Franca decadência

Juizados Especiais estão em flagrante declínio

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26 de julho de 2011, 19h12

Há cinco anos, por artigo publicado em revistas e sites jurídicos, escrevi sobre a preocupação que tomava conta de tantos quantos se interessavam pelos destinos dos juizados especiais e lutavam para que essa abensonhada instituição se aperfeiçoasse a cada dia para se firmar como autêntico e revolucionário modelo de prestação de Justiça e instrumento de resgate do prestígio e da credibilidade do Poder Judiciário, tão em baixa nos últimos tempos. 

A inquietação residia em que, ultrapassados os dez anos de vigência da Lei 9.099/95, que criou os juizados estaduais, e constatadas a eficiência e presteza desses órgãos na solução de uma grande massa de litígios, o Congresso Nacional vinha hospedando centenas de projetos de lei, convictos os seus proponentes de que a implantação do sistema dos juizados, para a resolução das controvérsias existentes nas mais diversas áreas da atividade socioeconômica, iria tornar mais suportável os problemas atuais e futuros dos jurisdicionados, acudindo, indistintamente, pessoas jurídicas e físicas, ricas, pobres e remediadas. 

O desvirtuamento do principal objetivo da justiça do cidadão, que sempre foi o de dirimir conflitos existentes entre pessoas físicas hipossuficientes, pela via da conciliação ou através de um procedimento absolutamente oral, simples, informal, célere e gratuito, iniciou-se com a edição da Lei 9.841/99 (Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) que conferiu às microempresas, pessoas jurídicas, legitimidade para proporem ações nos juizados especiais cíveis. A Lei complementar 123/06 (art. 89) revogou expressamente a Lei 9.841/99 e nada obstante manter a legitimidade ativa das microempresas nos juizados, ampliou a deturpação do escopo da instituição, estendendo tal legitimidade também às empresas de pequeno porte (artigo 74).

Posteriormente, desferiu-se outro golpe no sistema, com a promulgação da Lei 12.126/09 que, alterando o artigo 8° da Lei 9.099/95, admitiu que outras pessoas jurídicas figurassem como autoras, como as organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip) e as sociedades de crédito ao microempreendedor.

Essas leis, a par de ferir de morte a própria razão da lei de pequenas causas, transformaram os juizados em ativos "balcões de cobrança", requintados instrumentos de pressão de empresários, empresas e sociedades, algumas, como as microempresas, de considerável expressão econômico-financeira (receita bruta anual inferior ou igual a R$ 240 mil – artigo 3°, inciso I, da LC 123), outras, como as de pequeno porte, de altíssimo faturamento (renda bruta igual ou inferior a R$ 2,4 milhões – inciso II). Tais empresas e organizações, sem despender um centavo sequer, passaram a se valer dos juizados para o recebimento dos seus créditos e acerto dos seus negócios, muitas vezes acionando aqueles que deveriam ser os destinatários dessa justiça especializada, ou seja, pequenos comerciantes, modestos prestadores de serviços, microempreendedores, carentes jurisdicionados, muitos deles titulares de direitos patrimoniais de inexpressivo valor.

Alguns estados implantaram varas das microempresas, com pesada estrutura material e humana para o atendimento privilegiado a essas pessoas jurídicas que, cientes de que nos juizados é vedada a cobrança de qualquer despesa, nem mesmo correspondiam com as relativas à locomoção dos oficiais de justiça (seus “cobradores de luxo”), sacrificando o funcionamento dos juízos que deveriam servir, isto sim, à imensa clientela verdadeiramente necessitada, quer dizer, aquela clientela composta por pequenos litigantes que enfrentam graves obstáculos de acesso à Justiça, tais como a falta de orientação e informação essenciais à defesa de seus interesses, a morosidade na solução dos conflitos, o excesso de formalismo processual, o alto preço da demanda, a falta de condições de constituir advogado, a dificuldade de obter provas, principalmente de natureza técnica, etc.

No Mato Grosso do Sul, as prateleiras do cartório do antigo Juizado das Microempresas da Capital (felizmente extinto), eram organizadas com a nominação das empresas-autoras, parecendo que ali se achava instalado o “Departamento de Cobrança” dessas firmas que, como tantas outras existentes no país podem, perfeitamente, suportar os custos das demandas, contratar advogados, sofrer com as formalidades do processo e com a morosidade da Justiça, enfim, enfrentar, sem angústia, as barreiras profundas arrostadas por cidadãos carentes de recursos de toda ordem.

Recordamos que, dos tempos dos juizados de pequenas causas aos primórdios da Lei 9.099/95, a conciliação era, verdadeiramente, a alma e a grande marca do sucesso do microssistema. Onde instalados e funcionavam, os acordos amigáveis que colocavam fim às controvérsias atingiam índices superiores a 80% e as pequenas reclamações que ingressavam na fase contenciosa eram solucionadas a brevíssimo tempo, geralmente em trinta dias. Com a ampliação da competência e a admissão das empresas a proporem ações, ocorreu uma redução drástica daqueles índices que, presentemente, segundo pesquisas, raramente alcançam 40%. Esses fatores provocaram também um aumento descomunal de processos, e hoje vemos que, em muitos estados a jurisdição especial já ultrapassa a 50% dos feitos em tramitação e que as demandas não são definitivamente solucionadas em prazo inferior a 18 meses, o que significa dizer que os juizados estão caindo na vala comum da Justiça tradicional e no descrédito popular. Penso que, no curto prazo, iremos presenciar, consternados, a falência de um sistema quase perfeito de prestação de justiça e a frustração de um grande ideal de se conceber uma nova e excepcional forma de resolução dos conflitos sociais, com o escancarar das portas do Judiciário para minimizar, entre os mais humildes cidadãos, a demanda reprimida, a “litigiosidade contida”, na feliz expressão do notável Kazuo Watanabe.

O festejado Cândido Rangel Dinamarco, escrevendo sobre "O processo nos Juizados das Pequenas Causas", observou que "O Juizado é instituído como tribunal do cidadão e em princípio não visa oferecer soluções a problemas de empresas ou mesmo associações, mas ao indivíduo enquanto tal" ("Juizado Especial de Pequenas Causas", p. 126, Ed. 1985 – RT). Esse pensamento não destoava da Exposição de Motivos da revogada Lei 7.244/84, que registrava que "O Juizado Especial de Pequenas Causas objetiva, especialmente, a defesa de direitos do cidadão, pessoa física, motivo pelo qual somente este pode ser parte ativa no respectivo processo. As pessoas jurídicas têm legitimidade exclusiva no pólo passivo da relação processual" (n.16).

Voltando às considerações sobre a visão do Legislativo a respeito dos juizados especiais, anota-se que a Lei 1.253, de 22 de dezembro de 2009, que instituiu os Juizados Especiais da Fazenda Pública e passou a vigorar no dia 23 de junho do ano passado, veio sufocar ainda mais a debilitada organização funcional dos juizados estaduais, na medida em que obriga os tribunais a instalar, dentro do sistema dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, um novo organismo que, embora com prazo determinado para o pleno funcionamento, irá requerer uma estrutura organizacional mínima composta de juízes togados, conciliadores, juízes leigos e servidores, e instalações adequadas para garantir a efetividade da prestação jurisdicional também no campo desses juizados. Melhor seria que os propósitos da Lei 1.253/09 fossem afirmados em legislação a ser aplicada nas varas de Fazenda Pública existentes, ou nas varas cíveis do juízo comum, que poderiam, perfeitamente, conviver com o gerenciamento de processos contra as Fazendas Estaduais e Municipais, diferenciados pelo valor da causa, priorizando aqueles definidos como especiais e utilizando os conciliadores e juízes leigos da justiça especial. Essa idéia foi defendida junto ao Congresso Nacional, pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), mas, infelizmente, não encontrou eco, optando os legisladores pelo sistema constante da referida Lei.

No campo externo, há ainda outros fantasmas pairando sobre a cabeça dos juizados. Com possibilidade de serem convertidos em leis, há no Congresso inúmeras propostas de ampliação da competência dos juizados (tanto em razão do valor da demanda como da natureza da matéria) e de alargamento do rol dos legitimados ativos, o que irá fragilizar ainda mais a instituição e apressar o seu desmoronamento. É indisfarçável o intento do legislador de beneficiar camadas da sociedade que já têm posições privilegiadas garantidas por legislação específica, estendendo a elas também o proveito da justiça especial.


A propósito, para nós se afigura pasmoso o PL 6702/2009, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e prestes a entrar em pauta, que admite como autoras nos juizados especiais cíveis, as pessoas jurídicas das organizações religiosas e dos partidos políticos (estes, aliás, citados como exemplo na justificativa do autor do Projeto).

E o que dizer do PL 5177/2009 (também aprovado na CCJC) que acrescenta na competência dos juizados especiais cíveis as causas, de valor ilimitado, advindas do serviço registral e notarial, possibilitando a tramitação de feitos relativos a anulações de registros civis de pessoas físicas e jurídicas, de emancipações e interdições, ou desconstituição de escrituras públicas de compra e venda e matrículas imobiliárias lavradas em desconformidade com a lei?

O que será da instituição, se aprovado o PL 5132/2009 que visa aumentar o valor de alçada dos juizados cíveis para oitenta salários mínimos, admitindo a cumulação de pedidos de reparação de danos materiais e morais e que o valor destes supere qualquer limite?

A ânsia reformista atinge, também, os juizados criminais, igualmente ou mais desaparelhados que os cíveis para receber a demanda atual. É o caso da sugestão constante do Projeto de Lei 7.222/2010, que amplia a área de atuação dos Juizados Especiais Criminais, conferindo-lhes competência para julgar os crimes punidos com pena não superior a 5 anos, com ou sem multa. Passariam a integrar o rol dos crimes de menor potencial ofensivo e, assim, incluídos na competência dos Juizados Especiais Criminais, mais de cem novos delitos previstos no Código Penal, e outras dezenas de infrações tipificadas em legislação especial, como os crimes falimentares (dos onze delitos previstos na nova Lei de Falências, nove seriam julgados pelos Juizados Especiais Criminais), os delitos contra a criança e o adolescente (mais seis novos crimes), os crimes contra o sistema financeiro (mais nove tipos penais), os definidos como crimes de sonegação fiscal (mais seis infrações), os crimes previstos na lei que institui normas para licitação (mais cinco delitos), os crimes ambientais (mais 22 delitos), todos os crimes de trânsito (12 figuras típicas), os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento (quatro), as modalidades criminosas da Lei de Imprensa (mais cinco infrações), os delitos previstos na legislação antitóxicos (mais dois crimes), entre outros previstos no ordenamento jurídico penal extravagante.

Os sites da Câmara e do Senado informam a existência, naquelas Casas, de quase duas centenas de projetos de leis referindo-se aos juizados especiais. Salvo melhor pesquisa, entre esses, não se vê nenhum tratando da alocação de recursos ao Poder Judiciário para a implantação plena, o efetivo funcionamento e a permanente manutenção dos juizados.

Ainda recentemente fomos surpreendidos com mais uma investida do Poder Legislativo à instituição dos Juizados Especiais, traduzida na intenção de se implantar os Juizados Especiais da Família, que seriam criados pelos estados para conciliação, processo, julgamento e execução em causas e procedimentos cautelares de divórcio consensual, regulamentação do direito de visitas, guarda de filhos menores, investigação de paternidade, revisão e exoneração de alimentos e partilha de bens, cujo valor não exceda a quarenta salários mínimos. Uma vez aprovada a proposta, a Lei entraria em vigor no prazo de cento e oitenta dias, contados a partir de sua publicação.

As mesmas considerações feitas acima, sobre a inconveniência da implantação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, aqui se repetem.

No Fonaje realizado na Bahia em novembro de 2010, a ideia de implantação dos Juizados da Família foi amplamente discutida e afinal repudiada pelos participantes daquele fórum que, à unanimidade, aprovaram o endereçamento de expediente ao Congresso Nacional solicitando a suspensão de todos os projetos de lei em tramitação naquela instituição política, envolvendo os Juizados Especiais.

A grande maioria dos Tribunais de Justiça, sabidamente, não dispõe de recursos financeiros suficientes para conservar, de forma adequada, as estruturas materiais e humanas dos órgãos judiciários existentes, muito menos de criar novas unidades da justiça especial; vivem garroteados pela Lei de Responsabilidade Fiscal que, com relação ao Judiciário, é uma autêntica monstruosidade. Essa Lei, não se ignora, foi criada para impor limites de gastos aos dirigentes pródigos dos poderes Legislativo e Executivo, promotores contumazes de verdadeiras orgias com o dinheiro público, não só na execução de obras como na contratação de pessoal, muitos deles, verdadeiros “fantasmas” ou “entidades” que nem mesmo comparecem às repartições, ou só a elas comparecem para o recebimento dos seus vencimentos. Entrementes, dita Lei alcançou também o Poder Judiciário, cuja atividade principal é a prestação de serviços que não pode ser concedida sem o trabalho de pessoas. Fez-se vista grossa para a circunstância de que os serviços públicos a cargo do Judiciário somente podem ser bem prestados à população se contar com um quadro funcional bem estruturado em número e conjunturas suficientes à realização de tais serviços. Em verdade, o limite imposto para o suprimento das despesas com o nosso pessoal não poderia jamais ser fixado ao ponto de comprometer, como está comprometendo, a prestação dos serviços públicos que o Judiciário tem o dever de conferir.

Há dez anos, já se sentia o enfraquecimento progressivo da instituição, denunciado por críticas e advertência de respeitáveis autoridades no assunto, como o desembargador Nildomar da Silveira Soares, do Tribunal de Justiça do Piauí, professor da Escola Superior de Magistratura daquele estado e autor de diversas obras jurídicas, que assim se manifestou:
“A grave mudança, no momento atual vivido pelo Poder Judiciário, leva-me a pensar que o legislador brasileiro portou-se na contramão do conhecido adágio popular de que ‘Deus dá o frio conforme o cobertor.”

De que valerá ampliar o número de jurisdicionados, se os vitoriosos juizados estão, sob a égide da lei vigente, cada vez mais abarrotados de processos? Não seria uma danosa forma de – com a letra fria da lei – passar a atribuir descomunal esforço a uma engrenada máquina impulsionadora dos Juizados Especiais que, aliás, já opera no limite, e, em contrapartida, deixar de oferecer um cobertor capaz de abrigar aqueles que ali trabalham e os carentes jurisdicionados que encontram rápida guarida na Lei 9.099/95?

Traria, em verdade, benefícios futuros, se existisse a vontade política dos governantes de ampliar o número desses Juizados nos quatro cantos do Brasil. Isso, porém, lamentavelmente, não ocorre. Doravante, passo a acreditar na nociva inversão: os Juizados Especiais, não mais "especiais", transformar-se-ão em grandes varas da Justiça Comum, com sua atual morosidade e pecados, enquanto que as varas comuns passarão a exercer o papel dos atuais Juizados Especiais, embora de forma onerosa e de rito mais complexo. Valho-me, novamente, de outro provérbio: "é descobrir um santo e cobrir outro", talvez trocando um milagroso por um …” (“Juizados Especiais: a Justiça da Era Moderna agoniza” – Jus navigand).

Sobre essa crise que atingiu os juizados, também havia se manifestado o magistrado aposentado Vladimir Passos de Freitas, ilustre presidente do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus), que assim se expressou:

“Mas, como sempre, nem tudo são flores. Os Juizados, com as facilidades que propiciam (não se pagam custas, por exemplo) começaram a ficar abarrotados de processos. A conscientização da população sobre os seus direitos (fato positivo) e a busca de proteção, resultaram em uma explosão de processos.”

Daí ao congestionamento foi um passo. Boa parte das ações penais onde não há acordo acabam prescrevendo. Audiências são marcadas para 2 anos depois. Há falta de conciliadores preparados, de estrutura material e de servidores. Problemas graves, principalmente nos centros mais populosos, acabam levando o sistema ao colapso” (www.conjur.com.br/2010-jul-25/segunda-leitura).


As pesquisas têm demonstrado que nos tempos atuais os juizados especiais estão em manifesto e flagrante declínio, e isso ocorre, sem dúvida, em razão de não ter sido, até hoje, absorvida pela cúpula do Judiciário de grande parte dos Estados, a idéia de se estabelecer mudanças na forma tradicional de prestação de Justiça. O conservadorismo próprio dos avessos a qualquer tipo de inovação, o comodismo que contamina os que querem deixar como está para ver como é que fica, e principalmente o injustificável preconceito devotado à justiça de pequenas causas, contribuíram para a involução do sistema que não recebeu, nesses Estados, a atenção e qualquer espécie de planejamento, ficando essa justiça entregue à sua própria sorte.

O que se evidencia é que o funcionamento adequado e efetivo dos juizados depende sempre da vontade política dos administradores dos tribunais de justiça. Algumas administrações, assimilando os princípios que informam o sistema e reconhecendo a sua relevância, desenvolvem e mantém políticas tendentes a garantir os recursos orçamentários, materiais e humanos para o permanente aperfeiçoamento da gestão da instituição. Outras, todavia, por indesculpável descaso e malquerença, a enxergam como um sub-justiça, criada para servir a sub-jurisdicionados, ou a uma parcela de cidadãos de pouca importância; desdenham dos resultados das pesquisas de opinião pública que apontam os juizados como a instituição judicial de maior presteza e confiabilidade e lhe destacam com a avaliação mais positiva entre os órgãos do Poder Judiciário nacional; recusam dispensar os atendimentos necessários para a dinamização dos serviços que devem ser dirigidos à sua vasta clientela, quer deixando de incluir nos orçamentos dotações para o suprimento das suas despesas de pessoal e custeio, quer mantendo o gritante e incompreensível desequilíbrio que há no preenchimento dos cargos de servidores e na lotação de juízes nas varas da justiça tradicional e nos juizados, conferindo prioridade quase absoluta àquelas do juízo comum; subestimam, enfim, a contribuição extraordinária que esses organismos vêm dando para proporcionar o acesso ao Judiciário de massas expressivas da população.

Então, o que se nota é que os juizados transmitem imagens, ora de uma experiência bem sucedida, ora de uma instituição fracassada, dependendo do modo como os tribunais atuam em relação a eles. 

Seguramente, a desconsideração para com a instituição reflete no comportamento funcional dos juízes, principalmente daqueles que, nos juizados adjuntos, exercem jurisdição cumulativa, atendendo ao juízo comum e ao especial a um só tempo. Tenho conhecimento próprio que muitos desses juízes, uns de forma explícita, outros veladamente, não dispensam a devida atenção à jurisdição especial, concentrando o seu trabalho na comum. Formou-se entre esses, uma cultura vesga de que a atividade desenvolvida nos juizados não é tão relevante e considerada como a realizada na justiça tradicional e que isso transparece nas promoções, levando vantagem o magistrado com grande produtividade na justiça comum e que se dedica mais aos seus processos.

Essa idéia ganhou corpo e muitos adeptos, quando se soube que determinado corregedor-geral de justiça de um tribunal estadual, propôs, oficialmente, que fossem excluídos do rol de juízes concorrentes a vaga de desembargador, aqueles que judicavam nos juizados especiais, o que causou veementes protestos da magistratura brasileira, lavrados em repúdio a tão alta ignomínia, em mais de um Encontro Nacional do Fonaje.

O mal ou nenhum gerenciamento do sistema, sobre ir de encontro aos objetivos que inspiraram a sua instituição, de democratizar e ampliar o acesso à Justiça, vem contribuindo para transformar os juizados em verdadeiros apêndices da Justiça comum, para decepção de muitos que estão vendo cair por terra às melhorias sonhadas para o judiciário.                       

Não são contemporâneos comentários feitos por usuários dos juizados, como este:
“Veja-se o caso dos Juizados Especiais Cíveis que inicialmente eram chamados de Juizados de Pequenas Causas. No início, logo depois de criados, funcionavam a contento para dirimir as avenças de pequeno valor . Era até possível atendimento nestes juizados durante a noite o que dava grande dinamismo aos seus trabalhos. Mas, o funcionário público do Juizado reclamou do trabalho noturno e seus sindicatos prontamente agiram contra o expediente estendido dos Juizados. Resultado: acabou-se o atendimento noturno destes órgãos do Judiciário e atualmente para ser atendido num deles o trabalhador tem que deixar os afazeres produtivos nas horas diurnas de expediente para ir ajuizar uma reclamação pelos seus direitos de consumidor.”

Mas, com menos de dez anos de implantados os Juizados Especiais já não servem mais às finalidades para as quais foram criados. A cultura corrupto-fasci-corporativista prevalecente no serviço público brasileiro burocratizou os serviços, desorganizou o funcionamento e malbaratou o trabalho deles. O desmazelo administrativo tomou conta destes órgãos que deveriam, principalmente, cuidar dos interesses dos mais humildes, especialmente nas relações de consumo, já que as classes menos favorecidas não precisam de Justiça para causas que envolvam valores patrimoniais de grande monta. Hoje em dia, para se defender, por exemplo, de uma conta de valor abusivamente majorado por uma operadora de telefonia , ou de fornecimento dágua ou de energia ou de uma loja que promoveu propaganda enganosa a audiência de instrução pode ser marcada para dois anos ou mais no futuro. Ora, se é assim, os Juizados Especiais perderam, definitivamente, sua razão de ser, já que tal demora é igual à da Justiça comum. Em outras palavras, os Juizados Especiais, em matéria de morosidade se igualaram à Justiça comum tornando sem sentido, por exemplo, ajuizar uma causa contra uma operadora de telefonia que majora sorrateira e ilicitamente uma conta mensal de prestação de serviços. Com isto, estes instrumentos concebidos para a proteção do povo, dos mais humildes e carentes, perderam totalmente a sua razão de órgão de defesa dos mais pobres e carentes (Didymo Borges,  www.brasilwiki.com.br/noticia).

Nada obstante os profundos distúrbios funcionais da instituição e do estado de crise inquietante que vive, penso que há salvação para os juizados, desde que sejam adotadas medidas e providências tais como:

I — pelos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça, Fórum Nacional dos Juizados Especiais, e outras importantes entidades e instituições ligadas ao Poder Judiciário:
a) promover gestões junto ao Congresso Nacional para obstar a tramitação e aprovação de qualquer projeto que visa ampliar a competência dos juizados e aumentar o rol dos legitimados a propor ações nos juizados cíveis;
b) encarecer ao Poder Legislativo o encaminhamento de projetos que tenham por objetivo a alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal, para não impor ao Judiciário limites de gastos com pessoal, ou ampliar o atual percentual, de sorte a não inviabilizar a formação de uma estrutura humana mínima, necessária para a adequada prestação dos serviços judiciários;

II — pelos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal:
a) cumprir a providencial determinação da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, constante do Provimento n.7, de 7 de maio de 2010, de fazer consignar, expressamente, nos respectivos orçamentos, verbas destinadas à manutenção e ao aprimoramento do Sistema dos Juizados Especiais, com sua efetiva aplicação (art. 3°);
b) observar, na destinação de recursos materiais e de pessoal, a proporcionalidade no tratamento entre as unidades do Sistema dos Juizados e as demais unidades da Justiça comum, adotando-se como critério objetivo o número de distribuição mensal de feitos de ambos os Sistemas (art. 3°, § 1°);
c) distribuir, de forma equânime, entre os juízes da justiça comum e os juízes do sistema dos juizados especiais, os assessores de magistrados de primeiro grau (artigo 3°, parágrafo 2°);
d) não estabelecer qualquer discriminação aos magistrados de juizados especiais que devem ser, em relação aos demais juízes da justiça comum, igualmente reconhecidos e valorizados;
e) obter e conceder recursos para viabilizar a virtualização de todos os processos dos juizados especiais e adjuntos, mantendo as suas tramitações exclusivamente em meio eletrônico;
f) assegurar recursos e meios para a realização de cursos permanentes de aperfeiçoamento de magistrados atuantes nos juizados especiais com vistas à formação de uma cultura de inovação na função de judicar;
g) realizar cursos e seminários visando à capacitação de conciliadores, juízes leigos e servidores da justiça especial;
h) encarecer do Ministério Público e da Defensoria Pública onde existente, a lotação fixa de promotores de justiça e defensores públicos em cada unidade dos juizados.

Para finalizar, transcrevo as sábias e oportuníssimas lições do notável desembargador Caetano Lagrasta Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmadas no seu livro “Juizado Especial de Pequenas Causas no Direito Comparado”:
“Um dos equívocos mais evidentes que se pode constatar em relação ao nosso Direito é o de ser atribuir ao Poder Judiciário todas as funções judicantes sem muni-lo do respectivo arsenal de infra-estrutura material e humana; sem torná-lo definitivamente independente, administrativa e economicamente, impossibilita-o de assimilar, com a urgência devida, a necessidade de uma mudança de mentalidade de todos aqueles que militam na administração da Justiça”.

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