Poder regulamentar

Cresce debate sobre controle prévio de leis

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20 de janeiro de 2011, 7h46

A ideia de uma lei passar pelo crivo do Supremo Tribunal Federal, antes da sanção do presidente da República, vem sendo debatida há alguns anos no Brasil e tem ganhado cada vez mais defensores. Há quem sonhe em instituir no ordenamento jurídico brasileiro o chamado controle preventivo abstrato de constitucionalidade. Desde a década de 1990, o ministro Celso de Mello tem esse pensamento sobre o assunto.

Em artigo publicado na Revista dos Advogados, em 2004, ele defendeu a discussão da matéria, “tendo por objeto atos normativos de caráter infralegal, como portarias normativas, instruções gerais e regulamentos editados pela Administração Pública”. Na prática, significa dizer que sofreriam controle preventivo de constitucionalidade todos projetos de lei, projetos de decretos legislativos — responsáveis pela aprovação dos tratados internacionais — e de qualquer proposta de Emenda à Constituição Federal. A medida, escreveu Celso de Mello no artigo, permite que a alta corte judiciária, “em decisão revestida de força obrigatória geral, possa neutralizar desvios no exercício inadequado do poder regulamentar”.

O mesmo posicionamento havia sido manifestado pelo ministro antes de 2004, durante a Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil sobre Direitos Humanos, em 1997. Atualmente, a jurisprudência do Supremo vem rejeitando outro modelo, o de fiscalização preventiva mediante a ação direta. O entendimento se deu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 466, do Distrito Federal. Nela, o Partido Socialista Brasileiro tentou argüir a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que ampliava as hipóteses de pena de morte no Brasil.

O controle preventivo é tratado por Luís Roberto Barroso em seu livro O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro (Editora Saraiva, 2009). Como explica o constitucionalista, o modelo tem como intuito prevenir que um ato inconstitucional passe a vigorar. “O órgão de controle, nesse caso, não declara a nulidade da medida, mas propõe a eliminação de eventuais inconstitucionalidades”, escreve.

No Brasil, somente o Executivo e o Legislativo podem exercer essa prevenção. Um propondo veto a um projeto aprovado pela casa legislativo e o outro, atuando por meio das comissões de constituição e justiça, pode se manifestar no início do processo de elaboração da lei.

Segundo Barroso, há outra modalidade de controle empregado no Brasil, em sede judicial. “O Supremo Tribunal Federal”, conta, “tem conhecido de mandados de segurança, requeridos por parlamentares, contra o simples processamento de propostas de emenda à Constituição cujo conteúdo viole alguma das cláusulas pétreas do artigo 60, parágrafo 4º”. Ou seja, não são objeto de deliberação propostas de emenda que tentem abolir a forma federativa de Estado, o voto como é conhecido hoje, a tripartição dos poderes e os direitos e garantias individuais.

Ele afirma que, em mais de uma oportunidade, a Corte reconheceu “a possibilidade de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de propostas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao poder reformador do Congresso Nacional”.

A realidade muda quando se fala em dois países da Europa continental. A França tem seu Conselho Constitucional, onde as leis são analisadas antes de começarem a valer. Em Portugal, acontece o mesmo: a Corte Constitucional analisa uma lei antes que ela entre em vigor. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Rui Manuel Gens de Moura Ramos, presidente do Tribunal Constitucional de Portugal, contou que o texto da Constituição só pode ser emendado com uma revisão. Com isso, ela foi revista apenas sete vezes, desde 1976.

Por outro lado, qualquer cidadão português pode recorrer de uma decisão que ele julgue contrária à Constituição. “Quando o tribunal decide três vezes em casos concretos que a norma é inconstitucional, o Ministério Público pode pedir que o tribunal declare a inconstitucionalidade daquela lei para ela deixar de existir. Agora, sem ser em caso concreto, só o presidente da República, o Ministério Público e um grupo limitado de instituições é que podem questionar uma lei”, contou ele.

Ao comentar a entrevista de Moura Ramos, o ministro do STF José Antonio Dias Toffoli defendeu o uso do modelo de controle prévio no ordenamento jurídico do Brasil. Para o ministro, essa poderia ser uma boa solução para os problemas enfrentados pelos jurisdicionados. O ministro acredita que a medida pode ser empregada nas normas tributárias e nas leis sobre remuneração de servidor. Essa última, explica, seria bem vinda dada a abundância de ações nas quais os aposentados e funcionários de outras carreiras pedem equiparação.

"Estas duas espécies de leis, editadas em todos os entes da federação [União, estados, Distrito Federal e municípios], são as mais questionadas quanto à constitucionalidade. Evitaríamos inúmeras ações se o STF já pudesse definir sua validade", diz.

Esse modelo de constitucionalidade das leis também recebeu comentários favoráveis do ministro do STF, Gilmar Mendes. Durante a I Conferência Mundial de Cortes Constitucionais, o ministro citou alguns dos mecanismos de controle constitucional da corte, como o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.

De acordo com ele, o Mandado de Injunção recebeu um novo entendimento. A saída é usada sempre que alguém é prejudicado por omissão do Legislativo para garantir um direito. "Antes, a corte apenas pedia a regulamentação de uma norma da Constituição, quando os poderes competentes não o fizeram. Agora, ela fixa uma medida, provisoriamente, para a situação, até que a norma seja regulamentada”, disse Gilmar Mendes.

Gilmar Mendes, ao discorrer sobre a Corte Constitucional de Portugal em seu livro Controle Concentrado de Constitucionalidade (Editora Saraiva, 2009), adotou a visão de Jorge Miranda. O português escreveu: “A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização”.

A especialista em Direito Constitucional Renata Saraiva, do escritório Luís Roberto Barroso & Associados, explica que, no Brasil, a princípio, uma lei que vai contra a Constituição Federal produz efeitos enquanto não for tirada do ordenamento jurídico. “No modelo de controle jurisdicional de constitucionalidade adotado no Brasil, somente por meio do controle por via principal ou por ação direta (ADI, ADC e ADPF) pode o Supremo Tribunal Federal, analisando uma lei em abstrato, isto é, sem levar em consideração qualquer caso concreto em que ela seja aplicada, agir como legislador negativo e declarar a nulidade de uma lei, com efeito vinculante e eficácia erga omnes, ou seja, contra todos”, explica.

A advogada conta ainda que o Supremo vem profreindo decisões nas quais deixa de conferir efeitos retroativos à decisão que declarou inconstitucionalidade “em consequência da ponderação com outros valores e bens jurídicos que seriam por ela afetados, como a boa-fé, a moralidade, a irredutibilidade de vencimentos, a coisa julgada, a razoabilidade”. Segundo ela, é o artigo 27 da Lei 9.868, de 1999, que prevê essa possibilidade de modulação dos efeitos temporais.

“Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”, estabelece o dispositivo.

Sobre os processos judiciais baseados em uma lei mais tarde tida como contrária à Constituição Federal, Renata explica que “a declaração de inconstitucionalidade de uma lei não a retira magicamente do ordenamento, mas cria condições para a eliminação dos atos dela decorrentes que sejam suscetíveis de revisão ou impugnação. Para isso será necessária a propositura de uma Ação Rescisória”.

Levantamento feito pelo Anuário da Justiça 2010 revela que uma lei inconstitucional permanece em vigor em média por sete anos. A partir de sua publicação, ela leva cinco anos para ser questionada e mais cinco à espera de julgamento pelo Supremo. O Legislativo ganha a corrida quando o quesito é quem mais produz normas inconstitucionais. Em 2009, apenas na esfera federal, das nove normas julgadas, seis foram tidas como contrárias à lei maior do país.

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