Cooperação Internacional

A diferença entre Auxílio Direto e Carta Rogatória

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

13 de julho de 2011, 13h54

Spacca
Caricatura: Antenor Madruga - Colunista - Spacca

Questiona-se se há, no sistema jurídico brasileiro, a possibilidade de utilizar meios alternativos às cartas rogatórias previstas no artigo 105, I, i, da Constituição para fins de investigação criminal ou instrução processual penal em jurisdição estrangeira, de documentos cujo acesso é condicionado, no direito brasileiro, a ordem judicial.

O artigo 105, inciso I, alínea i, da Constituição, dispõe (grifos nossos):
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I — processar e julgar, originariamente:
i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;”

O texto constitucional, ao outorgar competência ao Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, as cartas rogatórias, qualifica esta competência com a expressão “concessão de exequatur”. Não diz a norma constitucional que ao STJ, em instância originária, compete processar e julgar as cartas rogatórias, mas sim processar e julgar “a concessão de exequatur às cartas rogatórias”.

O caráter limitador da qualificação empregada pela Constituição na competência atribuída ao STJ para processar e julgar cartas rogatórias é evidente: a esta corte cabe processar e julgar apenas concessão de exequatur às cartas rogatórias.

Duas leituras, relacionadas mas distintas, advêm da limitação da competência constitucional do STJ sobre as cartas rogatórias. Por um lado, ao processar e julgar as cartas rogatórias, o espaço de cognição do STJ está limitado ao juízo (concessão ou denegação) de exequatur. Parece não haver dúvida quanto à leitura de que o juízo de exequatur restringe o âmbito do julgamento das cartas rogatórias, impondo sistema de contenciosidade limitado, também conhecido como “juízo de delibação”, no qual o interessado não pode impugnar o mérito da diligência pretendida à luz do Direito brasileiro, salvo quando atingidas a soberania e a ordem pública. Neste sentido, é uníssona a jurisprudência do próprio STJ e, especialmente antes da Emenda Constitucional 45, também do Supremo Tribunal Federal, exemplificada nas referências seguintes:
“Questões de mérito não comportam apreciação em sede de carta rogatória, ficando o exame a cargo da Justiça rogante.”
(STJ, AgRg na CR 733/IT, Trecho da ementa. Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/12/2005, DJ 10/04/2006 p. 106)

“Em tema de comissões rogatórias passivas — tanto quanto em sede de homologação de sentenças estrangeiras —, o ordenamento normativo brasileiro instituiu o sistema de contenciosidade limitada, somente admitindo impugnação contrária à concessão do exequatur, quando fundada em pontos específicos, como a falta de autenticidade dos documentos, a inobservância de formalidades legais ou a ocorrência de desrespeito à ordem pública, aos bons costumes e à soberania nacional.

Torna-se inviável, portanto, no âmbito de cartas rogatórias passivas, pretender discutir, perante o Tribunal do foro (o Supremo Tribunal Federal, no caso), o fundo da controvérsia jurídica que originou, no juízo rogante, a instauração do pertinente processo, exceto se essa questão traduzir situação caracterizadora de ofensa à soberania nacional ou de desrespeito à ordem pública brasileira. Precedentes.”
(STF, AgRg na CR 7870/EUA, trecho da decisão monocrática do Min. CELSO DE MELLO (Presidente), decisão em 24/02/1999, DJ 04/03/1999 P. 5)

“Questões de mérito devem ser apresentadas à Justiça rogante.”
(STF, CR 9194 AgR, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 16/11/2000, DJ 07-12-2000 PP-00012 EMENT VOL-02015-02 PP-00288)

“O que pretende a agravante é que o Supremo Tribunal Federal aprecie o mérito da questão posta no Juízo rogante, o que não é possível. As razões aqui expendidas devem ser apresentadas no Juízo rogante. Aqui, é pedida, apenas, a citação da ora agravante.”
(STF, CR 9136 AgR-AgR, Trecho do voto do Min. Rel. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2000, DJ 15-12-2000 PP-00065 EMENT VOL-02016-01 PP-00165)

O juízo de exequatur que a Constituição atribui ao STJ impõe, portanto, simples delibação da carta rogatória estrangeira, restringindo o direito de o interessado impugnar, na jurisdição brasileira, o mérito da diligência rogada. Privilegia-se, no modelo de delibação, o princípio da confiança na jurisdição rogante. O juízo de exequatur, no modelo de delibação, reduz o contraditório e amplia a cooperação jurídica internacional.

O papel do juízo de delibação não é analisar mérito, pertinência, do pedido de acesso da autoridade estrangeira às informações pretendidas, salvo para a restrita verificação de violação à ordem pública e à soberania. Portanto, em se tratando, por exemplo, de produção de prova documental protegida por sigilo, não é o juízo de exequatur (STJ) que promove a revisão judicial exigida pela Constituição, mas sim a autoridade judicial estrangeira. O juízo de delibação visitará o mérito do pedido de compartilhamento de provas tão somente para, estando presentes os requisitos formais e não havendo violação à ordem pública e à soberania, autorizar a execução da ordem judicial estrangeira. É a ordem judicial estrangeira, delibada pelo STJ, que afasta o sigilo legal.

Foi com fundamento nesse limitado escopo do juízo de delibação, imprestável à revisão judicial ampla das razões que justificariam o acesso às informações protegidas, que o STJ, ao julgar o Agravo Regimental da Carta Rogatória 998[1], negou, corretamente, exequatur a pedido de acesso do Ministério Público italiano a dados bancários sob a jurisdição brasileira. Faltava, nesse caso, o necessário crivo judicial do mérito da pretensão à quebra de sigilo, inexistente na análise da magistratura parcial representada pelo Ministério Público e impossível de se obter no apertado juízo de delibação.

A Constituição, contudo, não impede ao Estado estrangeiro que pretenda ter acesso, aqui, a documentos protegidos por sigilo, optar por buscar a necessária ordem judicial diretamente na jurisdição brasileira, em lugar de rogar a execução de ordem emanada de seu próprio Judiciário.

Neste caso, a pretensão do Estado rogante — não se caracterizando em execução de ordem judicial sua, mas em obtenção de ordem judicial de mérito na jurisdição brasileira quanto à pertinência das provas pretendidas — perderia o benefício do juízo de delibação. A pretensão estrangeira, postas nesses termos, estaria sujeita a juízo de revisão de mérito, com contraditório amplo, não ao juízo de delibação, restrito ao limitado debate de ordem pública e soberania.

Note-se que o conceito de delibação, ao restringir o espaço de contraditório no julgamento do exequatur de cartas rogatórias, é construído principalmente no interesse da administração da justiça estrangeira, em favor da cooperação jurídica internacional e em detrimento do interesse do indivíduo alcançado pela medida, cuja defesa é restrita por esse modelo. O conceito do juízo de revisão, por outro lado, é o que mais atende aos interesses individuais contrários à pretensão do Estado rogante, pois amplia espaço de contraditório. Ao juízo de revisão é dado se voltar aos fatos e ao mérito da pretensão estrangeira, à luz de todo ordenamento jurídico do foro e não apenas sob a parte deste ordenamento que expressa a soberania e a ordem pública.

Admitindo-se que o juízo de exequatur corresponde a juízo de delibação, é forçoso se concluir que não cabe ao STJ, cuja competência originária para processar e julgar as cartas rogatórias é circunscrita ao juízo de exequatur, nos expressos termos do Artigo 105, I, i, da Constituição, fazer juízo de revisão (mérito) de pretensão do Estado estrangeiro.

Optando pelo juízo de revisão, o Estado estrangeiro deve pedir ao Estado brasileiro que, em nome da cooperação internacional, apresente sua pretensão de acesso a documentos protegidos por sigilo diretamente ao Poder Judiciário.

Não importa o rótulo que se aponha ao documento que formaliza a pretensão do Estado estrangeiro (“carta rogatória”, “pedido de cooperação”, “auxílio direto”, “cooperação direta” etc.), a competência do STJ para processar e julgar cartas que roguem nossa cooperação se define pela substância dessa pretensão. Se as cartas estrangeiras rogam o juízo de exequatur (delibação), o STJ é originariamente competente, por força do artigo 105, I, i, da Constituição. Se, por outro lado, o Estado estrangeiro roga o juízo de revisão, a competência originária é dos juízes federais, à luz do artigo 109, inciso I, da Constituição.

A mudança do rótulo, portanto, não altera substância. Assim como a denominação do pedido da autoridade estrangeira como “carta rogatória” não define automaticamente a competência do STJ, emprestar-lhe outro nome tampouco impõe a exclusão do juízo de exequatur.


[1] (AgRg na CR .998/IT, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/12/2006, DJ 30/04/2007 p. 258)

 

Autores

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    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internaiconal pela USP; especialista em Direito Emrpesarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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