Segunda leitura

Direito e música é tema rico e pouco explorado

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de janeiro de 2011, 9h43

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O estudo e o ensino do Direito ainda são feitos, via de regra, de maneira tradicional. Muito embora o mundo se transforme em uma velocidade jamais vista ou imaginada, as práticas jurídicas, em suas diversas áreas e não apenas na judicial, persistem no uso de modelos antigos, muitas vezes ultrapassados.

Mas o fato é que o ensino jurídico exige cada vez mais criatividade e atualização dos professores. E um campo ainda inexplorado é o da música. Com efeito, enquanto cinema e Direito vêm recebendo cada vez mais atenção, a música é praticamente ignorada. Uma louvável exceção é a rádio da UFMG que, em 6/9/2007, estreou o programa “Direito é música”.[i]

Com efeito, monografias de curso de graduação (TCC), dissertações de mestrado e teses de doutorado fixam-se, quase sempre, em temas amplamente debatidos. Direito do consumidor, função social da propriedade e responsabilidade penal das pessoas jurídicas são alguns deles. Por vezes repetindo e repetindo o que alguns falaram, sem nada acrescentar ou contribuir para a reflexão dos leitores e para o aprimoramento da cultura jurídica.

No entanto, desconheço qualquer estudo sobre a música popular brasileira e o Direito. E muito poderia ser estudado, comparando-se letras de canções e a aplicação do Direito, inclusive fixando-se os conceitos de época. Modinhas ingênuas de outrora poderiam hoje ser consideradas crimes. Preconceito, discriminação, fatos antes graves e hoje atípicos (v.g., adultério), tudo isto poderia merecer estudo aprofundado.

Vejamos alguns exemplos, seguindo a ordem cronológica. Iniciemos por um homicídio passional, tendo por pano de fundo o adultério. Aí está o mais antigo drama da humanidade, que perpassa séculos, diferentes culturas e permanece até hoje.

A música “Cabocla Tereza”, 1940, da dupla Raul Torres e João Pacífico,gravada por vários cantores,[ii] narra, em linguajar caipira, mas com muita poesia e dramaticidade, a história do caboclo que, surpreendido pela traição da amada, mata-a e se apresenta ao delegado a quem conta todo o acontecido. Ela retrata a confissão do assassinato e a simplicidade do homem interiorano do antigo Brasil rural. Termina com a estrofe: “Agora que já me vinguei. É esse o fim de um amor. Esta cabocla eu matei. É a minha história dotor.”

O direito de propriedade, como visto nos anos 50, pode ser analisado na célebre música de Adoniram Barbosa, “Saudosa Maloca” (1951). Em meio à demolição da casa, o cantor consola seus companheiros de ocupação dizendo: “os homi ta cá razão nós arranja outro lugar”. Há aí um conformismo e reconhecimento inquestionável da ordem judicial, fruto de uma época em que o Direito de propriedade era absoluto.

O mesmo compositor e cantor, em 1967, na música “O casamento do Moacir”, retrata um caso de bigamia. Na época, este crime, cuja prova se limitava à juntada de duas certidões de casamento, geralmente resultava em prisão. Agora, com a mudança de costumes e o reconhecimento constitucional e legal da união estável, saiu de moda. Praticamente desapareceu.

Em 1969, no início da proliferação das faculdades de Direito privadas, Martinho da Vila lançou “O pequeno burguês”. A letra, feita com inteligência e humor, revela o drama do bacharel que, mesmo diplomado, não vê campo de trabalho à sua frente. Nesse sucesso do compositor carioca ficou pela primeira vez explícita a perda de mercado de trabalho dos advogados.

Naquele mesmo ano, Jorge Benjor, com “Charles anjo 45”, mencionava em música o domínio de um morro no Rio de Janeiro por um condenado e que, após a sua prisão, o local se transformou em um inferno, ansiando pela volta do preso para que a paz viesse a reinar. Aí está, em música, registrada a ausência do Estado nos anos 1960, antevendo o que se passaria anos depois, no caso em 2010, com a intervenção das Forças Armadas.

Chico Buarque, em 1974, com a música “Acorda amor”, faz crítica severa ao sistema de segurança do regime militar, deixando a mensagem que, em caso de uma invasão de sua casa pelas forças da repressão, ao invés de chamar a Polícia melhor seria chamar o ladrão. Em outras palavras, as garantias constitucionais, como a inviolabilidade de domicílio, estavam sem amparo junto ao Poder Judiciário.

Ainda Adoniram Barbosa, em 1975, na música “Vide verso meu endereço”, de forma poética narra a história de um jovem pobre que ganhou uma cadeira de engraxate e que volta para agradecer ao seu benfeitor e contar sua vida, inclusive que casou e tem três filhos, um de criação. Certamente tirada de um caso verídico, sua relação com o Direito fica por conta da solidariedade, hoje um princípio constitucional (CF, artigo 3º, inciso I). A solidariedade revelou-se de duas formas: a) o personagem que amparou o mais pobre, dando-lhe dinheiro para comprar a cadeira de engraxate; b) o que recebeu a doação, o qual, reconhecido, volta para agradecer e informa que, além dos seus dois filhos, tem outro de criação, prática antiga que dispensava as formalidades da adoção.

Em 1988 Raul Seixas, o genial “maluco beleza”, criou a música “A Lei”, na qual reivindica o direito de todos a fazerem a sua própria lei, pensar, dizer, andar por onde quiser, sem passaporte ou fronteiras. Na verdade, é um hino de liberdade contra a opressão do Estado. Registre-se que esta música certamente nada tinha a ver com o regime militar, pois o Brasil já vivia a democracia.

Ultimamente, algumas músicas no gênero rap ou funk demonstram as novas frentes de conflitos urbanos. O “Rap das armas,” de Cidinho e Doca, cantado no filme Tropa de Elite, do ano de 2007, desfia uma sucessão de armas, como AR15, AK47 e granada, que seriam usadas em conflito pelo domínio de morros no Rio de Janeiro.

Neste particular cumpre, ainda, observar que, vez por outra, atribuem-se a letras de músicas o crime previsto no artigo 287 do Código Penal, apologia de fato criminoso, cuja pena vai de três meses a seis meses de detenção, ou multa. O fato é comentado, com exemplos, por Nilo Luis Ramalho Vieira.[iii]

Como se vê, a música sempre exteriorizou aspectos ligados ao Direito. E as referências foram se alterando à medida que o Brasil e o mundo mudavam. Aprofundar estudos nesta área, através de seminários, artigos ou trabalhos acadêmicos pode ser um prazer e um meio de enriquecimento da cultura jurídica.

 


[i] http://www.ufmg.br/online/arquivos/006573.shtml, acesso 30.12.2010.

 

[ii] Gravada por Fábio Jr., http://letras.terra.com.br/fabio-jr/1591798/, acesso 1.1.2011.

[iii] http://apatrulhadalama.blogspot.com/2010/05/apologia-ao-crime-o-que-e-nilo-luis.html, acesso 1.1.2011.

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