Direitos fundamentais

Dispositivos processuais oportunizam prisão antecipada

Autor

  • Eduardo Viana Portela Neves

    é advogado criminalista mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP) professor de pós-graduação secretário adjunto da OAB-BA (Subseção Vitória da Conquista-BA) e professor da Faculdade de Direito de Guanambi.

8 de janeiro de 2011, 6h12

A prisão antes do trânsito em julgado vive em aparente conflito com o princípio da presunção de inocência (também conhecido como presunção de não culpabilidade). No Brasil, a presunção de inocência tem assento constitucional no artigo 5, LVII. Além desta previsão, o Pacto de São José da Costa Rica, do mesmo modo, não deixou a descoberto a presunção de inocência (artigo 8º, nº 2). No entanto, conforme ressaltado, há um aparente conflito entre a dicotomia liberdade versus prisão de modo que, ressalvadas excepcionalíssimas exceções, não há convivência pacífica na privação de liberdade antes do trânsito da sentença.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal (1) . Desta posição pode-se antever que a prisão cautelar, como próprio nome está a indicar, é exceção e não regra. Trata-se, conforme salienta Ferrajoli, de um princípio geral de civilidade em favor dos inocentes, ainda que o preço a pagar seja a impunidade de algum culpado, vale dizer, em um país Democrático de Direito, a proteção do inocente é mais importante que a condenação de um culpado (2). Na mesma linha adverte Lopes Junior que o princípio é “reitor do processo penal e democrático, podendo-se perfeitamente avaliar o grau de civilidade do processo a partir do seu nível de eficácia.” (3)

Porém, esta regra aparentemente clara e inquestionável não encontra boa repercussão na ordem prática. Nossa Constituição Federal é clara em determinar que a liberdade do acusado é a regra, haja vista que em seu artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais está consignado este “dever de tratamento”, conforme enunciam os dispositivos (LXV, LXVI, LXXVIII). Mas, alheio a esta disposição constitucional, não são poucos os casos em que a liberdade fica em último lugar, quando muito em segundo plano. Isto decorre, em boa medida, em razão de uma interpretação inversa da regra acima enunciada. Em nosso sistema a liberdade é exceção, não por outra razão o advérbio utilizado para qualificá-la é “provisória”, quando na verdade o que deve ser “provisório” é a restrição da liberdade e não sua concessão.

Em que pese estas afirmações, seria intuitivo que em um Estado que se proclama Democrático de Direito e tem como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, a prisão antes de trânsito em julgado deveria ser excepcionalíssima e, além disso, revestir-se de provisioriedade, ou seja, a prisão cautelar deve ter curta duração, não podendo significar execução antecipada da pena; aliás, a indeterminação da duração da prisão é um dos maiores problemas do sistema cautelar brasileiro (4).

Embora a legislação constitucional tenha silenciado sobre o limite temporal, a reforma encetada pela emenda constitucional 45, mesmo que timidamente, sinalizou para a necessidade de fixação de critérios objetivos que orientem a duração do processo e, via de consequência, a razoável duração da custódia cautelar. A inovação constitucional, por certo, harmoniza-se com os demais valores entalhados na Carta Constitucional. Assim sendo, a interpretação deve ser conglobante e zelar pela unicidade do ordenamento jurídico, de modo que a Carta Constitucional possa irradiar seus efeitos sobre a legislação infraconstitucional.

Seguindo a postura narrada, o Supremo Tribunal Federal, recentemente, por 5 votos a 4, fazendo (re)leitura do inciso LVII, artigo 5º, da Constituição Federal, consagrou ao réu, via de regra, o direito de recorrer em liberdade. A partir daí, os julgados daquela Corte sinalizam positivamente para a concretização deste direito (5).

Portanto, deve ser feita, obrigatoriamente, uma releitura dos dispositivos processuais penais que oportunizam e justificam a prisão antecipada. Este exercício de compatibilização implica, necessariamente, que situações dissonantes da norma constitucional devam ser imediatamente corrigidas pelos Tribunais, pois a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firma-se no sentido de reconhecer que a prisão decorrente de sentença condenatória meramente recorrível não transgride o princípio constitucional da inocência, desde que a privação da liberdade do sentenciado encontre fundamento em situação evidenciadora da real necessidade de sua adoção.

Nesta linha é de se destacar, inclusive, que em situações excepcionais é absolutamente legítima a fuga do acusado para evitar prisão preventiva que considere ilegal, não havendo qualquer prejuízo para a posterior concessão da liberdade. Parece induvidoso que condicionar a concessão de liberdade à anterior segregação foge destoa das regras naturais inerentes à condição humana, bem assim à própria Constituição Federal (6).

O verdadeiro contraste com o sistema de liberdades reside, portanto, no modelo de prisão cautelar que inspirou nosso código de processo penal à luz do sistema de liberdades que consagrou a Constituição Federal.

Já ficou bastante visível que o ponto nevrálgico da prisão processual é a instrumentalidade, é dizer, ela se presta a garantir a aplicação da penalidade em futura sentença condenatória. Assim sendo, somente pode ser decretada quando houver extrema necessidade para a instrução processual. Quando da decretação da prisão preventiva, imperioso que o magistrado norteei-se pelo que determina o artigo 312 c/c artigo 310, parágrafo único, ambos da lei processual penal. Tais dispositivos legais contêm valores hermenêuticos que devem irradiar por todo o sistema processual penal. É dizer, em não ocorrendo um juízo positivo de “tipicidade processual”, a prisão se revela ilegal e merece ser imediatamente restabelecido o status de liberdade.

Ancorado nas lições de Goldshimidt, Lopes Jr. adverte para o perigoso paralelismo entre o processo penal e o processo civil. Isto significa que não é possível, em qualquer hipótese, transferir, decalcar os conceitos utilizados no processo civil para processo penal. O processo penal tem categorias jurídicas particulares adequadas às suas finalidades, devendo, portanto, serem respeitadas (7).

Desta afirmação decorre a lógica conclusão de que os critérios evidenciadores de cautelaridade do processo penal, que tem como consequência a possibilidade de restrição liberdade — devem ser, necessariamente, mais rigorosos e “garantistas” que aqueloutros exigidos pelo processo civil. Ao contrário do quanto podem afirmar alguns, não se trata apenas de um reducionismo etimológico ou maniqueísta, mas de uma essencial distinção ontológica. Estamos diante de um contraste de direitos: de um lado a liberdade individual e do outro lado o poder punitivo do Estado.

Naturalmente, os ditames constitucionais que consagram a liberdade e a presunção de inocência, por tratarem de um direito fundamental, devem ter uma interpretação extensiva. Aliás, esta fundamentalidade, para usar Alexy, aponta para uma necessidade de especial de proteção dos direitos fundamentais sob dois vieses: num sentido formal e, principalmente, em um sentido material. A fundamentalização material indica, necessariamente, que se deve acatar interpretações de concretização da norma consagradora de direito fundamental. Com bem escreve Canotilho (8), a primeira função dos direitos fundamentais é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado. Sendo assim, parece-me absolutamente crível que a privação da liberdade, e somente ela, necessite de forte justificação do Estado.

Nesta linha e vinculando-me à doutrina neoconstitucionalista, impende destacar que a Constituição não pode, nem deve, ser encarada apenas e tão somente como limite formal ao poder do Estado, mas, acima de tudo, buscar uma interpretação que ventile a expectativa de concretização dos direitos fundamentais, desse modo a ampliação da rigidez no sistema de decretação das prisões cautelares nada mais é que a concretização do direito fundamental à liberdade e à presunção de inocência.

Notas Convertidas:

1. HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 5-2-09, Plenário, Informativo 534. No mesmo sentido: HC 91.676, HC 92.578, HC 92.691 e HC 92.933, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 12-2-09, Plenário, Informativo 535; RHC 93.172, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 12-2-09, Plenário, Informativo 535; HC 94.778, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 10-2-09, 1a Turma, DJE de 13-3-09; HC 94.408, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-2-09, 2a Turma, DJE de 27-3-09.

2. “Este principio fundamental de civilidad es el fruto de una opción garantista a favor de la tutela de la inmunidad de los inocentes, incluso al precio de la impunidad de algún culpable” FERRAJOLI, Luigi. Derecho e razón. Teoría del garantismo penal. Madrid: Editoral Trotta, 1995, p. 549 (sem destaque no original).

3. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, vol. II, p. 47 e ss (sem destaque no original).

4. Ibidem, p. 55 e ss

5. HC n. 99891/SP. Rel. Min. CELSO DE MELLO; j. 5/09/2009; Órgão Julgador: 2T.

6. HC n. 101.981/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI. No mesmo sentido: RHC 84.851/BA, Rel Min. Marco Aurélio; HC 85.900/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 80.719/SP, Rel. Min. Celso de Mello; HC 87.838/RR, Rel. Min. Cezar Peluso; 87.425/PE, Rel. Min. Eros Grau.

7. GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona, Bosch, 1935, passim.

8. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, 407.

Autores

  • Brave

    é advogado criminalista, secretário adjunto da OAB-BA, professor de pós-graduação, membro da Association Internationale de Droit Pénal e mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). http://profeduardoviana.wordpress.com

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!