IDEIAS DO MILÊNIO

"A democracia chegará ao Irã pela mão das mulheres"

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7 de janeiro de 2011, 6h17

Reprodução/GloboNews
Shirin Ebadi - Reprodução/GloboNews

Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2003 por sua luta em defesa dos direitos humanos e da igualdade de tratamento para as mulheres do Irã, a advogada Shirin Ebadi é muito pragmática no exercício da advocacia. Embora reconheça que grande parte da legislação de seu país seja “ruim”, ela não briga com as leis más. “Tenho ressalvas quanto à totalidade da legislação iraniana, quando eu vou a um tribunal para defender o meu cliente, tento encontrar na lei uma forma de ajudar o acusado”.  

A advogada, que já foi juíza no Irã e hoje vive na Europa, pode parecer até contraditória. É ferrenha opositora do governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad, mas defende o direito do Irã desenvolver um programa nuclear. É crítica ácida da política dos Estados Unidos para o Oriente médio, mas apoia medidas do governo americano contra violações aos direitos humanos no Irã. Pensando melhor, percebe-se que suas posições são coerentes.

Shirin Ebadi foi entrevistada por Jorge Pontual, para o programa Milênio da Globo News. A entrevista, levada ao ar no dia 20 de dezembro, é transcrita abaixo. O Milênio é transmitido pela Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça-feira, às 5h30 de quarta e às 7h05 de domingo.

Leia a transcrição da entrevista de Shirin Ebadi a Jorge Pontual:

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Jorge Pontual e Shirin Ebadi - Reprodução/GloboNews

Jorge Pontual – O comitê do Nobel da Paz surpreendeu o mundo em 2003. Todos esperavam que o prêmio fosse para o papa João Paulo II que não teria mais muito tempo de vida. Em vez dele, a escolhida foi a advogada iraniana Shirin Ebadi. O papa era muito conservador para os noruegueses e a desconhecida advogada iraniana representava uma causa popular entre os europeus: as mulheres reprimidas pelas sociedades islâmicas. O regime dos aiatolás permitiu que ela fosse a Oslo receber o prêmio, mas criticou-a por ter aparecido sem cobrir os cabelos com o véu. Desde a eleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad em 2005, a perseguição a Shirin Ebadi no Irã cresceu. Ela estava fora do país quando aconteceu a eleição de junho do ano passado, com a vitória de Ahmadinejad contestada pela oposição no movimento verde e não voltou mais. Ebadi esteve recentemente em Nova York para, com sucesso, convencer a ONU a aprovar uma resolução que condenasse o Irã por violação dos direitos humanos. Dura e exaltada, falando sempre em persa com tradução em inglês, a advogada pediu que o mundo dê mais atenção a todas as vítimas das leis islâmicas no Irã. Não só à mulher condenada a ser apedrejada por adultério, Sakineh Ashtiani, alvo de uma campanha mundial de solidariedade. Em entrevista ao Milênio, Shirin Ebadi disse que vem ao Brasil em 2011, e espera convencer a presidente eleita Dilma Roussef a não cobrir a cabeça se visitar o Irã. Ela pediu o apoio dos brasileiros ao movimento iraniano pelos direitos humanos. 

Jorge Pontual — No seu discurso na premiação do Nobel, a senhora disse que é descendente do imperador persa Ciro II e também uma muçulmana praticante. E que o Irã tem uma tradição de 25 séculos de respeito aos direitos humanos. É isso que lhe dá esperanças de que, um dia, os atuais abusos vão acabar?
Shirin Ebadi — Sim, com certeza isso acabará um dia. Todo o povo iraniano está descontente com a atual situação e faz esforços para melhorar as condições do Irã. Mesmo que uma parte deles esteja nas prisões hoje sei que um dia serão livres novamente. 

Jorge Pontual — Por que a senhora descreve a Revolução Islâmica menos como uma revolução religiosa e mais como uma tomada de poder dos homens contra as mulheres, do patriarcado contra a igualdade?
Shirin Ebadi — Perfeitamente correto. Aquilo que o governo do Irã quer é que uma pessoa pense, decida e imponha sua vontade a todo o resto da nação. Isso é uma coisa que não existe no Islã.

Jorge Pontual — Mas como isso tudo funcionou contra as mulheres?
Shirin Ebadi — Depois da Revolução Islâmica tivemos a criação de uma legislação muito negativa no tocante às mulheres. O valor de um homem e de uma mulher é muito diferente… se um homem e uma mulher estiverem na rua, forem agredidos e feridos igualmente a indenização que é dada à mulher é a metade da que seria dada a um homem. Outro exemplo é o fato dos homens terem a possibilidade de possuir quatro mulheres, além de outras leis discriminatórias.

Jorge Pontual — A senhora lutou contra essas leis e a discriminação das mulheres. Um dos seus primeiros casos, assim que a senhora se tornou advogada, foi o assassinato da menina de 11 anos, Leila Fatih. Por causa das leis iranianas, os pais delas tiveram que pagar milhares de dólares pela execução dos assassinos. A senhora não ganhou esse caso, mas ajudou a criar uma consciência de como essas leis são injustas.
Shirin Ebadi — Essa é uma das “leis ruins” implementadas depois da Revolução. Como as vidas de um homem e de uma mulher não têm o mesmo valor… se um homem matar uma mulher, a família da vítima recebe somente metade do que a família de um homem receberia como indenização. Essa é mais uma das leis que o governo diz ser “islâmica”, mas veja… até alguns outros especialistas do clero afirmam que isso não tem nada de islâmico, que podemos, sim, mudar essas leis.

Jorge Pontual — A senhora foi juíza durante alguns anos ate que o novo governo islâmico a afastasse do cargo. Então a senhora se tornou uma advogada “pro Bono” de defesa dos direitos humanos. A senhora sempre defende seus casos utilizando a jurisdição islâmica, dentro do quadro legal islâmico. Então a senhora acredita que as leis islâmicas podem ser justas?
Shirin Ebadi — Quando eu vou a um tribunal para defender o meu cliente, tento encontrar na lei uma forma de ajudar o acusado. Portanto, trato de discutir os aspectos daquela lei específica. Tenho ressalvas quanto à totalidade da legislação iraniana, mas de forma alguma poderia ir ao tribunal dizer que não concordo com as leis e pedir que favoreçam o meu cliente, isso não faria sentido… por isso tento encontrar um caminho para proteger o acusado que me propus a defender. Por outro lado, eu não acredito na Constituição iraniana simplesmente porque ela não é justa.

Jorge Pontual — Seu cunhado, Fuad, foi executado na prisão, acusado injustamente de ser terrorista. De que forma a morte dele mudou a sua vida?
Shirin Ebadi —
O irmão do meu marido tinha só 17 anos. Na escola onde ele estudava, por algumas vezes, havia vendido um jornal do grupo político ao qual estava filiado. Isso aconteceu na época em que o jornal ainda era vendido nas bancas e era legal. Prenderam-no por ser um apoiador desse grupo político e o condenaram a 20 anos de prisão. Sete anos depois foi executado. Isso foi um episódio muito doloroso para mim, nunca consegui esquecer ou superar isso.

Jorge Pontual — Mas quando ele foi morto, o que mudou para você?
Shirin Ebadi — Pensei comigo mesmo, como é extremamente injusta a morte desse jovem somente porque era um apoiador de um grupo político. E isso só me afastou ainda mais desse governo.

Jorge Pontual — Quando a senhora ganhou o Nobel e voltou para casa, centenas de milhares de pessoas a esperavam no aeroporto. O que a senhora sentiu quando viu essa multidão?
Shirin Ebadi — Tive uma sensação muito boa. Pensei comigo mesma: “Trabalhei durante anos para o povo e agora estou recebendo esse reconhecimento”. Percebi, pela recepção, que essas pessoas não tinham esquecido o que havia sido feito. Senti que vieram mostrar sua dívida de gratidão.

Jorge Pontual — O que é o movimento feminista “Um Milhão de Assinaturas” que a senhora criou alguns anos atrás?
Shirin Ebadi —
Em um protesto contra essa legislação discriminatória, criamos uma campanha que pretendia conseguir a assinatura de um milhão de homens e mulheres, manifestando sua discordância contra as leis injustas do país. E não eram só assinaturas, primeiro apresentávamos quais eram as leis, explicávamos a situação e, depois pedíamos as assinaturas. Essa foi uma campanha de muito sucesso.

Jorge Pontual — A senhora boicotou as eleições de 2005 nas quais Mahmoud Ahmadinejad foi eleito. E também as de 2009. A senhora as boicotou porque não as considerou eleições livres. O governo foi quem decidiu os que poderiam concorrer. Essas últimas eleições foram realmente fraudadas?
Shirin Ebadi — No Irã as eleições não são livres, a população não pode votar em quem quiser. A lista dos candidatos deve ser aprovada pelo Conselho dos Guardiões da Revolução. Nas últimas eleições, mais de 400 pessoas apresentaram nomes para concorrer à Presidência da República e somente quatro foram aprovados. Um desses candidatos, o senhor Ahmadinejad, já tinha sido Presidente, os outros três ocuparam postos importantes dentro desse governo. Durante o processo eleitoral, a vitória do senhor Ahmadinejad foi anunciada antes do final da contagem dos votos. Isso fez com que a população se revoltasse e saísse às ruas. Foi uma movimentação pacífica de milhões de pessoas. Apesar disso, a partir do telhado de um edifício público foram feitos disparos contra a população. E assim começou a repressão violenta do governo. 

Jorge Pontual — A senhora pode me mostrar o seu bracelete verde? É muito bonito. No ano passado eu e muitas pessoas em todo o mundo nos vestimos de verde para dar apoio à Revolução Verde no Irã. Agora um ano e meio depois, não temos ouvido mais notícias sobre o que está acontecendo no Irã. O Movimento Verde acabou?
Shirin Ebadi — Esse movimento não acabou, o número de apoiadores aumenta a cada dia. Além da questão dos direitos humanos e da fraude nas eleições, existe a questão da pobreza que tem mostrado uma tendência de crescimento. De acordo com as pesquisas internacionais, no ano passado a econômica do Irã cresceu apenas 1,6%. É a menor taxa na região do Oriente Médio. Nesse ano que passou tivemos uma taxa de crescimento ainda menor do que as do Iraque e do Afeganistão. 

Jorge Pontual — E há também inflação alta. A senhora acredita que a crise econômica no Irã pode abalar o governo?
Shirin Ebadi — Acho muito difícil. O que poderia fazer com que o governo desse um passo atrás seria a resistência pacífica da população. 

Jorge Pontual — Recentemente a senhora foi capaz de forçar que a Nokia/Siemens parasse de ajudar o governo iraniano a monitorar os celulares e as conexões de internet e a prender manifestantes que usavam celulares e a internet. Fale-nos sobre isso.
Shirin Ebadi — A Nokia/Siemens deu ao governo do Irã uma tecnologia que permitiu o monitoramento dos telefones celulares e da internet. Através desse sistema, todos aqueles que eram contrários ao senhor Ahmadinejad foram enquadrados pelas forças do Estado. Eu tive inúmeras conversas com a Nokia/Siemens até que eles publicassem um comunicado em seu site, reconhecendo o erro que cometeram e afirmando que o governo do Irã abusou da tecnologia que ofereceram a ele. A empresa pediu desculpas ao povo do Irã e ficou acertado que, ao final desse contrato, que dura ainda mais um ano, nenhum outro será firmado com governo iraniano. 

Jorge Pontual — O mundo inteiro ficou sabendo do caso da Neda Agha Soltan, mas eu gostaria que a senhora também falasse sobre outra vítima dos confrontes com o governo que foram Sohrab Arabi e a mãe dele. E que também falasse sobre as “Mães de Luto” iranianas. Que movimento é esse e como podemos ajudá-lo?
Shirin Ebadi — Sohrab Arabi foi uma pessoa que participou, junto com a mãe, de uma das primeiras passeatas e, de repente, desapareceu. Sua mãe buscou por ele por 40 dias em hospitais, prisões e delegacias. Todos afirmava não ter informações sobre o seu filho. Depois desses 40 dias, um álbum de fotografias do instituto médico legal foi mostrado a ela. Depois da trigésima foto ela descobriu que seu filho havia sido morto a tiros no mesmo dia da passeata e que seu corpo havia sido guardado desde então no IML sem que a ela tomasse conhecimento do que havia acontecido. 

Jorge Pontual — As Mães de Luto iranianas se reúnem todos os sábados e promovem festas de aniversário… quer dizer, não festas, mas memorações ou algo assim. Como o mundo pode ajudar as Mães de Luto iranianas?
Shirin Ebadi — Um comitê foi formado com as mães que tiveram filhos mortos pelo regime ou que têm filhos nas prisões. Elas se reúnem todos os sábados em um parque, abraçam as fotos dos filhos e, em silêncio, observam umas às outras. Em muitas cidades existem outros grupos de solidariedade a essas mães enlutadas – em Paris Londres, Berlim, Colônia, Los Angeles e em muitas outras cidades. A formação desses grupos de solidariedade permite que essa dor possa ser compartilhada com mais pessoas. Faço esse pedido também ao povo bondoso do Brasil.

Jorge Pontual — Durante o governo de Ahmadinejad, as ameaças de morte contra a senhora aumentaram, seu escritório foi fechado, sua casa foi saqueada e depois das eleições pessoas de sua família foram presas, os passasportes deles foram apreendidos e não podem deixar o Irã, as suas contas bancárias foram congeladas. Como a senhora pretende voltar ao Irã, a senhora pode voltar?
Shirin Ebadi — Eu volto ao Irã na hora que eu quiser e ninguém tem o direito de me impedir. Todas as minhas ações sempre foram perfeitamente legais. A razão pela qual não volto ao Irã é que a censura hoje é muito pesada e a minha voz não chegaria aos ouvidos do resto do mundo estando lá. Decidi ficar fora do Irã porque aqui posso ser de maior valor. 

Jorge Pontual — No seu discurso do Nobel a senhora denunciou os EUA, por violação dos direitos humanos dos presos em Guantánamo, e também a ONU por sancionarem vários países mas permitindo que Israel ocupasse os territórios palestinos. Mas essa parte de seu discurso foi censurada quando o vídeo foi editado. A senhora sabia disso? As pessoas  têm que ler a transcrição do seu discurso para ter acesso a esse trecho. O que a senhora acha disso?
Shirin Ebadi — É a primeira vez que escuto isso, vou pesquisar a respeito. Se isso for verdade, entendo essa atitude como uma forma de censura. Sempre me opus à censura. Vou protestar. 

Jorge Pontual — A senhora escreveu que essa crise em torno da questão nuclear iraniana foi fabricada pelos lobistas israelenses dentro dos EUA. O que a senhora acha dos esforços do presidente Lula e da Turquia para negociar uma solução? E como a senhora se sentiu ao ver o presidente Lula abraçado ao presidente Ahmadinejad?
Shirin Ebadi — Eu tenho a convicção de que a energia nuclear é um direito nosso, porém será que esse é o momento propício para que possamos tirar proveito desse nosso direito? Não! Na minha opinião não é. Devemos participar em colaboração com toda a comunidade internacional e dar toda a importância às Nações Unidas. Eu sempre recebo bem a idéia de uma aproximação de diálogo e cooperação entre outros países e o Irã, mas esse diálogo também deve considerar as questões de direitos humanos. Antes que o Lula viesse ao Irã, através de muitos jornalistas locais, pedi a ele que considerasse o seu próprio passado de proteção dos direitos do trabalhadores e que, quando fosse ao Irã, fizesse uma visita aos familiares dos sindicalistas presos para escutar o que eles têm passado. Especialmente Mansour Osaloo (conhecido como o “Lula do Irã”). O presidente Lula veio ao Irã, abraçou Ahmadinejad e se foi. 

Jorge Pontual — Como a senhora se sentiu ao ver essa imagem?
Shirin Ebadi —
Percebi que o presidente Lula não sabia exatamente o que acontece no Irã. Não sabe que o senhor Ahmadinejad faz com seu povo. 

Jorge Pontual — A nova líder brasileira é uma mulher, a presidente eleita Dilma Roussef. Ela já se manifestou contra a ameaça de execução de Sakineh Ashtiani. A senhora espera que o Brasil faça mais com relação aos direitos humanos e aos direitos das mulheres no Irã?
Shirin Ebadi — Sim, tenho sim essa expectativa. Ela é uma mulher e sente as dificuldades pelas quais as mulheres passam. Temos muitas mulheres que, hoje, estão presas porque foram contrárias à idéia de que seus maridos tivessem outras esposas. Afirmava que desejavam igualdade de direitos. O governo as acusou de serem uma ameaça à segurança da nação. É preciso que isso fique claro: as mulheres, como os homens, devem ter os mesmo direito. Espero que essa senhora, caso venha ao Irã, não coloque o véu sobre a cabeça. Que venha ao Irã e use a mesma roupa que usa em seu país, venha com a mesma aparência que vai ao seu gabinete todo dia. 

Jorge Pontual — E se colocar o véu?
Shirin Ebadi — Aí eu direi a ela: “A senhora se esqueceu que é uma mulher? Como justifica uma amizade com um país que pisoteia os direitos da mulher? Que não lhes dá o direito de escolher a roupa que deseja vestir?” No meu país os jovens costuma fazer uma brincadeira, eles dizem: “Nós não temos nem a liberdade de ir ao inferno se quisermos, mas querem nos levar, à força, para o céu!” E eles continuam: “por favor, pelo menos nos deixe ir para o inferno, já que para lá é mais fácil!” 

Jorge Pontual — Na capa do seu livro… É a senhora?
Shirin Ebadi — Sim! 

Jorge Pontual — E está com o véu. Mas quando a senhora voltar ao Irão não vai usá-lo?
Shirin Ebadi — Eu sou obrigada a vestir o véu porque isso faz parte de lei. Seja iraniana ou não, seja muçulmana ou não, deve-se cobrir a cabeça. Por isso essa lei não é correta, uma mulher não-muçulmana não tem obrigação nenhuma de usar o véu. Por essa razão peço à sua presidente que, se vier ao Irã, não cubra a cabeça com o véu. 

Jorge Pontual — Para desafiar a lei?
Shirin Ebadi — Quando um presidente é convidado de acordo com as leis internacionais, tem imunidade diplomática. 

Jorge Pontual — É possível mudar o regime iraniano por meios pacíficos?
Shirin Ebadi — O regime é muito violento com o povo, e não existem mais de dois caminhos. Ou eles vão ser obrigados a aumentar diariamente as medidas opressivas e violentas para silenciar o povo ou terão que escutar a voz da população. Infelizmente, esse governo já demonstrou que não quer ouvir a voz do povo. Então, com o governo Ahmadinejad, não vejo outro futuro senão um aumento diário da violência e da repressão. 

Jorge Pontual — O governo do Irão tem medo das mulheres iranianas e da senhora? Porque a senhora não se tornou a líder da oposição?
Shirin Ebadi — As mulheres, devido à legislação e às ações discriminatórias estabelecidas depois da revolução, estavam sempre à frente da oposição a esse regime. Eu sou uma defensora dos direitos humanos, não tenho posição política, não sou membro de nenhum partido. Sempre tive o desejo de continuar junto ao povo. Nenhum cargo ou posição política eu aceitaria. 

Jorge Pontual — Mas a senhora vê o movimento feminista crescendo e se tornando por si só tão espontâneo e poderoso que possa alcançar essas conquistas?
Shirin Ebadi — Tenho certeza de que a democracia chegará ao Irã pelas mãos das mulheres. 

Jorge Pontual — A invasão de Saddam Hussain ao Irã e os oito anos que se seguiram aprofundou essa sensação de martírio na cultura xiita iraniana. A senhora disse que quem venceu essa guerra, na verdade, foram os comerciantes de armas, a indústria armamentista dos EUA, da Europa e de Israel, que venderam armas para os dois lados. Fale-me sobre isso, sobre como a guerra com o Iraque afetou o espírito do Irã e sobre o fato de que nenhum dos lados venceu, nem o Irã e nem o Iraque, a não ser os mercadores de armas.
Shirin Ebadi — Saddam Hussein atacou o Irã e durante anos tivemos um conflito intenso com ele. Os jovens iranianos se levantaram pra defender o seu país. Infelizmente, durante esse período, os EUA e outras potências defenderam o governo de Saddam. Lembro-me claramente que Saddam Hussein bombardeou o Irã inúmeras vezes com armas químicas e, naquele mesmo momento, Donald Rumsfeld foi a Bagdá dar as mãos a Saddam. Isso não é uma coisa que eu ou o povo iraniano possamos apagar da memória. 

Jorge Pontual — A senhora denunciou os EUA por darem apoio a Saddam Hussein, também por invadirem o Iraque e deporem o mesmo Saddam Hussein, e por venderem armas para ele. A senhora também se manifestou contra a “ajuda” financeira que os EUA oferecem à oposição iraniana, milhares de dólares. A senhora também alertou de que as ameaças dos EUA de bombardearem o Irã ameaçam também os cidadãos iranianos. Então, a senhora tomou várias posições contra os EUA. E os conflitos entre EUA e Irã já se estendem por muitas décadas, desde que a CIA derrubou o governante iraniano eleito, Mohammed Mossadegh, em 1953. Com todo esse passivo, como o povo iraniano pode perdoar os EUA e promover algum diálogo?
Shirin Ebadi — No mundo da política ninguém nunca é um amigo eterno ou um inimigo eterno de ninguém, portanto, quando há, entre dois países, uma situação como essa, nós não devemos perder as esperanças de que com uma consulta construtiva poderíamos acertar nossas relações. Se o governo americano deseja manter um diálogo com o Irã, ele deve ter em mente que não pode vislumbrar somente a questão nuclear. A questão dos direitos humanos também deve ser considerada. Nos últimos meses foram levantados os nomes de oito oficiais do governo iraniano envolvidos em assassinatos cometidos no ano passado. Eles estão proibidos de ir aos EUA e, se lá tiverem posses, elas serão automaticamente confiscadas. Esse tipo de ação mostra que, aos pouco, o governo americano passou a prestar mais atenção na questão dos direitos humanos. O povo do Irã fica muito feliz ao saber disso.  

Jorge Pontual — Quando a senhora pensa nas pessoas da sua vida: no seu cunhado Fuad, que foi executado, naquela menininha Leila Fatih, que foi assassinada sem que a justiça fosse feita, nas milhares de mulheres iranianas que não têm direitos, nas filhas delas que não podem voltar ao Irã – vai ser difícil a volta delas – no seu marido e na sua família, que não podem sair do Irã… O que a senhora diria para eles neste momento?
Shirin Ebadi — Sinto que essas pessoas foram injustiçadas. Mais importante é que em todos esses casos as leis criadas por essas pessoas não foram respeitadas. O governo não respeita as suas próprias leis.

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