que, hoje, o Brasil tem mais faculdades de Direito do que todos os países no mundo juntos. São 1.240 cursos (mais os 33 ontem autorizados) para a formação de advogados em território nacional, enquanto, no resto do planeta, a soma é de 1.100 universidades. Os números foram informados pelo conselheiro Jefferson Kravchychyn, do Conselho Nacional de Justiça.

Essa disparidade afeta diretamente o mercado da advocacia, e não é incomum hoje vermos jovens advogados, e outros nem tão jovens assim, ganhando salários entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil, devido à saturação do mercado profissional: existem aproximadamente 713 mil advogados no Brasil, e o país está em terceiro lugar no ranking das nações que mais formam advogados no mundo. Considerando os vários países com populações (e economias) maiores que a do Brasil, resta evidente uma imensa desproporção nesses números. O problema é que o Brasil sequer entrou, de verdade, no processo de expansão das instituições de ensino superior, e o quadro atual tende a se agravar em proporções colossais.

Em 12 de abril do corrente ano, a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) enviou ao presidente do Conselho Nacional de Educação um ofício questionando o papel da OAB de referendar junto ao MEC a abertura de novas faculdades de Direito. Nele, a associação menciona a “crescente pressão da OAB sobre o MEC em relação à concessão de autorização de funcionamento e de reconhecimento dos cursos jurídicos” e a “crescente tentativa de intervenção indevida dos outros conselhos de fiscalização do exercício profissional na seara da educação superior”. Para a Abmes, “o que a OAB pretende é simplesmente ocupar o espaço” do MEC, e a “a disfarçada obrigatoriedade de acolhimento de sua manifestação” resultará em “sensível prejuízo para a normalidade jurídica do setor”.

Ainda no ofício, a entidade argumenta que a solução para a alegada falta de qualidade dos cursos não está na vedação à instalação de novos cursos, e sim na intensificação da supervisão do MEC sobre os já existentes. E sustenta que o fato de os cursos de Direito não se destinarem exclusivamente à formação de advogados não está sendo levado em conta pela OAB. “Não são autorizados cursos de Advocacia, mas sim cursos de Direito”, sendo a advocacia uma entre várias atividades profissionais do bacharel. Por fim, a Abmes pede que o CNE se manifeste sobre “as crescentes tentativas de ingerências das corporações” sobre a educação superior.

Este ofício é apenas uma manifestação de um processo mais abrangente de minar o papel da OAB na abertura de novos cursos jurídicos. Afinal, o governo federal, em conjunto com a Abmes e demais entidades representativas do setor, deseja expandir o número de universitários no país, e tem como meta atingir 10 milhões de universitários até 2020, incluindo 50% dos jovens entre 18 e 24 anos no ensino superior, conforme amplamente debatido no IV Congresso Brasileiro da Educação Superior Particular, ocorrida em Salvado (BA) nos dias 5, 6 e 7 de maio de 2011.

O presidente da Abmes explicitou, na ocasião, que o maior potencial desses jovens está nas classes C, D e E. Segundo ele, “essas classes econômicas têm dificuldades para pagar uma faculdade”, e o financiamento é, portanto, “uma questão central” para a maior inclusão social no Ensino Superior.

É uma meta ousada, e talvez não seja plenamente alcançada. Mas, ainda que parcialmente atingida, terá impacto decisivo nos dados do ensino superior como um todo, e no ensino jurídico em particular.

Atualmente, o curso de Direito é um dos que mais atrai alunos. Conforme o Censo da Educação Superior de 2009, divulgado em janeiro último pelo Ministério da Educação, está em segundo lugar, com 651 mil matrículas, atrás apenas de Administração, com 1,1 milhão de matrículas, seguido de Pedagogia (573 mil) e Engenharia (420 mil).

O impacto dessa mudança ocorrerá em longo prazo, entre sete ou dez anos, mas será, sem sombra de dúvida, sentido.Como disse a presidenta Dilma Rousseff bem recentemente, "com o novo Fies só não estuda quem não quer". Ela se referia especificamente ao financiamento do governo para a formação superior em faculdades particulares. De 31 de janeiro até agora, cerca de 34 mil alunos contrataram o financiamento estudantil, e mais 29 mil contratos estão em análise. Dilma disse que os juros de 3,4% ao ano oferecidos pelo programa são baixos, e que o pagamento só tem início um ano e meio após a conclusão do curso.

São números elevados mesmo sem uma campanha de marketing mais explícita em relação a essas modificações. Toda essa movimentação do Governo e dos representantes das IES não evidencia, porém, uma preocupação genuína com a qualidade do ensino ofertado, seja no presente ou no futuro. Isso é sintomático.

Nesse contexto, o Exame de Ordem, de forma bastante objetiva, revela os abismos existentes entre as instituições de ensino. Enquanto algumas aprovam mais de 50% dos seus alunos (muito poucas, por sinal), a grande maioria não aprova nem 5% dos seus egressos.

A Abmes, naturalmente, não mencionou este fato em seu ofício ao presidente do Conselho Nacional de Educação, e nunca o faria, pois seu papel é o de defender os interesses das IES, e não atuar como reguladora da qualidade do ensino de seus associados. O governo federal e a Abmes querem números, estatísticas. Uma expansão quantitativa de universitários.

Como o alvo dessa investida são os jovens que agora podem pagar pelo ensino superior em razão da melhoria das condições econômicas do país (classes C, D e E) e pela maior facilidade de financiamento pelo Fies, é fácil vislumbrar a ampliação de um drama já existente hoje: a exclusão em massa de jovens bacharéis do mercado de trabalho.

Os dois últimos Exames da OAB reprovaram 85% dos candidatos. É muito provável, portanto, que os futuros universitários de classes menos favorecidas optantes pela carreira das Ciências Jurídicas contraiam empréstimos para se formar mas não consigam, ao final, passar pelo Exame e justificar o investimento, o tempo e o curso escolhido — investimento, diga-se de passagem, muito elevado, ainda mais para as classes alvo do projeto de expansão.

Esse é um drama já vivido por centenas de milhares de bacharéis em Direito, e provavelmente o será também pelos de outras áreas, pois váriosconselhos de classe lutarão para criar exames tais como hoje é o da OAB. O Conselho de Contabilidade já conseguiu criar seu Exame de Suficiência, por exemplo. Está se desenhando no futuro um grande drama social, com milhões de formados impossibilitados de exercer suas profissões, pois inexiste uma preocupação em melhorar a qualidade do ensino como um todo, desde o fundamental, passando pelo médio e o superior.

Em suma, no papel está tudo muito lindo, mas, na prática, estamos preparando uma bomba para os futuros estudantes universitários, enganados desde agora com uma promessa de estudos e de vida melhor que, para muitos, não irá se concretizar. Assim, criar-se-á mais uma forma de concentração de riquezas neste país, sem a contraprestação de uma efetiva oferta de educação de qualidade. E não se trata de exercício de futurologia, pois hoje isso já acontece com os mais de dois milhões de acadêmicos em Direito vencidos pelo Exame de Ordem, alijados do exercício da advocacia.

O papel do MEC, infelizmente, é meramente decorativo quando o assunto é fiscalização do ensino superior, e o corte de vagas não passou de medida cosmética, desprovida de maior efetividade. Pelo o atual desenho das intenções, o problema de hoje será, e muito, expandido no futuro. Tem toda cara de ser uma bomba relógio social. Aguardemos sua (inevitável) explosão.

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