Políticas públicas

Judicialização das políticas públicas no Rio de Janeiro

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7 de janeiro de 2011, 16h49

A inclusão dos direitos fundamentais e a ampliação dos direitos sociais tornaram mais próxima a relação entre os âmbitos decisórios do Direito Administrativo e do Direito Constitucionalizado, submetendo políticas decisórias antes privativas do Executivo, e eventualmente do Legislativo, ao efetivo controle de legalidade por parte do Judiciário.

Com efeito, a responsabilidade dos magistrados diante da realidade social e política tornou-se maior, menos trivial, passando a prática judiciária a envolver uma atividade de interpretação dos direitos, dentro da perspectiva de um centro de órbita de todo sistema jurídico em torno do eixo central da Constituição Federal. O modo como os juízes tomam a interpretação deste papel, e, principalmente, como pautam suas atuações, tem suscitado inúmeras controvérsias.

Há uma nova formatação normativa de um projeto de democracia, qual pelo mandado constitucional implica no modelo de interpretação da construção de um Estado em que os cidadãos têm a garantia, pétrea pelo tempo de existência da atual Constituição Federal, de poderem cobrar, e efetivamente exercem este direito de acionar o Poder Judiciário na tutela de seus direitos fundamentais.

O objetivo deste artigo consiste em apresentar o debate acerca do processo de judicialização das políticas públicas no estado do Rio de Janeiro, destacando as novas atribuições do Poder Judiciário, num contexto de avanço das políticas neoliberais e de degradação dos sistemas de proteção social, sem olvidar a questão dos frágeis limites entre ativismo judicial e interpretação legítima da norma constitucional.

Os Direitos Humanos Contemporâneos deixaram de ser objeto de estudos jurisfilosóficos, no âmbito dos direitos naturais, e foram incorporados, positivados, ao jus cogens do Direito Público Internacional. No Brasil, particularmente, com a Constituição de 1988, foram elevados, em sua maioria mais significativa, à condição de cláusulas pétreas, protegidos inclusive de revisão por poder constituinte renovador, perenizados enquanto durar a atual ordem constitucional.

No entanto, sem aprofundar além do necessário na questão da diferença entre texto da lei e norma, tomamos como pressuposto que o texto legal só se torna norma quando trazido ao mundo concreto, num determinado contexto histórico, pelo agente responsável por sua aplicação. Seja a norma administrativa, seja a norma jurídica. Por seu próprio contexto histórico, a consolidação dos Direitos Humanos positivados após o final da segunda grande guerra, tomando como marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos, datando de 1948, impediu a realização da norma no âmbito de uma metafísica conveniente.

Não há divinização intelectual, mistificação, quase deificação da norma jurídica como ente a ser desvelado em suas manifestações apenas por um grupo de iniciados, previamente autorizados a fazê-lo. Portanto, rompe-se o círculo fora do qual a interpretação da norma seria "porte ilegal da palavra sobre questões jurídicas", aforismo de Lênio Streck.

Os Direitos Humanos, como todo fenômeno jurídico moderno, quando se pretende afastar uma concepção metafísica estagnante, são um conjunto de mandados linguísticos. Sua origem vêm a ser os consensos formados no jus cogens do Direito Internacional Público. E a implementação dos comandos, a execução normativa, seja no âmbito administrativo quanto na esfera judicial dos dispositivos legais, requerem abertura intelectual por parte dos intérpretes.

Uma eficiente maneira de tornar absolutamente desprovidos de eficácia concreta os textos legais dos tratados e da Constituição é trazê-los a um exercício de interpretação arcaica, uma entificação metafísica dos textos legais, e então facultar ao executante, de modo desprovido de responsabilidades, o comando jurídico de decidir sobre como e em que extensão irá aplicar as regras positivadas. Em termos concretos, podemos suscitar que, no Brasil, até 3 de outubro de 2008, antes da guinada interpretativa do controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, os textos legais sobre Direitos Humanos eram tratados num status de "lei ordinária", sujeitos a critérios interpretativos e de eficácia tradicionais, submetidos a princípios como a "lei geral não derroga lei especial" e a "lei posterior derroga lei anterior".

Dessa forma, rechaçamos o que Lênio Streck identificou no quase delito como sendo o "uso ilegal da palavra jurídica". Foi preciso que o Supremo Tribunal Federal, em seu papel de Corte Constitucional, não apenas decidisse por um novo status dentro do direito interno aos Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos, como foi necessário que a mesma Corte Suprema editasse súmula vinculante, sobre questão pontual da prisão civil do depositário infiel, a Súmula Vinculante 25. Isto em clara indicação de episódios de resistência de tribunais a quo quanto a aceitar a normatividade do Direito Público Internacional.

Antes de começarmos a tratar de casos exemplificativos concretos, cabe trazer à discussão um aspecto fundamental. Tanto a Constituição Federal do Brasil, quanto o conjunto de Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos ratificados e incorporados ao ordenamento jurídico interno, são por sua própria natureza conjuntos sintagmáticos. Logo, não permitem a extração casuística de apenas algumas de suas regras, conforme a conveniência intelectual de eventual facilidade para dar uma solução aparentemente lógica a determinado caso isolado, ao custo de uma fragmentação da estrutura da Constituição.

Pelo contrário, o exercício intelectual exigido pelo atual texto constitucional para a consecução de sua normatização dentro da realidade cotidiana, para sua realização por parte dos tribunais, bem como de órgãos administrativos, requer um refinado exercício intelectual de ponderações, de formação de consensos sobre aspectos colidentes deste conjunto de normas, onde não se cogita, ao menos dentro da honestidade intelectual e da boa-fé exigida diante da Constituição e do jus cogens do Direito Internacional Público, a criação de artificiais reservas legais infraconstitucionais.

Os Direitos Humanos em si são um conjunto sintagmático, onde cada uma das suas normas é a única reserva legal admitida para limitar, eventualmente, a aplicação das demais outras. E a sua aplicabilidade traz também outro forte componente sintagmático, quando o foco dos Direitos Humanos é o cidadão individual, cada jurisdicionado individualmente, afastando a possibilidade de apartamento da jurisdição por exclusões hoje arcaicas, ao gênero não pertencer o indivíduo a determinado grupo.

O jus postulandi é facultado a todo e qualquer cidadão que saiba escrever, ou que possa ter auxílio de quem o saiba, e esteja apto a remeter uma reclamação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos quando eventualmente apartado da realização de seus direitos fundamentais por parte das autoridades internas. Quebra-se com a discriminação no "uso indevido da palavra em assuntos jurídicos", instrumento antes eficiente, em validade normativa, para afastar do cômputo oficial da realidade os mais desfavorecidos. A realização de direitos fundamentais, como direito à educação, exsurge como fator novo.

Os tribunais internos não são os únicos senhores do direito, salvo o preço a ser pago do ilícito internacional. A autonomia absoluta dos tribunais poderá, muito em breve, num possível crescendo, ameaçar a respeitabilidade do Brasil frente à comunidade internacional. Os tribunais poderão em breve sofrer pressões por abertura intelectual, e honestidade jurídica até, frente à dimensão real, não mítica, e sim autoaplicável a todos os cidadãos, dos textos legais dos Tratados Internacionais versando sobre Direitos Humanos. E tendo como eixo central da jurisdição o cidadão, e não o aparato burocrático estatal.

Se por um lado estas mudanças podem reforçar a democracia, por outro, elas ocorrem num processo de esvaziamento das ideologias de esquerda e enfraquecimento das organizações coletivas, como partidos e sindicatos. A medida em que o Poder Judiciário se abre como alternativa de proteção aos grupos e indivíduos, e até aparentemente com resultados mais rápidos, sem ponderar o mérito das conquistas em dimensão coletiva, a resistência à política governamental, tida como uma questão de Direitos Humanos, perde a conotação dos conflitos de classe e da luta contra o aumento da desigualdade social.


Em seu lugar, a discussão dos mínimos sociais prevalece identificada como condição de dignidade e cidadania. É neste contexto onde o processo de internacionalização da economia, acompanhado do avanço da política neoliberal, apesar de gerar aumento da pobreza e da desigualdade, consolida a sua hegemonia nas sociedades democráticas. A proteção social concedida com base na ideia de seguridade fica ameaçada, passando a ser responsabilidade das organizações não governamentais que em parcerias com o Estado formam as redes sociais. Neste processo, se destaca a atuação dos conselhos gestores e das instituições de fiscalização, como o Ministério Público.

O cidadão isolado, quando se vê impedido de alcançar bens e serviços, definidos como seu direito, busca o Poder Judiciário como alternativa de reconhecimento da cidadania, neste ponto contribuindo a sensação e discurso interno do Poder Judiciário de ser contra-majoritário. Nestes termos, a informação e o acesso à justiça tornam-se fundamentais à democracia, tanto quanto uma questão que exige cuidados. De acordo com Cappelletti e Garth (1988) o acesso à Justiça é “requisito fundamental do sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:12). Nesta perspectiva, a criação de novas formas de atendimento à população constitui recursos democráticos, que servem à proteção dos mais fracos, podendo ser o empregado contra o empregador, a criança contra o adulto, a mulher contra o homem, etc.

Ao assumir este papel, o Poder Judiciário deixa de ser passivo diante do Executivo e do Legislativo. O fato é que a interpretação, identificada como fundamento do ato de julgar, afeta a harmonia da relação entre os poderes, inspirada em Montesquieu. A mudança se dá no sentido da adaptação da teoria federalista, que comporta o desenvolvimento de um sistema de freios e contrapesos, conforme a doutrina dos Checks and Balances, segundo a qual numa democracia o poder controla o poder. Dispositivos jurídicos como o controle concentrado da constitucionalidade de atos oriundos dos Poderes Executivo e Legislativo e o controle da legalidade de atos adminstrativos constituem importantes mecanismos criados para garantir a “supremacia da constituição”.

Nesta perspectiva, os juízes que, no modelo de Montesquieu, ficavam submetidos à condição de “funcionários do governo”, tidos como “boca da lei”, perdem a cômoda posição de neutralidade, tornando-se próximos da política. As consequências são diversas e chegam a alterar a forma de organização das democracias, ou seja, além dos Poderes Executivo e do Legislativo, o Judiciário também se torna um ator político de peso.

Neste sentido, as demandas sociais reprimidas encontram nele uma via alternativa de pressão pela efetivação de direitos e, inclusive, de elaboração de políticas. Com efeito, os juízes tornam-se protagonistas na defesa da cidadania, chegando a desempenhar a tarefa de policy makers, ou seja, de formuladores de políticas públicas.

Segundo Aguiar (2007), isto se dá não apenas nas circunstâncias em que o Judiciário compreende que uma lei é inconstitucional, mas também nas vezes em que as demandas sociais são requeridas em defesa da política de direitos de minorias contra decisões majoritárias (2007:147). Neste processo, a judicialização da política é contraditória, pois ao mesmo tempo em que é percebida como resultado do avanço do individualismo, sendo, portanto, algo negativo, também é considerada como resultado da luta dos movimentos por Direitos Humanos e fruto do avanço da democracia.

A contradição consiste em se pensar a autonomia do sujeito “desencaixado” da sociedade, conforme expressão de Guiddens, para deixar que o Estado o defenda contra “o interesse geral”. De acordo com o pensamento de Gauchet, quanto mais individualizada está a sociedade, maior é a alienação e mais amplo o controle do Estado sobre todos os indivíduos, o que resulta no aumento da heteronomia.

No Brasil, a questão da judicialização tem sido motivo de inúmeras controvérsias. Questiona-se a capacidade do Poder Judiciário garantir direitos a todos os cidadãos, visto ser uma instituição historicamente reconhecida como “protetora das faixas mais elitistas da sociedade” (LIMA JUNIOR, 2005:19). O fato é que as mudanças no Direito têm provocado impacto na democracia, com implicações significativas na implementação de políticas públicas.

Enquanto, os cidadãos vêem reconhecidos seus direitos de reclamar pela garantia de seu direito, o Poder Judiciário é acusado de ser indiferente aos limites orçamentários da administração pública (BARROSO, 2007). Faria (2004), ao remeter a questão, afirma estar o Poder Judiciário numa encruzilhada. A distribuição de medicamentos certamente encontra-se numa dessas vias.

Neste trabalho pretendemos analisar, a partir dos agravos e recursos do Tribunal Superior de Justiça, os acórdãos referentes aos processos criados no Rio de Janeiro que tratam desta questão. Nossa intenção é perceber quais as tendências da jurisprudência para estes casos, tendo em vista as resistências e interesses muito divergentes que envolvem o acesso às políticas públicas e à cidadania.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi aprovado em setembro de 1990 pela Lei 8.080/90. Entre suas atribuições, encontra-se, no artigo 6 inciso VI, a “formulação da política de medicamentos, equipamentos imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção”. Além da participação social e da equidade, o SUS tem como princípios a universalidade e a integralidade, o que coloca em evidência a questão do acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos.

Conforme a Constituição de 1988, previdência, saúde e assistência formam o tripé da seguridade social, sendo dever do Estado garanti-las. Em se tratando de saúde, a atenção não pode ser incompleta por ser necessária a garantia da consulta, da realização de exames, de cirurgias e ainda dos medicamentos. Em consequência, o custo de manutenção do sistema torna-se bastante elevado. Por estabelecer uma administração descentralizada, o SUS requer a articulação entre órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, além das instituições privadas que são incorporadas em caráter complementar.

Em 2006, por meio da Portaria MS/GM 399, ficou definido que é da competência dos três gestores o financiamento da assistência farmacêutica. Em 2007, a fim de prever e controlar a distribuição de medicamentos, a Portaria MS/GM 204 dividiu o financiamento em três componentes: o básico, o estratégico e o de medicamento de dispensação excepcional.

Cabe aos municípios estabelecerem a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (Remune), que reúne todos os medicamentos administrados pelas Secretarias de Saúde. À União, em parceria com os estados e o Distrito Federal, compete realizar a aquisição e a distribuição dos medicamentos de caráter excepcional (Portaria 577/GM de 2006 e Portaria 1.321 de 2007).

De acordo com o Ministério da Saúde, em 2008 a aquisição de medicamentos por meio de ações judiciais chegou a R$ 52 milhões, representando o triplo do valor gasto em 2007. Em três anos, o aumento do custo foi de quase 2.000%. Segundo o governo, 60% dos pacientes que entram com processos poderiam ser tratados com remédios similares existentes no SUS.[1]

No Rio de Janeiro, o gasto com medicamentos por meio de ações judiciais também tem aumentado. De acordo com dados da Secretaria de Estado da Saúde, o crescimento anual das demandas judiciais por medicamentos excepcionais passou de 24 ações, no ano de 2002, para 2.511 ações, em 2007. Nesta disputa, o governo resiste em nome do interesse público e, muitas vezes contra o direito individual, a negar o acesso, tendo sobre si a espada de Dámocles da indisponibilidade do patrimônio público e controles externos de gestão orçamentária.


Nesta pesquisa, foram consultados 45 acórdãos, compreendendo 19 Agravos, 21 Apelações, sete Reexame/Apelação e um Reexame necessário, pertencentes ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, referentes ao período de fevereiro a setembro de 2010. Nas decisões, os desembargadores reconheceram o direito dos usuários do SUS e fundamentam seus votos com base em dispositivos programáticos da Constituição. Independente das tentativas de controle dos gestores do SUS, que com base em protocolos, nas diretrizes e no Remune procuram racionalizar a distribuição dos medicamentos, as sentenças têm reconhecido o direito do usuário à saúde. O desembargador Benedict Abicair, ao justificar sua decisão, indica a tendência corrente do Poder Judiciário:

A fim de resguardar o maior bem do ser humano, que é a vida, o Judiciário tem decidido de forma unâmine pela possibilidade de fornecimento de medicamentos pelo Estado aos hipossuficientes. Revela-se inconcebível alegue o Poder Público que o fornecimento depende da inclusão dos medicamentos prescritos em lista elaborada pelos órgãos competentes, eis que o direito à saúde não pode ser limitado por uma norma elaborada pelo constituinte derivado. O atestado médico, seja da rede pública, seja da rede particular, é documento bastante a comprovar a necessidade do medicamento pleiteado.

Como o SUS estabelece a integralidade no atendimento, este princípio tem sido questionado pelo fato do Judiciário compreender que “o termo integral abrange todos os medicamentos que o paciente precisar para preservação de sua saúde, enquanto durar o tratamento”, conforme sentença do desembargador Camilo Ribeiro Rulière.

Se para os gestores o protagonismo dos juízes e desembargadores significa um desafio para administração ou uma falta de compreensão e indiferença deles à necessidade de racionalização na distribuição dos medicamentos, para a associação de doentes a possibilidade de recorrer à Justiça representa um recurso à efetivação do direito à saúde e, no limite, à sobrevivência. Os interesses são antagônicos e a questão está sendo decidida pela cúpula do Poder Judiciário.

Como a judicialização também surge como resultado da defesa dos direitos individuais, que com base numa política de direitos são defendidos contra decisões majoritárias, o processo tem sido criticado por contradizer o princípio democrático. Se, de um lado, a judicialização pode representar a supremacia do Poder Judiciário contra o princípio da vontade geral, por outro é a alternativa que faz com que o direito seja aplicado levando em conta as condições de existência dos indivíduos.

Segundo Aguiar (2007), numa perspectiva liberal o fenômeno pode ser positivo, pois o Poder Judiciário oferece canais alternativos de mobilização e deliberação, “uma vez que as instituições majoritárias carecem de efetividade” e “perdem capacidade de atender demandas e manter sua legitimidade” (2007:150). No Brasil, a crítica também se faz com ênfase sobre o fato de que são os segmentos das classes médias, com melhor acesso à renda, à informação, à educação, podendo, inclusive, pagar por um advogado, que chegam aos tribunais. Alega-se que, por isso, aumenta-se a desigualdade no fornecimento do serviço, sobretudo o de saúde, já que o acesso dos mais pobres ao Poder Judiciário ainda é muito restrito, visto demandas históricas por recursos das Defensorias Públicas.

Contrariamente ao ativismo do Pode Judiciário encontra-se a autocontenção judicial, que consiste, entre outras coisas, na abstenção por parte da magistratura de interferir na definição de políticas públicas (Barroso: 2009). Esta conduta foi predominante até a aprovação da Constituição de 1988. Segundo Barroso (2007), na década de 1990 a magistratura passou a adotar o princípio da reserva do financeiramente possível (Vorbehalt des Möglichen[2]), por admitir que a concessão do direito deveria estar condicionada à existência de recursos públicos disponíveis. A mudança para o ativismo é recente e, segundo Barroso, representa um risco à democracia, pela recusa ao princípio majoritário, e pelos problemas que provocam na administração pública.

Apesar dos problemas assinalados, é preciso considerar que “um direito positivo existe, na realidade, somente quando e se há gastos orçamentais” (Holmes e Susntein (1999) apud Silva (2005:12)), portanto o direito subjetivo a prestações sociais não pode ser submetido ao princípio da reserva do possível ou mesmo ao interesse público, sob o risco de o cidadão perder a alternativa à garantia do direito. Nestes termos, há que repensar as formas de gestão na saúde. Silva (2007) comenta que, na Grã-Betanha, os medicamentos produzidos pelos laboratórios só podem ser prescritos pelos médicos e distribuídos à população após avaliação das universidades (2007:16).

Uma das formas de impedir que os médicos favoreçam algum laboratório específico consiste em fazer com que, em suas receitas, incluam mais de uma alternativa de medicamento. Este procedimento tem sido utilizado nos Estados Unidos. Como podemos perceber, é possível elaborar estratégias no plano da gestão que não impliquem em redução no “poder dos juízes”.

Por outro lado, se os pobres ainda não utilizam o Judiciário, ou quando o fazem estão atrelados ao próprio aparato estatal pela Defensoria Pública, na maioria dos casos, importa fazer com que o acesso seja ampliado em vez de impedido. Afinal, se o Poder Judiciário não consegue garantir o direito à saúde, a cidadania perde seu valor enquanto possibilidade concreta, voltando a significar uma mera referência para sempre utópica, uma promessa na Carta Política sempre por se realizar adiante sem um agora efetivo.

Bibliografia:

AGUIAR, Thais Florencio de. A judicialização da política ou o rearranjo da democracia liberal. In: Ponto-e-Vírgula, nº 2, 2007

BARROSO, Luís Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. In: Interesse Público. V. 46, 2007

BARROSO, Luís Roberto Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In: Revista Eletrônica da OAB. Edição Número 4 – Janeiro/Fevereiro de 2009.

CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Fabris, 1988.

LIMA JUNIOR, Jaime Bevenuto. Independência dos Juízes – aspectos relevantes, casos e recomendações. Recife: Gajop, Bagaço, 2008.

FARIA, José Eduardo. O Sistema Brasileiro de justiça: experiência recente e futuros desafios. Estudos Avançados. 18(51), 2004.

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999

GAUCHET, Marcel. La démocratie contre elle-même. France: Éditions Galimard, 2002

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: Norton & Co. 1999

SALAS, Denis. Lê Tiers Pouvoir: vers une autre justice. Paris: Hachette Litératures, 1998.

SILVA, Francisco Viegas Neves da. Considerações Sobre a Judicialização do Acesso à Saúde. Rio Grande do SUL. Universidade Católica de Pelotas. Monografia de Conclusão de Curso, 2007.

Streck, Lenio. A Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 7ª. Ed. Revista do Advogado. 2007

VIANNA, Luiz Werneck, CARVALHO, Maria Alice Rezende, MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann,. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999


[1]Folha de São Paulo, A judicialização da política de medicamentos e o STF . Matéria publicada em 09 de janeiro de 2009.
 

[2] Citado por Gilmar Ferreira Mendes, em “Os Direitos Fundamentais e Seus Múltiplos Significados na Ordem Constitucional”, publicado na Revista Jurídica Virtual. Brasília, vol. 2, n. 13, junho/1999

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