Papel da Justiça

"Decisão sobre Anistia pacificou sociedade brasileira"

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9 de janeiro de 2011, 8h50

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Há nove meses na presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Cezar Peluso já imprimiu sua marca na instituição: o STF é hoje uma Corte mais discreta, menos ofensiva, mas ciosa de sua soberania, como se viu na decisão de manter preso o ex-terrorista Cesare Battisti, causa que o governo que o nomeou vê, estranhamente, quase como uma questão de vida ou morte.

Os quarenta anos de magistratura do atual chefe do Judiciário dão à sua gestão segurança e traços muito próprios de quem dedicou a vida à carreira. Presidencialista convicto, o ministro gosta de decidir sozinho. Nem mesmo a proposta que apresentou de antecipar o trânsito em julgado para o Recurso Extraordinário no STF e para o Recurso Especial no STJ — como forma de prestigiar a primeira e a segunda instâncias e reduzir o tempo de tramitação dos processos — foi discutida internamente.

No aspecto corporativo, o presidente do STF não esperou um dia sequer para conversar com a presidente da República, Dilma Roussef, sobre a crítica situação salarial vivida pelo Judiciário. Foi uma das primeiras audiências do novo governo. O ministro nada disse antes ou depois do encontro, mas ninguém duvida que ele escancarou a defasagem vivida pelo setor, que vive um movimento de evasão de quadros e talentos para a iniciativa privada, para o Legislativo e para o Executivo. A desatenção para essa realidade pode redundar em uma greve sem precedentes na Justiça.

No plano operacional, o ministro empenhou-se na conclusão do projeto de implantação do processo eletrônico, que já abrange todas as ações originárias do STF e dinamizou o atendimento nos plantões judiciários. Desde dezembro, a corte recebe pedidos eletrônicos aos sábados, domingos e feriados, que são distribuídos imediatamente pela secretaria aos ministros, como conta Peluso em entrevista à Consultor Jurídico. "Esteja onde estiver, até no Afeganistão, de lá o ministro consegue visualizar a petição e os documentos, e pode despachar", comemora.

A tecnologia também foi responsável por aumentar a quantidade de decisões sobre a repercussão geral das matérias, critério para a admissão de novos recursos na corte. Em cumprimento a metas estratégicas estabelecidas pelo presidente no início de sua gestão, o Plenário Virtual do tribunal já define a relevância, por mês, de pelo menos dez assuntos por mês.

O resultado é o inédito número de menos de 90 mil processos por julgar no acervo do Supremo. É a primeira vez em 11 anos que a corte atinge essa marca, uma diminuição de cerca de 10% na quantidade de ações em trâmite em relação a 2009. Ao anunciar esses números aos ministros em dezembro, Peluso não esqueceu do que motivou o milagre: o filtro da repercussão geral para o recebimento de recursos, implantado na gestão da ministra Ellen Gracie, e que teve a aplicação ampliada pelo ministro Gilmar Mendes. Desde 2007, a corte recebe 41% menos processos devido à barreira. Em 2010, foram aceitos apenas 34 mil. Três anos antes, foram 106 mil.

O ano do Supremo não foi agitado só na forma. No conteúdo, o ministro elenca entre as decisões que viu como mais importantes no ano passado, a declaração de constitucionalidade da Lei de Anistia, a Lei 6.683, de 1979. Para ele, ao reconhecer como anistiados tanto militantes contrários à ditadura militar quando agentes públicos que cometeram crimes a serviço do regime, a corte ajudou o país a virar a página. "Para que serviria hoje a apuração de responsabilidades se ela não pode ser usada para mais nada? Todas as ações estão prescritas, penais e civis", afirma.

A lista de julgamentos de impacto é extensa. De 2010, além do julgamento que autorizou a extradição do italiano Cesare Battisti, ex-revolucionário de esquerda condenado por quatro homicídios na Itália, Peluso destaca a decisão que liberou o humorismo nas campanhas eleitorais; a que, às vésperas das eleições, dispensou a apresentação do título de eleitor nas votações; a possibilidade de liberdade provisória para acusados de tráfico de drogas; e a não permissão de que a União interviesse na administração do Distrito Federal, depois de uma série de escândalos. A primeira punição, na área penal, de um político pelo Supremo, seguida logo depois de outras três, também foram marcos, na opinião do presidente.

Do CNJ, projetos como a instalação de serviços judiciários nas Unidades de Polícia Pacificadora nas comunidades cariocas são a menina dos olhos do presidente. "Essa foi a melhor medidados últimos 10 ou 15 anos. Vale por 50 gestões, por 500 ações afirmativas", afirma. É, segundo ele, o catalisador da pacificação social necessária em lugares que há anos só conheciam o Estado pelos noticiários da TV.

Fiel ao princípio de que juiz só fala nos autos, cultivado pela maioria dos magistrados de carreira, Peluso evita polêmicas pela imprensa, o que não quer dizer que foge delas. Foi ele, por exemplo, quem levantou o debate, no CNJ, sobre a possibilidade de tramitação direta de inquéritos entre o Ministério Público e a Polícia, sem o Judiciário como intermediário. Só a ideia já arrepia os advogados, que veem na possível mudança uma ameaça às garantias dos investigados, principalmente as relativas a sigilo.

Prático, ele também se inclina a favor da proposta de o fisco poder penhorar bens de devedores antes mesmo que as cobranças virem execuções fiscais na Justiça. O bloqueio administrativo prévio de garantias é um sonho antigo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, impulsionado nos últimos anos pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, ex-chefe da PGFN. A intenção é evitar que, durante o intervalo entre a cobrança administrativa e o ajuizamento das execuções, haja dilapidação de patrimônio pelos devedores.

A briga pelo reajuste dos ordenados do Judiciário promete alta temperatura. A proposta encaminhada ao Executivo foi de 56% de reajuste no salário dos ministros do Supremo, que repercutirá nos vencimentos de todos os magistrados. O valor ainda é discutido na proposta orçamentária para 2011.

No entanto, ele foi voto vencido na votação sobre a extensão de benefícios de procuradores da República a juízes. No CNJ, votou contra o entendimento de que, devido ao fato de os membros do Ministério Público poderem vender suas férias — o que está previsto na Lei Orgânica do MP —, os magistrados também podem, mesmo sem permissão expressa na Lei Orgânica da Magistratura. Para ele, ao permitir o benefício, o CNJ fez o que a Constituição jamais lhe permitiu: legislou.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual o balanço que o ministro faz do seu primeiro ano na Presidência do STF?
Cezar Peluso — Fizemos arranjo interno muito grande com a reestruturação da Secretária Judiciária, que é o coração do Supremo. Ela corresponde aos cartórios nos outros tribunais. O ministro Gilmar Mendes [presidente anterior do STF] já havia tomado essa iniciativa, e nós começamos a fazer isso em conjunto, dois ou três meses antes de terminar a gestão dele. Eu trouxe de São Paulo duas servidoras que conhecem profundamente o assunto. Modificamos substancialmente a Secretaria, preparando-a para o processo eletrônico, porque daqui a alguns anos já não vai haver papel.

ConJur — A corte está pronta para trabalhar com processo eletrônico?
Cezar Peluso — A Secretaria Judiciária já está mais ou menos bem estruturada para essa transição. Já temos alguns feitos eletrônicos. As ações de competência originária só são admitidas de forma eletrônica, não vamos mais recebemos em papel. Também instituímos recentemente o Plantão Judiciário, que o Supremo não tinha. Durante os sábados, domingos e feriados, entre 9h e 13h, só recebemos petições eletrônicas são de pedidos de Habeas Corpus, Mandados de Segurança e de casos urgentes, todos distribuídos eletronicamente na hora. O ministro é notificado imediatamente, esteja onde estiver, até no Afeganistão, de lá consegue visualizar a petição e os documentos, e pode despachar. O que não é urgente, também pode ser protocolado, mas o pedido só vai ser distribuído na segunda-feira ou no dia seguinte.

ConJur — Esse procedimento já está funcionando?
Cezar Peluso — Já está em vigor por força de portaria aprovada na última reunião administrativa [em dezembro]. A aprovação da lei sobre Agravo se deve também a empenho nosso, levamos essa questão muito a sério. Chegou a haver risco de interferência, um risco de que isso não fosse aprovada no Senado, nós não sabemos bem de onde vem a resistência. A questão envolvia a nova forma de Agravo [implantada pela Lei 12.322, sancionada em dezembro]. Agora não há mais Agravo de Instrumento contra decisões que não admitem Recurso Extraordinário. O Agravo se processa dentro dos mesmos autos do Recurso Extraordinário, e sobe junto. Isso significa que, quando o Recurso Extraordinário for interposto eletronicamente, o Agravo também vai ser processado eletronicamente. Insistimos na necessidade de aprovação, e o Senado aprovou. No dia da sanção, fomos até o Ministério da Justiça para participar do evento. O projeto foi do deputado Paes Landim (PTB-PI).

ConJur — A modernização dinamizou o trabalho?
Cezar Peluso — Foi o que aconteceu no caso de decisões que poderiam ser dadas monocraticamente em matéria de jurisprudência já pacificada no tribunal e reafirmada pelo Plenário. Em vez de o ministro decidir monocraticamente no papel, e essa decisão ficar sujeita a Agravo levado depois para o Plenário, agora ele pode decidir no Plenário Virtual. Todo mundo vota e acabou, não cabe mais Agravo. Veja a economia disso.

ConJur — O ministro participou ativamente de algumas reformas, inclusive legislativas. Quais merecem destaque?
Cezar Peluso — Nós regulamentamos, de modo um pouco mais específico, a repercussão geral. Também participei ativamente da discussão do Código de Processo Penal, no Senado. Todas as nossas emendas foram aprovadas, com exceção de uma, que tratava da regulamentação dos Embargos Infringentes [recurso em que a parte pode pedir novo julgamento no tribunal quando perde por maioria apertada em uma turma ou câmara]. Houve divergência sobre a possibilidade de permitir o recurso só para réu ou também para o Ministério Público. Mas não é coisa tão relevante quanto as demais propostas que foram aprovadas. Agora, vamos acompanhar a tramitação na Câmara. Vou acabar de ver todas as propostas, e vamos apresentar outras. Se der certo, se tivermos fôlego para fazer isso e espero que até fins de janeiro terminemos , teremos contribuído diretamente para a revisão inteira do Código de Processo Penal.

ConJur — Por que o Código precisava ser atualizado?
Cezar Peluso — O Código que está em vigor é de 1941, e foi inspirado no Código italiano, do governo fascista. Está absolutamente desatualizado em relação à Constituição atual, com normas que o Supremo já declarou não recebidas pela ordem constitucional. Tem uma visão muito autoritária no tratamento do processo penal. Já a nova versão é diferente, pois leva em conta as garantias constitucionais do réu, mas não despreza os mecanismos que o Ministério Público e a Polícia devem ter para atuar nos inquéritos e na Ação Penal.

ConJur — Quais mudanças foram mais importantes?
Cezar Peluso — Simplificamos os recursos e os atos processuais. Conseguimos manter a inovação dos chamados juízes de garantia, que fiscalizam os inquéritos. O juiz que supervisiona o inquérito não pode ser o mesmo juiz que vai processar a Ação Penal. Separou-se o juiz que vai cuidar do inquérito daquele que vai apreciar a denúncia e processar a Ação Penal, para não haver perda de isenção. O juiz que acompanha o inquérito acaba, de algum modo, formando uma convicção. Quando ele vai processar Ação Penal, já não tem a isenção que se gostaria que ele tivesse. Essa novidade no projeto do Código já funcionava, por exemplo, em São Paulo, com o Dipo [Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária]. Os juízes do Dipo não são juízes do processo. Não é norma de agrado geral. Quando se cogitou a mudança no Código, houve muita polêmica também sobre o nome desse juiz, se seria juiz de garantia ou juiz do inquérito, por exemplo. Mas o nome não é importante. O importante é que ficaram claros os limites da competência dele. 

ConJur — O novo Código prevê alguma mudança na tramitação dos inquéritos entre o Ministério Público e a Polícia, que muitos defendem que não tenha mais a intermediação do Judiciário?
Cezar Peluso — Isso ainda está sendo objeto de discussão. Sou favorável a uma simplificação desses trâmites. Perde-se muito tempo hoje. Fizemos um levantamento aqui no Supremo. Sabe quanto tempo leva um pedido, por exemplo, de prorrogação de prazo, que chega ao Supremo, vai à Procuradoria-Geral da República, volta, e depois vai para a Polícia? Mais ou menos seis meses, ou mais. Na medida que isso possa ser processado eletronicamente, o Judiciário não perderia nada caso a tramitação fosse direta, porque continuaria acompanhando tudo. E o que é papel do Judiciário, em relação a medidas que não podem ser tomadas pela Polícia sem autorização judicial, continuaria a ser exercido como está hoje. O delegado teria de requerer ao juiz, e o juiz teria de decidir, de qualquer maneira. Mas está havendo certa perplexidade em relação a isso, que eu atribuo mais a uma questão de hábito, de cultura, do que propriamente a uma objeção consistente. Não há o mínimo perigo de o Judiciário perder o controle daquilo que é de sua competência. Ainda assim, essa é uma das matérias que vai causar polêmica na Câmara dos Deputados.

ConJur — Qual a opinião do ministro em relação às mudanças no Código de Processo Civil, que também tramitam no Congresso?
Cezar Peluso — Há coisas muito boas para que os processos terminem mais rapidamente, e outras que precisam ser mais bem analisadas. O mesmo trabalho que fizemos em relação ao Código de Processo Penal, vamos fazer em relação ao projeto de reforma do Código de Processo Civil. Ainda não lidei com isso porque não tive tempo, mas quero interferir na discussão. A partir do começo do ano, quero contribuir com a discussão. Se conseguirmos ajudar nos dois Códigos, já será uma façanha.

ConJur — O Supremo teve um ano agitado no campo jurisdicional. Que questões resolvidas pela corte foram mais importantes?
Cezar Peluso — A constitucionalidade da Lei de Anistia foi a mais importante delas. Socialmente, foi uma contribuição relevante do Supremo para pacificação dos espíritos na sociedade brasileira. Para que serviria hoje a apuração judicial de responsabilidades, se já não pode ser usada para mais nada? Todas as ações estão prescritas, penais e civis. Para que rever, então, esse assunto na esfera judicial? Para efeitos históricos, é bom. Mas judicialmente não há interesse legítimo, seria atividade inútil. Do ponto de vista pragmático, a repercussão social foi muito boa, acalmou vozes discordantes. De outro modo, não se sabe bem até onde a discussão poderia chegar.

ConJur — Havia o risco de se começar uma "caça às bruxas"?
Cezar Peluso — Sim.

ConJur — O senador Pedro Simon (PMDB-RS) chegou a afirmar que o Supremo não punia políticos. A corte provou o contrário este ano?
Cezar Peluso — Logo depois que o senador disse isso, cerca de 15 dias depois, houve a primeira condenação [em maio, do deputado Zé Gerardo (PMDB-CE), por crime de responsabilidade]. Foram quatro políticos condenados este ano [os deputados Zé Gerardo (PMDB-CE), Cassio Taniguchi (DEM-PR), José Fuscaldi Cesílio (PTB-GO) — o Tatico —, e Natan Donadon (PMDB-RO)].

ConJur — O que falta para que a Lei da Ficha Limpa seja integralmente avaliada pelo Supremo?
Cezar Peluso — O que já foi julgado foi só uma alínea, entre várias outras que são objeto de polêmica, e vão chegar aqui e gerar discussão. O debate sobre a Lei da Ficha Limpa está em aberto. Mas coisa importante é que, ainda discutindo apenas a alínea sobre a renúncia, todos os ministros se manifestaram a favor do propósito da lei, que é bem intencionada, correspondeu a aspirações populares e, nesse sentido, é muito legítima, muito justa. Todos reconhecemos isso. A questão, porém, é a seguinte: é preciso ver se as boas intenções, quando se transformam em leis, estão de acordo com a Constituição. As pretensões populares só podem ser atendidas nos limites da ordem jurídica. As outras alíneas, inclusive essa sobre a renúncia, dependendo do próximo ministro que seja nomeado, podem ser revistas.

ConJur — Que outras questões foram marcos este ano?
Cezar Peluso — A decisão sobre liberdade de imprensa e liberação do humorismo na campanha eleitoral, a de não precisar apresentar título de eleitor nas votações, o julgamento sobre a manutenção da prisão do banqueiro Salvatore Cacciola, a possibilidade de liberdade provisória para acusados de crime de tráfico e a decisão de não intervenção da União no Distrito Federal, são exemplos de marcos. Essa última acalmou as coisas, pois tudo o que era preciso promover em relação à corrupção foi feito, e a decisão não atrapalhou em nada. Outra decisão importante do Plenário foi a de que, na condenação por crime de tráfico, é admissível a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Isso ajuda muito a esvaziar as cadeias e a não punir pequenos traficantes do mesmo modo que os grandes. Há mulheres surpreendidas levando drogas para o marido, que não podem receber a mesma pena de um traficante profissional. Às vezes, a pessoa é ré primária, e é melhor não colocá-la na cadeia, para que não saia pior do que antes.

ConJur — Além da repercussão geral e da súmula vinculante, há alguma outra forma de fazer com que as decisões do Supremo sejam aplicadas desde o início aos processos?
Cezar Peluso — Há uma tendência do Supremo em dar certa força vinculante a decisões de caráter geral. Penso que, a médio prazo, vamos chegar à edição de norma, por meio de alguma reforma ou da edição de lei, que obrigue que as decisões do Supremo sejam aplicadas a certas causas, com os devidos requisitos, com a mesma força vinculativa que têm hoje as decisões nas ações objetivas de constitucionalidade ou inconstitucionalidade.

ConJur — Existe essa possibilidade hoje?
Cezar Peluso — A corte tende a reconhecer isso por meio das Reclamações. Quando o tribunal fixa uma tese, e entra Reclamação a respeito, não é necessário que o caso seja historicamente ou factualmente igual. O que interessa é a tese. Se a tese fixada não foi respeitada, o Supremo tende a atender à Reclamação. A longo prazo, isso significa que as teses fixadas pelo Supremo são de aplicação obrigatória para o juiz de primeiro grau. Precisamos de norma desse tipo. Não é possível nem conveniente continuarmos com esse sistema em que, depois de longas discussões, o Supremo tenha que decidir duas, três, quatro, cinco vezes de  modo igual, e a situação continua sendo decidida diferentemente nas outras  instâncias. Isso cria tratamentos absolutamente injustos. Quem tem condições de levar um recurso ao Supremo vai ter a situação definida de uma maneira. Os que não conseguem, seja por deficiência econômica ou por deficiência da defesa, vai ter a mesma causa, decidida em outro sentido. Até a discutibilidade tem limites. Há um momento em que as decisões da Suprema Corte têm que prevalecer. Vamos caminhar para um sistema em que a vinculação seja mais abrangente.

ConJur — Mesmo súmulas vinculantes podem ser interpretadas.
Cezar Peluso — Depende do teor da súmula. Há certas súmulas que suportam maior de interpretação, outras têm margens mais restritas. Depende, portanto, do caso objeto da súmula. Isso não é defeito da súmula. No caso da necessidade de algemas, por exemplo, o tribunal não poderia dizer: "olha, algemem-se os suspeitos nos casos "a", "b", "c", "d" e "n". Podem acontecer várias situações. A súmula fica um princípio, e a autoridade policial e o juiz vão examinar cada caso à luz desse princípio.

ConJur — Para negar a existência de repercussão geral de um recurso, requisito para que as causas cheguem ao Supremo, os ministros têm quase o mesmo trabalho que teriam para julgar o caso, já que precisam fundamentar essas decisões. Já a Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, não precisa justificar ao considerar que determinado recurso não tem a relevância necessária para ir a julgamento. Esse é um bom sistema?
Cezar Peluso — Sim. Trouxemos aqui um professor da Universidade de Columbia há mais ou menos um mês [Bert Huang,em novembro], para participar de evento que fizemos em parceria com o Ministério da Justiça, para debater a repercussão geral. Ele elogiou o procedimento da corte norte-americana, dizendo que, na medida que o tribunal acerta, não interessa por que ele acertou. Se manda subir um caso que ele acha importante, não importa por que ele mandou subir. Se acha que o caso não é importante e, portanto, não tem que ser conhecido, e se a sociedade também acha a mesma coisa, não importa porque achou. Mas isso não seria aplicável no Brasil hoje, pois o mecanismo, tal como está na Constituição, exige justificativa, motivação.

ConJur — O Judiciário pode determinar ao Executivo que tome determinadas medidas em relação a políticas públicas?
Cezar Peluso — É difícil falar de um modo geral, depende do caso. A situação e o tipo da ação vão dizer até onde o Supremo pode ir sem se transformar em legislador positivo. Varia, dependendo de ser Ação Direta de Inconstitucionalidade, Mandado de Injunção ou Mandado de Segurança. Dependendo da circunstância, o juiz pode estar avançando sobre uma função tipicamente administrativa. É o Executivo que sabe, de acordo com o seu orçamento, de acordo com as prioridades da população, se, por exemplo, deve ou não construir, por exemplo, uma creche, e de que forma. Isso não é função do Judiciário. Mas, dependendo da particularidade do caso, o tribunal pode tomar decisão assemelhada.

ConJur — O uso, pelo fisco, da penhora administrativa de bens sem autorização do Judiciário nos casos de execução fiscal, a princípio, fere garantias constitucionas?
Cezar Peluso — Não. Pode ser um caminho normativo razoável, mas ainda se está em fase de pesquisas e de estudos sobre isso. A medida pode ser adotada desde que não comprometa a garantia de acesso ao Judiciário. Quanto menos a sociedade tiver necessidade de recorrer à Justiça, porque disponha de outros canais de soluções, melhor é para todo o mundo, para a sociedade e para o Judiciário.

ConJur — Diante das dificuldades que a penhora online tem criado, isso não seria temerário?
Cezar Peluso — Penhora online é outro problema, que merece disciplina mais acurada. Pode ser muito benéfica de certo ponto de vista, mas é maléfica de outro. A penhora online necessita de revisão legislativa. Há casos de penhora de contas pertencentes a pessoas que já não têm nenhuma responsabilidade por dívida que se executa. Uma pessoa que teve cotas do capital de uma sociedade 20 anos atrás, mas já transferidas a cinco ou seis cessionários durante muitos anos, não pode ser responsabilizada, sem mais, por dívida de empresa que agora não tem patrimônio para satisfazer. A pessoa vira alvo só porque tem bens. Não se discute, primeiro, se tem responsabilidade ou não, se as cessões de cotas foram corretas ou não, ou se realizou o capital social ou não. Sei de casos como esses. Isso contraria vários princípios jurídicos.

ConJur — Se renunciar ao mandato, o parlamentar que responde a processo no Supremo por ter foro privilegiado, deve ser julgado na primeira instância?
Cezar Peluso — Essa foi outra das decisões mais importantes da corte. Quando julgamos isso [a remessa ao primeiro grau foi pedida pela defesa do ex-deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO), acusado de peculato e formação de quadrilha, e recusada pelo STF em outubro], eu e mais dois ministros ficamos isolados. E eu adverti o tribunal: "se não tomarmos outra medida, vamos transformar-nos em preparadores de processos para juízes de primeiro grau". O tribunal depois resolveu que a renúncia não pode deslocar o processo. Essa foi decisão que me surpreendeu, fiquei satisfatoriamente surpreso com a reação do tribunal. Até o processo voltar e começar outra vez, ocorreria prescrição na certa.

ConJur — O CNJ pode atuar como poder correcional se as corregedorias dos tribunais não fizerem esse papel direito?
Cezar Peluso — Essa é questão que o Supremo ainda vai decidir. Eu, particularmente, acho que as Corregedorias têm que ser prestigiadas e exigidas, sob pena de ficarem inutilizadas e sobrecarregarem o Conselho. Quando se sustenta que a Corregedoria não precisa agir, porque o Conselho pode agir imediatamente, as Corregedorias vão atrofiar-se e não funcionar, o que gera consequências graves. O CNJ deve ter o poder de atuar diretamente em várias hipóteses. Por exemplo, quando a Corregedoria local toma conhecimento e fica omissa, não faz nada. Ou então quando, embora tome conhecimento das faltas, aja facciosamente ou de algum modo deixe de apurar como deve. Também nos casos em que houver suspeita grave de que a Corregedoria ou os órgãos locais não sejam isentos para julgar, ou ainda quando a própria Corregedoria local possa estar envolvida nas acusações. Aí o CNJ tem que avocar o caso, e atuar em primeira mão. Mas o princípio deve ser o de obrigar as Corregedorias locais a exercer o seu papel legal de apurar as falhas e punir. Temos que obrigar os magistrados que são titulares de corregedoria, de poderes correcionais, a cumprir o seu dever. E é função do CNJ, estimular o cumprimento dos deveres dos magistrados, sob pena de os próprios corregedores serem investigados e punidos em face de suas responsabilidades legais. Essa é a grande pedagogia do princípio que sustento.

ConJur — Para 2010, as metas do CNJ foram enxugadas, e mesmo assim não foram atingidas integralmente. Qual é sua avaliação?
Cezar Peluso — Os números não são relevantes em sentido absoluto. Não é porque se chegou a 60%, 50% ou 40% das metas que se pode dizer que o cumprimento foi ótimo ou ruim. O importante é o esforço que os tribunais fizeram, e de fato fizeram, para cumprir essas metas. Esse esforço significa mobilizar energias que estavam dispersas, mal aproveitadas, sem entusiasmo. As metas funcionam como um estímulo para a ação, e o importante é a ação. Não dá para fazer tudo. Algumas metas eram sabidamente inexequíveis. Uma delas, por exemplo, era que se gastasse menos, ou seja, a restrição do consumo de insumos como água, luz e telefone. Mas, na medida que o tribunal tinha que se empenhar para analisar diversos processos, tinha de aumentar esse mesmo consumo. São necessárias sessões extraordinárias, maior gasto com pessoal, com papel. O esforço para tentar compatibilizar as duas metas mostra bem que, mais importante do que os números, foram as ações que os tribunais empreenderam. Como se chegou à conclusão de que ter muitas metas dispersa forças, os juízes preferiram concentrar-se em menos metas.

ConJur — Ao ter como objetivo o efeito pedagógico de suas decisões, o CNJ tem aplicado sanções disciplinares com base em indícios de irregularidade, sem que haja provas concretas. A que isso se deve?
Cezar Peluso — Esse é o caminho do poder disciplinar em geral, ou seja, separar o que é crime e o que é infração administrativa e disciplinar. O fato pode até não ser crime, mas pode ser grave infração disciplinar. Isso é o normal, sempre foi assim. Não há nada de novo.

ConJur — O juiz precisa ter um comportamento ético acima do dos demais cidadãos?
Cezar Peluso — Isso é o mínimo.

ConJur — O CNJ tem competência para investigar associações de juízes, como no caso das acusações de empréstimos sem autorização feitos pela Ajufer em nome dos seus associados?
Cezar Peluso — Associações de juízes são sociedades civis, mas isso não significa que, dentro de uma associação, alguns juízes possam praticar atos que, do ponto de vista funcional, sejam considerados faltas disciplinares. O juiz pode ser membro da associação e, como tal, praticar ato que, se tivesse sido cometido fora da entidade, seria infração disciplinar do mesmo modo. A associação em si é irrelevante. Na vida em geral, social, o juiz não pode ter comportamento que constitua falta disciplinar.

ConJur — Quando o CNJ decidiu que os juízes devem ter benefícios semelhantes ao do Ministério Público, como venda de férias, o órgão legislou, já que a lei prevê as prerrogativas para os promotores, mas não para os magistrados?
Cezar Peluso — Eu fiquei vencido nessa decisão. Acho que o CNJ legislou sim. Esse tipo de situação já levou à edição de uma súmula do Supremo, a 339, que diz não ser lícito ao Judiciário, sob o pretexto da isonomia, aumentar vencimentos.

ConJur — Algumas punições disciplinares aplicadas pelo CNJ foram parar no Supremo, que derrubou as punições em determinados casos. Que medidas do CNJ foram mais importantes?
Cezar Peluso — As ações afirmativas, os mutirões carcerários, os trabalhos de conciliação. Isso é mais relevante do que as questões disciplinares, que são pontuais na magistratura. Em 2010, tivemos 41 casos de punições disciplinares e 19 casos de aposentadoria. Ao todo, 60 casos. A magistratura reúne 16 mil juízes. E 60 casos em um universo de 16 mil representa menos de 1%. Dessas 41 punições, algumas, aliás, foram levíssimas. O CNJ funciona também como um formador de cultura, como catalisador. Ele não começa o processo, mas o acelera. É catalisador de transformações positivas na magistratura.

ConJur — E para o jurisdicionado?
Cezar Peluso — O CNJ está fazendo esforço no sentido de levar o Poder Judiciário às comunidades mais carentes. É a coisa mais importante que aconteceu no Judiciário nos últimos 20 anos. É a Justiça ocupando o espaço na ação do Estado, porque é um dos partícipes da ação estatal. Se as UPP’s no Rio de Janeiro, com a intervenção do Judiciário e dos outros órgãos que devem compor o sistema de Justiça, funcionarem, vão transformar-se em modelo de atuação do Estado em todos esses setores, o que representará uma transformação qualitativa extraordinária no país. Essa intervenção, para mim, vale por 50 gestões, por 500 ações afirmativas.

ConJur — Por quê?
Cezar Peluso — O Judiciário vai dar mais do que estabilidade nesses locais, vai trazer confiança aos cidadãos, o que é um dos fatores determinantes de segurança, de tranquilidade, de certeza e, portanto, de Justiça e pacificação. Parece uma coisa piegas, mas é uma verdade. Conhecido profeta do Antigo Testamento, Isaías, notou o seguinte: "a paz é fruto da justiça". Isso foi, aliás, transformado no lema do papa Pio XII, Opus Iustitiae Pax. Não é possível haver paz onde não haja justiça. Onde há justiça, há condição de haver paz. Não basta que os outros agentes atuem bem. É preciso que o povo tenha consciência de que eles também são objetos de atos de justiça. E aí é grande a probabilidade é de a sociedade ou a comunidade pacificar-se.

ConJur — Esse é o resultado de se levar varas judiciais para dentro das comunidades carentes?
Cezar Peluso — E tudo que acompanha o sistema Judiciário, que não é só o juiz. É também o cartório, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o tabelionato de notas, o registro civil, etc. Essa foi a melhor medidados últimos 10 ou 15 anos, e tenho a impressão de que vai dar certo.

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