Conduta insignificante

Para TJ-RJ, portar munição sem arma não é crime

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4 de janeiro de 2011, 10h51

Depois de ser condenado em primeira instância a pouco mais de três anos de prisão, inicialmente em regime fechado, em maio deste ano, um homem conseguiu ser absolvido no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Segundo a acusação, ele foi preso em flagrante, próximo à entrada da favela Pavão-Pavaozinho, na zona sul do Rio, com uma munição no bolso.

O desembargador Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso na 1ª Câmara Criminal do TJ fluminense, entende que é crime o porte de munição. "A tipificação da conduta consistente na posse, no porte, na detenção, transporte, aquisição e outros similares, de munição caracteriza os crimes previstos na Lei 10.826/2003, sem qualquer ofensa aos princípios da lesividade e ofensividade que devem revestir os tipos penais, eis que põe em risco o bem jurídico tutelado na norma e caracteriza crime de perigo abstrato", entende.

Mas, ao analisar o caso concreto, ele constatou que a situação é excepcional. "A conduta consistente em portar apenas uma munição, em seu bolso esquerdo, revela-se incapaz de gerar dano a outrem", conclui. Para ele, o comportamento do acusado é atípico.

"Como o apelante foi preso com apenas uma munição em seu bolso, sem qualquer outro acessório ou chance de uso por arma de fogo, não gerando este comportamento qualquer risco de dano real ao bem jurídico protegido ou a qualquer outro, em que pese a conduta encontrar adequação ao modelo legal, falta-lhe a tipicidade material, sendo imperiosa, portanto, a absolvição", afirmou o relator.

Para Bellizze, a conduta é insignificante e a pena imposta desproporcional. A decisão da 1ª Câmara Criminal foi unânime. Não houve apresentação de recurso e, no último dia 16 de dezembro, foi dado baixa ao processo.

Em maio deste ano, o juiz Flavio Itabaiana Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, condenou o acusado a três anos, um mês e 15 dias de prisão, inicialmente em regime fechado. O homem havia sido condenado por portar a munição. Além disso, o juiz manteve a prisão do acusado para a garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal. Para manter o homem preso, o juiz se reportou ainda ao fato de o acusado responder a outros quatro processos criminais por roubo. O acusado entrou com recurso no TJ do Rio, que reformou a decisão e o absolveu.

Decisões contrárias
A jurisprudência ainda não pacificou o entendimento sobre os agravantes e atenuantes nos casos de porte de munição, arma de brinquedo ou porte de armas e munição. No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, há entendimentos divergentes sobre o tema entre as câmaras criminais.

Em decisão unânime, proferida em 2007, a 3ª Câmara Criminal considerou que o uso de arma de brinquedo para praticar crime de roubo não pode ser considerado agravante. Em outro caso, a mesma câmara entendeu que arma sem munição não representa perigo objetivo, por isso, o porte de arma sem munição não é crime.

Na mesma linha da 1ª Câmara Criminal do TJ-RJ, a 12ª Câmara Criminal paulista entendeu que, ainda que a posse de munição seja considerada crime, pode ser aplicado o princípio da insignificância em alguns casos. Já a 9ª Câmara Criminal, em um julgado de 2007, reconheceu que há crime em guardar e transportar arma de fogo sem autorização, ainda que ela não esteja carregada. Os desembargadores consideraram, por unanimidade, que o fato de a arma estar ou não municiada não influencia em nada.

Nos tribunais superiores, também há decisões conflitantes. Em setembro de 2010, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou, em um caso de relatoria do ministro Jorge Mussi, que é irrelevante o fato de o agente não portar a arma de fogo no momento da apreensão da munição. Isso porque o porte ilegal de munição é considerado delito de perigo abstrato.

No entanto, a 6ª Turma já tinha decidido, no julgamento de um Recurso Especial em setembro de 2009, que a arma, para ser arma, tem de ser eficaz. Logo, a munição necessita da presença da arma para configurar um perigo. Por falta de potencialidade lesiva, não comete o crime de porte ilegal de munição aquele que, sem a presença da arma, carrega a munição.

Esse também foi o entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que, em agosto de 2009, concedeu Habeas Corpus a um portador de arma de fogo sem munição. Os ministros da turma entenderam que porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha as balas em mãos, não configura o tipo previsto no artigo 10 da Lei 9.437/97.

Em julgado de setembro de 2009, a 1ª Turma do STF também considerou que o porte de munição não configura o crime de porte ilegal de arma de fogo. O caso tratava de um homem que guardava em sua casa sete cartuchos de munição de uso restrito, como recordação do período em que foi sargento do Exército.

Leia a decisão:

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL
Apelação Criminal nº. 0064340-96.2010.8.19.0001
Apelante : xxxxxxxxx
Apelado : Ministério Público
Relator : Des. Marco Aurélio Bellizze

E M E N T A

APELAÇÃO. Crime de porte ilegal de munição. Sentença condenatória. Apelo defensivo buscando absolvição ou redução da pena. Absolvição. Atipicidade da conduta. Porte de apenas uma munição, que se encontrava no bolso esquerdo do apelante. Adequação da conduta ao modelo legal – tipicidade formal. Ausência de risco efetivo ao bem jurídico tutelado, a incolumidade pública – tipicidade material. Ausência de apreensão de arma de fogo ou de qualquer outro acessório. Insignificância do comportamento. Desproporcionalidade da pena prevista abstratamente. Recurso a que se dá provimento.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº. 0064340-96.2010.8.19.0001, originários do Juízo da 27ª Vara Criminal da Comarca da Capital, em que é apelante xxxxxxxx, ou xxxxxx, ou xxxxxxxx, ou xxxxxxxx, e apelado o Ministério Público, ACORDAM os Desembargadores que compõem a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na sessão de julgamento realizada no dia 13.10.2010, por unanimidade de votos, em conhecer e dar provimento ao recurso, para absolver o apelante da imputação relativa ao art. 14 da Lei nº. 10.826/2003, com base no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal, com expedição de alvará de soltura, se por al, nos termos do voto do Relator. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2010.

Desembargador MARCO AURÉLIO BELLIZZE

Relator

V O T O

Adoto o relatório já constante dos autos.

xxxxxxx foi condenado pelo Juízo da 27ª Vara Criminal da Comarca da Capital como incurso nas sanções do crime do art. 14, caput, da Lei nº. 10.826/2003, porque, no dia 22.02.2010, por volta das 3h50, na Rua Francisco Sá, próximo à entrada da comunidade do Pavão Pavãozinho, em Ipanema, portava e transportava, no bolso esquerdo, uma munição CBC, calibre 38.

Apela a defesa buscando a absolvição, com base no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal, por atipicidade da conduta, eis que o porte de uma simples munição não seria penalmente relevante. A pretensão merece acolhimento.

Penso que a tipificação da conduta consistente na posse, no porte, na detenção, transporte, aquisição e outros similares, de munição caracteriza os crimes previstos na Lei nº. 10.826/2003, sem qualquer ofensa aos princípios da lesividade e ofensividade que devem revestir os tipos penais, eis que põe em risco o bem jurídico tutelado na norma e caracteriza crime de perigo abstrato.

Todavia, em determinadas situações excepcionais, como no caso presente, a conduta consistente em portar apenas uma munição, em seu bolso esquerdo, revela-se incapaz de gerar dano a outrem, daí que tal comportamento é atípico, na medida em que não colocou em risco o bem jurídico tutelado pelo tipo penal, a incolumidade pública.

Oportuno salientar a atual concepção de tipicidade, que foi bem elucidada no acórdão da Apelação Criminal nº. 6.233/2008, da lavra do douto Desembargador Marcus Basílio, desta Colenda Câmara Criminal:

“Modernamente faz-se diferença da simples tipicidade formal com a chamada tipicidade penal ou material. Para que esta se configure não basta à adequação da conduta ao modelo legal (tipicidade formal), mas, ainda, a produção de um resultado (lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico – princípio da ofensividade ou lesividade) relevante (princípio da insignificância) e intolerável (princípio da adequação social), além de outros requisitos (antinormatividade ou tipicidade conglobante, imputação objetiva e elemento subjetivo).

(…)

Como decidiu o Ministro Cézar Peluso, “a chamada tipicidade material somente se daria quando houvesse dano, ou risco de dano, ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal”.

Assim, como o apelante foi preso com apenas uma munição em seu bolso, sem qualquer outro acessório ou chance de uso por arma de fogo, não gerando este comportamento qualquer risco de dano real ao bem jurídico protegido ou a qualquer outro, em que pese a conduta encontrar adequação ao modelo legal, falta-lhe a tipicidade material, sendo imperiosa, portanto, a absolvição do apelante.

Além disso, o mero porte de munição sem a arma de fogo respectiva ou qualquer outro dispositivo de acionamento revela a insignificância da conduta, bem como a desproporcionalidade da pena cominada para o tipo penal.

À conta de tais considerações, dirijo meu voto no sentido de conhecer e dar provimento ao recurso, para absolver o apelante da imputação relativa ao art. 14 da Lei nº. 10.826/2003, com base no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.

É como voto.

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2010.

Desembargador MARCO AURÉLIO BELLIZZE
Relator

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