Ideias do Milênio

"As pessoas já não querem mais fugir das cidades"

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22 de julho de 2011, 8h29

REprodução/ Globo News
Entrevista do compositor, escritor e artista plástico americano David Byrne  ao jornalista Jorge Pontual para o programa Milênio, da Globo News, transmitido em agosto em 4 de maio. O Milênio é  um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

David Byrne, famoso nos anos 80 como líder do grupo Talking Heads, hoje com uma bem sucedida carreira solo, como músico e artista plástico, sempre foi apaixonado por bicicletas e pedala mundo afora quando viaja em turnê, levando sua bicicleta desmontável. Para ele, pedalar não é só um exercício mas um meio de melhorar o planeta e a sociedade. Ele acabou virando um ativista político do movimento para tornar as cidades menos congestionadas e mais humanas através da construção de extensas redes de ciclovias.

Byrne — que é o maior divulgador da música popular brasileira no exterior, redescobriu Tom Zé, introduziu os Mutantes para o público americano e fez discos de compilação do melhor da nossa música — volta ao Brasil esta semana para trazer a mensagem de mudança e falar do livro Diários de Bicicleta, que escreveu contando suas aventuras pelo mundo. Depois de ler o livro de Byrne, decidi mudar também e passar a ir de bicicleta para o trabalho. Comprei uma igualzinha a dele. E Byrne me mostrou como é fácil montá-la. Contei no relógio. E ele, apesar de uma certa dificuldade, abriu e montou a minha bicicleta em apenas 40 segundos. Depois, quando eu a dobrei para levá-la comigo até o escritório da Globo apanhei bastante, demorei muitos minutos. Mas eu chego lá. Nossa conversa foi no estúdio em Manhattan onde Byrne cria a sua arte e onde falou do futuro das cidades, sua paixão pelo Brasil e, é claro, da liberdade e das descobertas de quem anda por aí de bicicleta.

Jorge Pontual — O senhor está levando para o Brasil as suas ideias sobre bicicletas e o futuro das cidades, não é?
David Byrne — Não gosto de pensar que sou um defensor ou alguém que deve dizer às pessoas o que devem fazer ou o que é bom para elas. Muitas pessoas fazem isso. Eu pensei, eu uso a minha bicicleta para me locomover em Nova York por décadas e pensei que poderia contar sobre minhas experiências. E eu andei por outras cidades. Notei que você ganha uma noção da cidade, como é estruturada, qual é a atitude da cidade para com seus habitantes, como eles se sentem com relação à cidade. Isso também diz como eles se sentem com relação à vida, ao seu futuro e qual é a sua filosofia. Está tudo ali em como eles organizam o lugar em que vivem. Pensei que poderia falar sobre isso e sobre a minha visão sobre a situação que temos hoje que é, pelo menos nos Estados Unidos e em outros lugares, que o carro domina. O carro tem mais votos, se fosse uma democracia, o carro tem mais votos do que uma pessoa andando. Minha sensação é que deveria haver mais equilíbrio. Não para eliminar os carros, mas para ter mais equilíbrio.

Jorge Pontual — Como as bicicletas entram nesse contexto?
David Byrne — Para mim, veio por prazer. Veio, não por causa de exercícios — como envelheci essa parte é boa também — mas um prazer de me mover com minha própria força, quando eu quiser, ter controle e liberdade de parar, de ir, de parar e falar com alguém, entrar em uma loja, parar em uma casa de shows, esse tipo de coisa. Descobri também que, em uma cidade densa como Nova York, em Manhattan, é muito eficiente.

Jorge Pontual — Estive no Rio recentemente e tentei andar de bicicleta na Barra da Tijuca. O que acontece no Brasil é que temos uma nova classe média: 40 milhões de pessoas saíram da pobreza e se tornaram classe média. E a primeira coisa que fazem é comprar carros. Isso acontece na China, na Índia e em outros países emergentes. Então, temos muitos carros. Não consegui andar de bicicleta, era muito arriscado. Não tinha nenhuma ciclovia. Então, desisti. O que o senhor dirá… Como o senhor convencerá essas pessoas que associam andar de bicicleta com pobreza? Vejo o que os convencerá: engarrafamento. Não se consegue andar no Rio e em São Paulo, porque há muitos carros e você fica preso no trânsito. Isso talvez os convença de abrir mão dos seus carros e, talvez, andarem de bicicleta? O senhor acha isso possível? Parece que fizeram isso em Bogotá…
David Byrne — Sim, Bogotá fez isso. Outras cidades estão tentando soluções para amenizar os engarrafamentos, para limpar o ar em suas cidades. A Barra é ao sul do Centro, não é? Imagino que as pessoas que moram lá, talvez algumas dessas pessoas trabalhem no centro. Talvez não seja possível para essas pessoas irem de bicicleta sobre as montanhas e tudo mais até o trabalho. Elas podem começar a andar de bicicleta em sua região. Se precisamos fazer compras, ir à escola, ao médico, a uma livraria, para a praia. Todas essas coisas dentro daquela região. Isso parece muito possível, ao invés de usar o carro para andar uma ou duas milhas, um quilômetro ou dois quilômetros. Algo assim que parece sair de um estacionamento de um lugar para o outro.

Jorge Pontual — Como eles fizeram em Bogotá?
David Byrne — Minha visão é que havia, na época, uma proposta para construir uma nova autoestrada em Bogotá. 600 milhões, em uma estimativa conservadora. Aumentaria a dívida da cidade… A história nos mostra que construir autoestradas não alivia o congestionamento. Poderia amenizar por cinco minutos e, então, imediatamente, todos ocupariam, comprariam mais carros pensando que agora seria mais fácil, mas não. Elas enchem. As novas autoestradas enchem. Elas são tomadas na mesma proporção com que são construídas. Então, a solução não é construir mais, mas, talvez, parar de construí-las e encontrar novas formas para as pessoas se locomoverem. As grandes autoestradas, além de serem caras, são como cortes. Elas separam bairros e, em muitas cidades americanas, eles as constroem ao longo dos rios. Você consegue imaginar se todo o litoral do Rio fosse uma grande autoestrada? E que para chegar à praia você teria que atravessar uma autoestrada enorme. Seria horrível. É assim que é em muitas cidades daqui. Autoestradas ao longo dos rios, no oceano.

Jorge Pontual — Bogotá decidiu fazer o contrário.
David Byrne — Decidiram fazer o contrário. Foi mais barato. Decidiram colocar faixas especiais para os ônibus.   

Jorge Pontual — Como em Curitiba.
David Byrne — Sim, como em Curitiba. Eles claramente pegaram a ideia de Jaime Lerner.É mais barato que colocar um trem e consegue andar quase na mesma velocidade e colocaram ruas de pedestres e faixas de ciclismo. 

Jorge Pontual — Bogotá tem mais ciclovias que Nova York.
David Byrne — Sim e tenho vergonha em admitir isso. Sim. Além de aliviar o engarrafamento acredito que também criou comunidades. As pessoas saíram, se reuniram, descobriram que uma comunidade poderia se relacionar com outra, ir de uma para outra, começaram a fazer conexões ao redor dessa linha sinuosa de comunidades e bairros. Isso muda a forma como as pessoas vivem.

Jorge Pontual — O Brasil sediará a Copa do Mundo, em 2014, e o Rio, as Olimpíadas, em 2016, queremos mostrar ao mundo uma imagem positiva, mas estamos fazendo o contrário do que Bogotá fez. Estamos construindo mais autoestradas, mais pistas, porque pensamos que isso vai reduzir o engarrafamento. Isso não é verdade.
David Byrne — Não. Foi provado que construir mais autoestradas só piora o trânsito.Elas enchem e não resolvem o problema do congestionamento. Por alguma razão parece que será uma solução e construir autoestradas traz votos e dinheiro. Então, as pessoas vão chegar em casa e ver que não é a melhor solução quando temos outras formas de fazer isso. Autoestradas também… Não estou dizendo que são prejudiciais, mas muitas delas, se elas dominarem as cidades e a paisagem, abrimos mão de algo em nossas vidas. E o que recebemos em troca? Concreto.

Jorge Pontual — O Brasil também quer mostrar ao mundo a sua cultura. O senhor ajudou muito nesse sentido, porque trouxe músicos do Brasil para cá e para o cenário mundial. Com a coletânea Beleza Tropical, o senhor redescobriu Tom Zé, introduziu os Mutantes aqui. Como o senhor vê essa projeção da cultura brasileira mundo afora? O que o senhor acha que vai acontecer nessa área? O senhor pensa sobre isso?
David Byrne — Um pouco. Eu acho que, no Brasil, vocês têm uma cultura que tem como principal exportação, você tem muita exportação comercial e coisas de concreto, mas uma das principais exportações é música. Vocês têm música, poesia, textos, compositores, tudo isso. Poucos países podem dizer isso. O Brasil entende isso, que tem um grande bem cultural, mas tem muito mais. Arte, literatura, culinária, só a forma como as pessoas vivem e falam. A forma como se juntam e passam o tempo, acho que também são partes importantes da cultura também. Mais difícil de catalogar como exportação, mas acho que é algo que o mundo pode aprender. 

Jorge Pontual — O senhor andou de bicicleta no Brasil?
David Byrne — Andei. Aluguei bicicletas em Salvador, na Bahia.

Jorge Pontual — O senhor não levou a sua própria bicicleta?
David Byrne — Não.

Jorge Pontual — O senhor vai levar desta vez?
David Byrne — Não. Acho que vou pegar uma emprestada. Como estou viajando para muitas cidades nesta viagem, o custo seria muito alto.

Jorge Pontual — Uma das coisas fascinantes no seu livro é que o senhor não só vê coisas que as pessoas normalmente não veem, porque está de bicicleta, mas também porque quando o senhor está na bicicleta, o senhor medita. Algo do inconsciente surge, como isso funciona?
David Byrne — Talvez não quando está no meio dos carros, aí você tem que estar muito alerta. Se você está em uma ciclovia ou andando ao longo de um rio ou praia, pode fazer. Nesta manhã, eu vim trabalhar aqui, tem um caminho ao longo do Rio Hudson, então eu vou ao longo do rio e entro no Soho. Ter este tipo de atividade mecânica, parecido com dirigir, de certa forma, deixa que a mente trabalhe sozinha e você começa a resolver problemas, surgem ideias, você não precisa pensar sobre isso. Simplesmente acontece. Quando chega ao trabalho, você tem uma resposta para aquela questão que não sabia responder quando estava em casa.

Jorge Pontual — Conte algo interessante que o senhor encontrou ao andar de bicicleta por aí?
David Byrne — Eu não escrevi sobre isso no livro, mas eu cresci em Baltimore, que é uma cidade a poucas horas ao sul daqui.

Jorge Pontual — É um porto?
David Byrne — É uma cidade portuária e, como muitas outras, costumava ser uma cidade metalúrgica. Ainda tem o porto, mas a indústria metalúrgica acabou. Era uma cidade que costumava ter muitas indústrias aeroespaciais construindo coisas para os militares e para a Nasa e tudo o mais. Muita coisa não existe mais. É uma cidade que está em tempos difíceis, mas tem coisa muito interessantes lá. Tinha um homem que colecionava lâmpadas. Ele fez um museu em sua casa e abre um dia por semana ou você liga e pede para visitar a coleção. São quartos e quartos de lâmpadas e é como ficção, mas está lá. Há também, em outra parte da cidade, um museu de cera, chamado Great Blacks In Wax. É uma história de afroamericanos nos EUA e é mais ou menos feito à mão. Não é Madame Tussaud, comercial e feito para turistas, e, nesse sentido, é um pouco imperfeito, mas muito emocionante. Envolve muito mais emocionalmente, porque as pessoas que fizeram têm uma história para contar. Não é apenas uma atração turística, ou esse tipo de coisa. Você pode andar de bicicleta de um para o outro.

Jorge Pontual — Parece muito interessante. 
David Byrne — Sim, é muito interessante, mas, como cidade, eu acho que é um desastre. Também é algo que você descobre em uma bicicleta e, de outra forma, você não veria isso. A cidade tem linhas de trem que correm pelo meio e no lado leste tem uma prisão e um gueto e áreas em que as casas foram demolidas, então parece um grande terreno baldio. É inacreditável. Você não acreditaria que é no meio de uma grande cidade americana.

Jorge Pontual — Parece como uma zona de guerra.
David Byrne — Tem um grande complexo hospitalar lá, mas parece que é isolado.

Jorge Pontual — É o Johns Hopkins.
David Byrne — É. Então, visitantes são levados a esse tipo de desenvolvimento perto do rio e não vêem esse outro lado.

Jorge Pontual — Teriam que ir de bicicleta.
David Byrne — Em uma bicicleta você anda e acaba no meio dessa zona de guerra e você vê aquele lado é o outro lado da moeda daquela cidade.

Jorge Pontual — Falando sobre zonas de guerra, estive em Detroit. É terrível este centro com as torres de vidro da GM e fora dali está tudo destruído. Completamente devastado. Uma zona de guerra. Mas o senhor pôde, em uma bicicleta, de ir além, e viu centros concêntricos. Torna-se um tipo de “sociologia de bicicleta” que você consegue ver coisas de maneira diferente. 
David Byrne — Sim, e em um lugar assim, você vê anéis concêntricos onde pode haver alguns prédios comerciais no meio ainda funcionando. Então, há um vazio. Mais além, tem um anel de pessoas tentando continuar a viver na cidade. E aí você tem as áreas mais nobres, afastadas, com as pessoas que fugiram da cidade.

Jorge Pontual — A vida nessas áreas nobres requer automóveis e mais gasolina. Então se tornando inviável. Está fadada a terminar. O futuro, então, são cidades compactas por serem mais eficientes energeticamente?
David Byrne — É difícil acreditar, mas um cidade compacta é mais verde que essas áreas nobres, com jardins e árvores. Árvores e jardins não tornam um lugar “verde”.

Jorge Pontual — Precisam de muita água.
David Byrne — Precisam de muita água e necessitam de carros para se locomoverem. Em muitos lugares, em muitas partes do mundo, o sonho é ter sua própria casa, ter um jardim, ter um carro para ir aonde quiser, quando quiser. Talvez, algumas dessas coisas não sejam práticas ou econômicas. Um jardim requer muita água. Há formas de locomoção mais econômica e menos devastadoras ecologicamente do que andar de carro o tempo todo. O mais importante é que quando você junta as pessoas um pouco mais, elas acabam gostando de estarem juntas. Somos animais sociais e se nos separamos muito começamos a enlouquecer.

Jorge Pontual — Cidades e bicicletas são o futuro?
David Byrne — Sim. Bicicletas são só uma parte pequena.Acho que fazem parte de um contexto muito maior.

Jorge Pontual — Qual contexto?
David Byrne — Acho que as pessoas estão repensando as cidades como um lugar para se viver. Por décadas, elas foram um lugar que… Se você vivesse em uma cidade, seu objetivo era sair de lá. Se você tivesse sucesso viveria o mais longe possível da cidade e poderia passar duas horas no trânsito, não sei a que horas você teria que acordar para ir ao trabalho, mas gastaria muito tempo no trânsito. Isso em Nova York. Provavelmente o mesmo no Brasil, em São Paulo. As pessoas estão repensando a ideia de que talvez seja possível ter uma vida na cidade que posse ser, no geral, mais econômica. Você pode fazer o que quiser, ver seus amigos, poder ser agradável, não precisa ser feia ou difícil, não precisa ser uma batalha. As cidades estão percebendo isso. Estão percebendo também que quando aproximam as pessoas, há um tipo de motor econômico criativo, uma economia criativa. Ideias, iniciativas e projetos acontecem quando as pessoas estão juntas. Isso não acontece da mesma forma quando as pessoas estão espalhadas. Criar um lugar onde as pessoas queiram estar juntas tem um sentido econômico para a cidade. Fortalece as comunidades e traz muita coisa boa.

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