JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Fisco pode voltar a abusar ao fiscalizar importações

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

4 de julho de 2011, 9h59

Spacca
Caricatura: Raul Haidar - Colunista - Spacca

Foram publicadas a Instrução Normativa 1.169 e a Portaria 3.014, assinadas pelo secretário da Receita Federal, relativas a irregularidades no comércio exterior, tudo referente a importações. A Portaria vigora a partir de 1º de agosto e a IN já vale.

Combater fraudes é o que todos desejamos como atividade indispensável à Justiça tributária, e a legislação em vigor já prevê mecanismos legais para isso. Assim, as novas normas não são necessárias, bastando aperfeiçoar as atuais, eliminando-se os equívocos e ilegalidades que a Justiça e a própria administração já reconheceram, e que possam geram abusos.

As imprecisões de redação das novas regras indicam que podem se repetir erros do passado recente, com equívocos ou abusos de agentes fiscais, em alguns casos com fortes indícios de crimes que podem ser atribuídos a tais servidores.

Outrossim, a criação de um sistema chamado de inteligência fazendária que também já existe chega a parecer ridículo, pois todos os servidores públicos, especialmente os fazendários, são inteligentes. Isso está provado nos concursos e na vida prática.

Não existe burrice fazendária, mas apenas alguma ignorância, outro tanto de autoritarismo e mais ainda de desprezo aos contribuintes e à ordem jurídica vigente. Não é por acaso que discussões entre fisco e contribuinte abarrotam o Judiciário. Tudo isso impede a existência da Justiça tributária.

Vejamos o que querem reinventar agora. A instrução, já no seu primeiro artigo, registra que basta uma suspeita de irregularidade para ter início o procedimento, ao lado de hipóteses como a interposição fraudulenta de terceiro e o subfaturamento.

Pretende-se que dúvidas sobre o preço, por exemplo, sejam resolvidas com base em valores apurados em publicações especializadas ou no mercado interno, considerando-se inclusive a margem de lucro usual.

Tais conceitos são vagos, imprecisos e subjetivos, abrindo margem para abusos ou corrupção, seja de quem for, inclusive de profissionais que trabalham no setor.

Num Estado Democrático de Direito, todas as suspeitas podem e devem ser investigadas. Mas aponta o texto da SRF que até coisas contra a moral e os bons costumes podem caracterizar suspeita de irregularidade. Eis aí subjetivismo ou saudade da Idade Média.

Também se fala na necessidade de histórico de operações, verificação de instalações físicas, etc. Há um monte de imprecisões nisso tudo.

Pode-se exigir que alguém tenha determinadas condições para importar, mas não chegar a absurdos e loucuras, como pedir tradição no ramo ou ver suspeita em nacionalidade. Teoria é bom na academia, entre mestres e doutores que lecionam, fazem palestras, publicam teses e participam de congressos.

Queremos apenas tentar demostrar a necessidade de rever certos conceitos e preconceitos, reduzindo riscos de abusos e perda de tempo, dinheiro e credibilidade. Se os servidores públicos correm com muita pressa na sua ânsia de arrecadação (que sem isso já bate recordes o tempo todo), podem acabar com a economia. Vampiros agem assim: sugam tanto o sangue da vítima que acabam por matá-la. Vamos a alguns fatos.

Incompatibilidade entre volume de operações e instalações
Empresa industrial da grande São Paulo foi considerada suspeita porque em seu relatório o fiscal afirmou que seu administrador era um chinês, dono de firma fantasma e mantinha fábrica fictícia.

Em Mandado de Segurança que recebeu liminar e teve sentença favorável, provou-se que o chinês era brasileiro naturalizado há mais 30 anos e a empresa existia há mais de 20. A fábrica não podia ser fictícia ainda que quisesse: funciona em prédios e com máquinas próprias, fornece para grandes multinacionais aqui estabelecidas desde a sua fundação e com mais de 200 funcionários diretos, nenhum deles fantasma.

A Justiça resolveu o problema em prazo razoável, após o qual outro fiscal tentou abrir novo procedimento com base nas mesmas suspeitas e com a informação de agora se apoiar em uma IN mais recente.

De novo o fisco teve que reconhecer seu erro, no caso por deixar tais questões na mão de neófitos brilhantemente aprovados em concurso recentemente, especializados em teorias e provas de múltipla escolha, informática, etc, que não tiveram tempo de ler a Constituição, as leis e a jurisprudência talvez por desinteresse ou desprezo mesmo.

Essa palhaçada toda ocorreu há cerca de cinco ou seis anos. Não é coisa da ditadura ou da burguesia, mas sim de funcionários arrogantes e prepotentes, que se baseiam em legislação feita de afogadilho, sem adequada discussão pública, sem exame do Congresso , onde uma parte expressiva compõe o PVP – Partido das Vaquinhas de Presépio.

Final dessa novelinha: só quem ganhou alguma coisa foi o advogado, já elogiado falsamente como advogado de sonegadores. Resultado prático: a família do chinês, que é brasileiro porque o desejou, está hoje industrializando o Uruguai, o que não é ruim para uruguaios. Os que perderam seus empregos podem receber ajuda do generoso povo brasileiro, que sempre aceita aumento de tributo sem receber o que merece. Os que inventaram o problema vão bem, obrigado. Quosque tandem?

Subfaturamento
Duas grandes empresas de São Paulo, uma de veículos e outra de objetos de luxo, foram acusadas de fraudar importações, a primeira há cerca de dez anos, e a segunda há menos de cinco. Em ambos os casos, os preços foram apurados de forma ridícula e fora da lei.

Carros importados diretamente do fabricante na Alemanha tiveram seus preços fixados com base em suposta pesquisa feita em revistas americanas com preço dos veículos nos Estados Unidos, cujo mercado exigia carros mais sofisticados, com acessórios que nossa legislação não exige ou porque eram sistematicamente furtados em Santos. Enfim, uma farsa. Nesse caso, a Delegacia de Julgamento de São Paulo deu razão ao contribuinte no julgamento de primeira instância. O importador encerrou as portas mesmo vencendo o caso. A fábrica alemã eliminou seu distribuidor e os empresários viraram empregados de outra multinacional. Talvez estejamos sendo novamente colonizados.

A grande loja de artigos de luxo, embora tenha cometido alguns erros que admitiu e pagou, não conseguiu arcar com a parte fantasiosa da autuação. Por esta, ela deveria importar o que vendia pelos preços das butiques de Milão ou Paris e apenas quando estavam na temporada. Ignoraram : a) artigos exportados geralmente não pagam impostos internos; b) compras do fabricante em grandes quantidades custam menos que nas butiques; c) há diferenças sazonais. Assim, revogaram: condições climáticas, a lei da oferta e da procura e os sistemas tributários de outros países (isenção para exportações).

Interposição fraudulenta
Essa é nova, de cerca de dois anos atrás. A empresa é uma importadora pequena, fundada em 1984, multada em 2008 em valor de dezenas de vezes seu patrimônio. O dono é um brasileiro de mais de 70 anos, formado pela POLI/USP, ex-diretor de estatal, sem qualquer mácula. Perfil, experiência profissional e acadêmica para ser ministro. Ficha limpíssima, imaculada desde os tempos do SNI.

A suposta fraude: importar componentes industriais a preços do mercado internacional, enfrentando oligopólios com uma estranha façanha: ser sério, poliglota, culto e conhecer empresários até na China que confiam nele, mesmo numa pequena empresa brasileira. Realmente isso é estranho, pois até hoje ele não está rico. Final desta novela: futura ação de indenização que o povo talvez pague um dia aos herdeiros da vítima. Quando e se esses atos vigorarem na prática, poderemos voltar ao assunto.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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