País do futebol

A Justiça em campo na Copa do Mundo de 2014

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26 de julho de 2011, 9h14

A Copa de 2014 se aproxima e, com os atrasos se evidenciando, desaparece o pudor das autoridades. Sob o pretexto de assegurar que o evento não prejudique a imagem do país e das cidades, surgem isenções e investimentos públicos que, fatalmente, terão a legalidade questionada perante o Poder Judiciário. Como juiz, não me vejo em posição confortável para julgamentos prévios, mesmo que não seja nada provável que um pobre marquês de Embu se veja às voltas com os processos. Contudo, sinto-me na obrigação moral de externar uma preocupação com o que parece ter se tornado uma presunção pública – a de que tudo passará incólume pelas barbas e togas da Justiça brasileira. No meu círculo de amigos e conhecidos, praticamente ninguém acredita que algum destes estratagemas, por mais perfidamente ilícito que venha a se denotar, será barrado judicialmente. Como deixamos tal descrédito tomar conta da sociedade? Como modificar estas silenciosas vaias para aplausos?

É certo que o Poder Judiciário tem atributos que asseguram a independência funcional de seus membros, para que tomem suas decisões baseados unicamente no que o ordenamento jurídico estabelece. Não são poucos os casos em que a opinião pública, afetada por desinformação ou preconceito, diverge dos ditames da Justiça. Tanto que existe um brocardo informal pelo qual se sabe que "é mais fácil ser legal – no sentido popular – que justo". Esta separação permite que se proteja a própria sociedade de seus excessos. Todavia, o que já estamos presenciando sugere medidas que, a olho nu, atacam princípios constitucionais e administrativos que qualquer candidato a concurso deve conhecer de cor, quanto mais magistrados há muito aprovados e no exercício das carreiras. Vemos entes particulares desdenhando publicamente de qualquer obstáculo legal, quando não impondo condições para a realização de um acontecimento tipicamente privado. Para isso também vale a independência, para que a oportunidade e a conveniência dos governantes sejam reapresentadas a seus limites.

Evidentemente, são pontos que não podem ser repelidos de ofício, de modo que é preciso aguardar a atuação de promotores e, eventualmente, até dos eleitores em possíveis Ações Populares. Antes que isso ocorra, porém, há que se preparar o espírito para a pressão externa para que "não estraguem a Copa no Brasil". Não se espantem se um determinado jornal televisivo divulgar seguidas denúncias contra juízes e desembargadores para intimidar e abrir caminho ao chamado "liberou geral". Para suportar esta provável represália pelo cumprimento das leis, a magistratura tem que se unir. Por união, não me refiro a unificar pensamentos, mas a agir pensando na coletividade de nossa profissão. Vivemos um tempo em que as pessoas estão propensas a crer naquilo que de pior falarem sobre um juiz ou um promotor. Nas mentes de boa parte delas, um mais um só é dois quando interessa. Se não for o caso, ainda se relatando o que elas pensam, criam um Cirque du Soleil nos tribunais, com malabarismos jurídicos para transformar uma cadeira em porta. Não se constrói um país sólido desta forma.

É neste cenário que se medirá a citada independência funcional. Da minha parte, desejo aos colegas que atuarem nestes feitos a maior lucidez possível. Rogo para que esqueçam qualquer outro ponto que não seja aquilo que aplicam por toda a vida em seus julgamentos. Assim, sejam favoráveis ou desfavoráveis, as sentenças e acórdãos terão seus próprios fundamentos como legítima defesa da classe. Entre uma Copa do Mundo e o retorno da confiança do povo a que servimos, caso esta se revele como a dicotomia concreta, não tenho a menor dúvida do caminho a escolher. Nos próximos anos, não estará em jogo um título mundial. Na marca do pênalti, teremos o orgulho pela carreira que juramos representar com honra, honestidade e coragem de magoar, se preciso for, para distribuir o valor do Direito. Esta disputa não podemos perder – muito menos culpando o campo de jogo.

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