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Mudança de paradigma sobre indústria de cigarro

Autor

  • Vitor Vilela Guglinski

    é advogado especialista em Direito do Consumidor professor de diversos cursos jurídicos e de pós-graduação membro da Comissão de Professores de Direito do Consumidor do Instituto Nacional de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e autor de obras jurídicas.

22 de julho de 2011, 10h03

Recentemente, a justiça paulista decidiu mais um caso envolvendo a responsabilização da indústria do tabaco. A Revista Consultor Jurídico noticiou, no dia 26 de maio de 2011, a decisão proferida pela Juíza Fernanda Gomes Camacho, no processo nº 583.00.1995.523167-5, que tramita na 19ª Vara Cível de São Paulo (veja a íntegra da notícia em: http://www.conjur.com.br/2011-mai-26/juiza-nega-indenizacao-bilionaria-associacao-fumantes).

Mais uma vez, o Judiciário afastou a pretensão de pessoas vitimadas pelos efeitos deletérios do fumo. No caso, trata-se de uma Ação Coletiva movida pela Associação de Defesa da Saúde do Fumante (Adesf) contra as fabricas de cigarros Souza Cruz e Philip Morris do Brasil. Dentre os argumentos que fundamentara a decisão, a MM. Juíza destacou que:

1. “O consumo de cigarros é mero fator de risco (probabilidade) de diversas doenças e não causa necessária”;

2. “a inexistência de alertas sobre os malefícios do consumo do cigarro nas embalagens e nas peças publicitárias, quando não havia exigência legal de tal advertência, não comporta responsabilização das rés”;

3. “É fato notório, há décadas, que o cigarro é prejudicial à saúde do fumante”;

4.“Embora seu consumo cause riscos à saúde, não há proibição de sua produção e comercialização. Ao contrário, o comércio de cigarros é atividade lícita, permitida em nosso ordenamento”.

Deixando de fora a questão da prescrição quinquenal, tratada no Resp 1.009.591- RS, ao examinar o mérito de duas outras demandas envolvendo a responsabilidade civil da indústria tabagista o entendimento do STJ nos  Resp 886.347-RS e Resp 886.347-RS ancora-se, principalmente, nos seguintes argumentos:

1. “O cigarro é um produto de periculosidade inerente”;

2. “A indústria tabagista não deve ser responsabilizada, uma vez que milhares de fumantes adquiriram o hábito de fumar numa época em que os fabricantes não conheciam os efeitos deletérios do tabaco para a saúde humana”.

3. “A comercialização do cigarro é lícita, somente sendo restringida a propaganda”;

4. “Não há ofensa à boa-fé objetiva, na medida em que há que se considerar o contexto legal, histórico e cultural vigentes até antes de se conhecer os riscos do consumo de tabaco”;

5. “A Medicina não comprovou a causalidade necessária, direta e exclusiva entre o consumo de tabaco e o câncer, pois o estilo de vida do fumante deve ser analisado globalmente, uma vez que fatores como stress, sedentarismo, má alimentação, consumo de álcool etc. também contribuem para o desenvolvimento da doença”;

6. “Há que se considerar o livre arbítrio do indivíduo, que, dentre as opções de não fumar e fumar, escolheu a última, havendo, portanto, sua culpa exclusiva”.

Até o momento, essa é a posição do STJ em relação à matéria, ou seja, os fabricantes de cigarros não devem ser responsabilizados pelos danos advindos do consumo das substâncias presentes no tabaco, na medida em que não se lhe pode atribuir culpa exclusiva.

A questão tabagista, como é possível perceber, é polêmica, na medida em que põe em confronto uma questão moral por parte dos fabricantes de cigarros que, mesmo conhecendo amplamente os riscos do tabaco para a saúde humana, continuam a comercializar seus produtos, sem que sofram, contudo, qualquer sanção por parte do poder público, bem como envolve a questão do livre arbítrio de que cada pessoa dispõe, sendo que, ao final, os fabricantes de cigarros tem vencido as batalhas judiciais no Brasil.

Propondo um “meio termo” para solucionar as questões atinentes aos males causados pelo fumo, o professor e Doutor em Direito pela USP – Flávio Tartuce, sustenta em sua tese de doutorado a aplicação da teoria do risco concorrente nos casos envolvendo demandas de consumidores contra a indústria do tabaco, amparando-se, em meio a outros lúcidos argumentos, nas irretocáveis ponderações do Des. Caetano Lagrasta, despendidas nos autos da Ap. Cível nº 379.261.4/5-00, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, condenando um fabricante de cigarros, e que levou e conta o seguinte:

1. “O cigarro é um problema de saúde pública, inclusive devendo-se responsabilizar o Estado pelos danos causados pelo fumo, haja vista o dano social que se verifica através do hábito de fumar”;

2. “A imposição social do fumo no passado”;

3. “A doença da autora da ação (Doença de Buerger) foi causada pelo consumo de cigarros”;

4. “No passado, a publicidade do cigarro era enganosa, em razão da omissão intensional de informações relevantes por parte da indústria tabagista, em relação aos males causados pelo cigarro”;

5. “A licitude da comercialização de cigarros somente está presente em parte da atividade da empresa, mas não no momento em que aquela coloca nos produtos substâncias sabidamente nocivas à saúde”;

6. “Em relação ao livre arbítrio, sustenta que este não pode conduzir à existência de um dogma ou a uma estranha e impossível religião do vício, ou seja, não se pode transferir ao consumidor todo o peso do consumo de cigarros”.

Consoante o trabalho apresentado à banca examinadora, o autor em referência propõe um meio termo entre a total ausência de responsabilidade por parte daquelas empresas e sua responsabilidade integral pelos danos causados pelo cigarro, sendo que a argumentação se desenvolve a partir da chamada concausalidade, entendida como a concorrência de causas que redundam na ocorrência do evento danoso experimentado pelo ofendido.

Em sede normativa, a concausalidade pode ser extraída da leitura dos arts. 944 e 945 do Código Civil, que assim dispõem:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Se por um lado não é justo que as empresas fabricantes de cigarros suportem sozinhas a responsabilidade pelos danos causados pelo consumo do tabaco, muito menos justo seria permitir que a indústria tabagista continue seu comércio sem que seja responsabilizada pela propagação de um produto sabidamente nocivo à saúde humana. Da mesma forma, não é justo nem que o consumidor suporte sozinho aqueles danos, e nem que fique totalmente isento de responsabilidade pelos seus atos. É preciso, como foi dito, analisar a realidade fática que cerca os sujeitos envolvidos, de forma a verificar a parcela de culpa de cada um para a materialização do dano.

Consoante a doutrina de Jorge Mosset Iturraspe, citado por Tartuce em vídeo disponível no site do INJUR[1], há que se verificar qual foi a contribuição causal dos sujeitos envolvidos na cadeia de eventos que culminaram no dano experimentado pelo ofendido, pois, segundo o jurista argentino, na responsabilidade civil, raríssimas são as situações em que uma parte é totalmente culpada e a outra é totalmente inocente.

Com vistas nas dificuldades enfrentadas pelos estudiosos do tema, sugere-se como solução para essa celeuma a realização de exame pericial consistente na consecução de cálculos estatísticos, a serem solicitados pelo juiz da causa, sendo que entende-se como justa a proporção de 20% de culpa por parte do consumidor, e os 80% restantes por parte da empresa tabagista.

Mas por que a indústria tabagista deve ser mais responsável pelos danos em discussão? Ora, por serem conhecedoras de todas as informações sobre os malefícios que envolvem o consumo do tabaco, as empresas fabricantes de cigarros agem refletidamente, conscientes, e exclusivamente baseadas no custo-benefício que cerca sua mercância. Aliás, auferindo muito mais benefícios do que custos ao longo de todos os anos durante os quais omitiu, dolosamente, informações relevantes, conhecidas antes do Poder Público em relação à capacidade destruidora das substâncias componentes do cigarro, iniciando e mantendo as pessoas nesse vício nefasto.

Analogicamente, a atividade da empresa tabagista se aproxima da idéia de dolo eventual, estudado no Direito Penal. Essas empresas, mesmo sabendo que seus produtos são potencialmente letais, assumem o risco, in casu um risco proveito, porquanto auferem lucro com sua atividade, preferindo continuar comercializando derivados do tabaco, pois, mesmo que milhares de pessoas sofram danos em razão do consumo de cigarros, e até possam morrer por isso, sua finalidade (lucro) estará satisfeita.

De sua sorte, valendo-se da mesma analogia, o consumidor estaria incorrendo em culpa consciente, na medida em que, embora tenha plena consciência de que o consumo de cigarros pode matar, acredita seriamente que tal resultado não advirá. Certamente, a conduta da empresa é muito mais grave.

Nos parece que a proposta em estudo, dentre todas até então apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência, é a mais justa e correta, pois não se pode desprezar que o consumidor, sem dúvida, é quem, em última instância, determina seu comportamento, sendo essa a consequência natural do determinismo inerente ao ser humano.

Mas será que o comportamento do consumidor é refletido, consciente, livre de influências externas?

O consumo é atividade que deve ser refletida, isto é, deve ser desempenhada conscientemente, de maneira livre e espontânea pelo consumidor. Tomando por base essa premissa, não encontramos dificuldades em concluir que o consumidor, em maior ou menor grau, acaba sendo influenciado pela publicidade cotidiana, a qual, se hodiernamente não é explícita, é praticada de forma velada. Se é certo que hoje temos a restrição da propaganda do cigarro, não é por isso que a indústria tabagista deixará de anunciar o cigarro de forma sutil, através do cinema e da TV, por exemplo. A título ilustrativo, quantos de nós não assiste, quase diariamente, a notícias sobre atletas, principalmente do futebol, que são consumidores de cigarros?

Ora, será que a imprensa, ao divulgar esse tipo de informação, seja por qual mídia for, não é capaz de despertar no indivíduo a falsa idéia de que fumar não causa tantos males? Afinal de contas, um atleta profissional, externamente em forma, gera a presunção de que goza de boa saúde, na medida em que um corpo saudável é indispensável para um bom desempenho no esporte.

Sendo assim, a idéia de que o hábito de fumar se relaciona ao livre arbítrio não merece prevalecer, já que somente será legítimo se advier de atividade refletida por parte do consumidor.

O argumento no sentido de que a industrialização e comércio de tabaco são atividades lícitas, autorizadas e regulamentadas pelo Poder Público também não deve prosperar, a teor do que dispõe o art. 187 do Código Civil, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons costumes.

Fim econômico, fim social, boa-fé e bons costumes são conceitos jurídicos indeterminados, isto é, que na análise de um caso concreto dependem de valoração por parte do julgador, a fim de conferir concretude à norma jurídica. Desses quatro elementos, penso que a análise de somente dois deles (fim social e bons costumes) já é suficiente para rechaçar o argumento da comercialização de cigarros como atividade lícita.

Quanto ao fim social, indagamos: Qual é o fim social do cigarro? Esse tipo de produto possui um fim social? É salutar à sociedade? Em que medida? Há quem diga que um cigarrinho acalma, relaxa etc. Com a devida licença dos que entendem o contrário, não consigo visualizar qualquer outro fim social do cigarro que não seja somente a geração de empregos na respectiva indústria. Hodiernamente, fumar é considerado um hábito antissocial.

No tocante aos bons costumes, sem nos estender, estes geralmente são relacionados à idéia de moralidade, isto é, na idéia de atitudes reiteradas e de conteúdo ético que, de um modo geral, facilitam ou tornam agradável a vida em sociedade. No passado, a doutrina aproximava o conceito de bons costumes ao de boa-fé, exatamente em razão da carga ética comum a ambos os institutos. Todavia, consoante lição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva[2], “o que importa contrastar é que os bons costumes referem-se a valores morais indispensáveis ao convívio social, enquanto a boa-fé tem atinência com a conduta concreta dos figurantes na relação jurídica" (COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo, 1976, p. 31).

Sendo assim, indagamos: o hábito de fumar é um bom costume? Traz benefícios? É um comportamento desejado? Obviamente, a resposta é negativa, o que é corroborado pelas leis antifumo que vem restringindo o uso do tabaco nos mais diversos locais, em todo o território nacional, sempre em nome da saúde pública referida pelo Desembargador Caetano Lagrasta no julgado mencionado linhas atrás.

Quando contrariados aqueles conceitos presentes no artigo 187 do Código Civil, dá-se o nascimento do abuso de direito, o que, nos dizeres de Flávio Tartuce, ocorre “quando a pessoa exceda um direito que possui, atuando em exercício irregular de direito[3]. Ou seja, em sua conduta inicial, a atividade é lícita, porém, torna-se ilícita em momento posterior, o que, no caso do cigarro, materializa-se no momento em que o fabricante insere no produto substâncias sabidamente tóxicas e potencialmente letais.

A esse respeito, o artigo 12, caput, do CDC, traz valiosa elucidação, uma vez que dispões que os fabricantes respondem objetivamente pela reparação dos danos decorrentes de defeitos nas fórmulas de seus produtos. Sendo assim, no momento em que adicionam ao tabaco substâncias estranhas à sua composição natural, deve o fabricante responder pelos danos experimentados pelo consumidor.

Assim, s.m.j., se a indústria tabagista sabe que sua atividade é perniciosa à sociedade, está incorrendo em abuso de direito, pois contraria o fim social e os bons costumes, e daí decorre sua responsabilidade objetiva de reparar os danos sofridos por seus “clientes”.

Um breve parêntese: provavelmente alguns leitores irão rechaçar as idéias contidas neste texto, argumentando que, paralelamente ao cigarro, o mercado de consumo possui diversos outros gêneros cujo consumo também provoca danos à saúde humana, tais como as fast-foods, os refrigerantes, o açúcar, o sal, a gordura animal presente nas carnes e derivados do leite, os agrotóxicos presentes nos vegetais etc. Além disso, poderão argumentar que a poluição presente no ar, nas águas e outros infindáveis fatores são capazes de causar danos à saúde, inclusive o câncer.

Para esses leitores, esclareça-se que, certamente, o consumo exagerado daqueles produtos e substâncias é sim capaz de causar danos das mais diversas ordens ao organismo, inclusive desencadear algum tipo de câncer. No entanto, o consumo moderado, dentro dos padrões recomendados pela Medicina, é essencial à sobrevivência humana. O açúcar, a gordura, o sal, os oleaginosos etc., todos tem importância para o correto funcionamento do corpo humano. Em excesso, causam danos; em carência, igualmente. Assim, consumidos em níveis seguros, salvo em casos específicos envolvendo pessoas que já são portadoras de algum mal ou sensíveis a alguma substância, os gêneros animais, vegetais e minerais nos auxiliam.

Mas, e o cigarro? Qual substância presente no cigarro é indispensável à manutenção da vida humana? Ora, sabidamente, nenhuma! Aliás, a informação constante nos maços de cigarro é: “não existem níveis seguros para consumo dessas substâncias”.

Nessa era da chamada principialização do Direito, os estudiosos devem voltar os olhos para a Constituição Federal – norma jurídica repleta de princípios que visam orientar o desenvolvimento social em todos os seus níveis e de forma plena, sendo que não é por acaso que o direito à vida se encontra em posição topográfica no texto constitucional. É um direito que não deve ser encarado como mera declaração, mas sim como objeto primordial das ações governamentais e da própria sociedade, com vistas à promoção do pleno desenvolvimento do indivíduo, já que, nos dizeres de Miguel Reale, “o homem é o valor fonte de todos os valores”.

Com essas breves considerações, manifesto meu total apoio aos estudiosos que, arduamente, vem se debruçando sobre esse grave problema de saúde pública, de forma a mudar o paradigma que vem orientando as decisões judiciais sobre o consumo de cigarros no Brasil, torcendo para que aqueles acometidos pelo vício do fumo possam dele se livrar, mas, acima de tudo, para que às próximas gerações seja oportunizado o exercício de uma liberdade legítima, livre da má influência do marketing subliminar e das perniciosidades mercadológicas que acometem o consumo.


[1] http://www2.injur.com.br/pg/videos/play/group:5/9325/responsabilidade-civil-pelo-cigarro-prof-flvio-tartuce

[2] Jornal Carta Forense, segunda-feira, 3 de agosto de 2009. Acesso em: 27/05/2011

[3] In Manual de Direito Civil: volume único / Flávio Tartuce – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.

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