Salvatagem marítima

Apesar de competente, Justiça não é eficaz

Autor

  • Gabriel Araújo Lima

    é advogado presidente do Instituto de Pesquisas em Comércio Internacional e Desenvolvimento e sócio do escritório Rocha Lima Advogados Associados.

2 de junho de 2011, 7h15

Em julgamento realizado no último dia 1º de março a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça constituiu um importante precedente a respeito da matéria de competência internacional (RESP 772.661 – SC).

A sociedade que interpôs o Recurso Especial julgado pelo STJ é uma empresa holandesa de salvatagem marítima, que propôs uma ação cautelar contra os proprietários da carga recuperada do navio Nedlloyd Recife, de bandeira liberiana, encalhado em águas brasileiras, objetivando impedi-los de retirar suas mercadorias do porto antes de efetuado o pagamento a que faria jus em razão do salvamento.

Consta do relatório do ministro Paulo de Tarso Sanseverino que o recurso especial versou exclusivamente acerca da competência da Justiça brasileira para processar e julgar a demanda, que havia sido extinta por sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, com base em contrato firmado entre, por um lado, a empresa de salvatagem e, por outro, a companhia de armação e os proprietários dos contêineres e da carga transportada, elegendo o Tribunal Arbitral de Londres para discutir questões referentes à remuneração pelo serviço de salvatagem.

A decisão do tribunal catarinense se baseou no artigo 7º da Lei 7.203⁄1984, segundo o qual “quando a assistência e salvamento ocorrerem em águas sob jurisdição nacional e existir envolvimento de embarcação brasileira nessa operação, a competência para julgar questões pertinentes ou decorrentes desse salvamento é da responsabilidade de tribunal brasileiro.” O parágrafo único do referido artigo, por sua vez, prescreve que “toda cláusula que atribuir jurisdição a um tribunal estrangeiro ou toda cláusula compromissória dando competência a um tribunal arbitral sediado no estrangeiro é nula, desde que a embarcação que foi assistida ou salva, seja de nacionalidade brasileira e a assistência e salvamento sejam prestados em águas sob jurisdição brasileira.”

De acordo com a interpretação do tribunal estadual, conquanto a salvatagem tenha ocorrido em águas nacionais, a embarcação naufragada era de nacionalidade liberiana, a empresa e os equipamentos de salvatagem eram estrangeiros, de modo que a cláusula elegendo a câmara arbitral estrangeira deveria prevalecer.

Por sua vez, entendeu o Superior Tribunal que a eleição de foro pactuada seria irrelevante à controvérsia em questão, considerando que, de um lado, não se discute a remuneração pela salvatagem realizada, mas a possibilidade de se impedir a retirada da carga recuperada, que serve de garantia à autora-recorrente em caso do não-pagamento de sua remuneração. Considerou-se, também, que a ação não pretende a exclusão do foro eleito contratualmente, mas apenas o reconhecimento da competência concorrente da Justiça brasileira.

Conforme a decisão do STJ, quando a embarcação não for brasileira e⁄ou quando o salvamento não tiver ocorrido em território nacional, a conclusão a que se deve chegar, em virtude do que dispõe o artigo 88 do Código de Processo Civil, não é a de que a Justiça brasileira é incompetente, mas, sim, que sua competência não é exclusiva.

Em suma, o STJ decidiu que, no caso em questão, a Justiça brasileira é competente (possui atribuição legal de jurisdição).

No entanto, realizando-se uma pesquisa sobre o histórico do processo que levou a esse precedente, assim como sobre as publicações referentes ao naufrágio em questão, e a partir de um ponto de vista mais amplo, tanto jurídico quanto econômico, o que há de mais relevante nesse caso talvez não seja a interpretação do STJ acerca da competência internacional para julgar a ação.

O navio Nedlloyd Recife, que, de acordo com os relatórios oficiais, transportava 693 contêineres, bateu e encalhou nas pedras da Ilha da Paz, situada a cerca de 23 km do porto de São Francisco do Sul, Estado de Santa Catarina. Era uma madrugada nublada, do dia 2 de março de 1996.

O casco foi danificado, mas não houve a submersão do navio. Uma parte dos contêineres caiu ao mar em virtude do choque com os rochedos, mas as fotos e os relatórios da época indicam que a maior parte da carga do navio permaneceu íntegra. Eram motores de carro, pneus, aparelhos de televisão e eletro eletrônicos em geral, roupas, brinquedos, produtos químicos, látex in natura,dentre outros produtos de valor.

Logo em seguida ao encalhe, dois fatos se destacaram: primeiro, a onda de saques contra a embarcação, que passou a ser atacada por neopiratas; segundo, a chegada ao local da maior balsa-guindaste do mundo, com capacidade para até 3 mil toneladas, vinda diretamente da Holanda para atender o acidente.

Os jornais da época relatam que no ano de 1996 não foram poucos os habitantes locais que enriqueceram com o saque e/ou o comércio dos bens oriundos do Nedlloyd Recife.

O serviço de resgate da carga e de desmontagem do navio durou de março de 1996 a fevereiro de 1998. Ao final, o casco, outrora avaliado em US$ 25 milhões, foi vendido pela seguradora para uma empresa de sucata por cerca de US$ 175 mil.

A empresa de salvatagem ajuizou a ação cautelar ainda no ano de 1996. A ação foi extinta pelo juízo da 2ª Vara Cível de São Francisco do Sul e chegou ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 1998.

O processo cautelar permaneceu no tribunal catarinense entre 1998 e 2005, quando foi autuado no STJ o recurso especial interposto pela empresa de salvatagem.

Por conta da disputa judicial, cerca de 103 contêineres ficaram depositados em uma área de 2 mil metros quadrados do Porto de São Francisco do Sul, causando substanciais prejuízos à administração portuária. Ao serem abertos os contêineres, no ano de 2005, constatou-se que as mercadorias estavam imprestáveis. Tudo, incluindo roupas, patins, brinquedos, rolos de filmes fotográficos, walkmans, aparelhos de som, televisores, videocassetes e minigames, foi destruído por um rolo compressor.

Foram abertos diversos procedimentos administrativos em decorrência de danos ambientais e também firmados termos de compromisso, para evitar que maiores danos ao meio ambiente ocorressem. Há notícia, também, de discussões envolvendo a Receita Federal.

Entre 2005 e agosto de 2010 o processo transitou no Superior Tribunal de Justiça pela relatoria de dois ministros, sem que uma decisão tenha sido tomada. Sob a relatoria do terceiro ministro ao qual foi distribuído, o recurso foi julgado em 1º de março de 2011. Sendo mantida essa decisão, o Judiciário iniciará a análise do mérito da questão. Ou seja, passados 15 anos desde o início do imbróglio judicial, decidiu-se apenas que a causa deve ser julgada no Brasil.

Em vista desses fatos, talvez não seja demasiada insolência que tanto a parte autora, quanto a parte ré do referido processo, os cidadãos, a administração do porto de São Francisco do Sul, a Receita Federal e as instituições voltadas ao desenvolvimento do comércio internacional no Brasil perguntemos: é a Justiça Brasileira realmente competente (justa e eficiente)?

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