Adeus ao papel

Em 10 anos, Justiça portuguesa será toda digital

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2 de janeiro de 2011, 8h01

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Bravo Serra - Spacca - SpaccaUma década. É este o tempo que vai demorar para que seja possível em Portugal que um processo tramite, do começo ao fim, sem sair do computador. O prazo para a informatização completa do Judiciário português é estimado pelo vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura do país, José Manuel de Sepúlveda Bravo Serra. E a previsão não parece vinda de alguém otimista, mas realista.

O processo de informatização português, à parte todos os percalços, caminha a passos largos. A primeira instância no país já está toda informatizada. Agora, a missão é partir para os tribunais de segunda instância. Bravo Serra, que vive de perto essa mudança, reconhece e enumera os obstáculos: falta estrutura técnica, o sistema de informática ainda é falho e limitado. Por ora, diz, acaba por atrasar o trabalho dos juízes, por exemplo, quando documentos pesados demais travam o computador do magistrado. Mas, para o futuro, com os aprimoramentos, vai permitir muitas melhorias.

A chegada da era digital não significa, pelo menos por enquanto, que as pilhas de processos estão com os dias contados. Bravo Serra conta que há muitos juízes que preferem imprimir e trabalhar com o papel na mão. A tela do computador parece ainda não ter feito muitos fãs.

Bravo Serra, que entrou para a magistratura portuguesa há 40 anos, não está acompanhando só a chegada da tecnologia à Justiça. Ele também viu por dentro outras transformações no Judiciário português. Por exemplo, a mudança do perfil do juiz, de homem do interior para mulher dos grandes centros urbanos. Também tem acompanhado o que ele chama de uma dicotomia entre juiz e advogado. Se, antes, eram amigos ou ao menos colegas, hoje quase não se encontram.

O vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura falou com a Consultor Jurídico na cidade de Évora, em Portugal, logo após o VII Encontro do CSM, no final do ano. Ele foi eleito vice-presidente do Conselho e tomou posse em abril de 2010. Pela lei, o presidente do CSM é necessariamente o presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. Mas, para falar em bom português, é o vice quem põe a mão na massa. Bravo Serra tem 62 anos. De 1989 a 2007, foi juiz do Tribunal Constitucional e hoje está no STJ português.

Leia a entrevista:

ConJur — O processo eletrônico já é realidade em Portugal. A primeira instância da Justiça está praticamente toda informatizada. Quais são os obstáculos que a informatização ainda encontra na Justiça portuguesa?
Bravo Serra — Há uma certa desconfiança por parte dos juízes. Alguns reclamam que não têm que estar a trabalhar numa ferramenta de informática administrada pelo Ministério da Justiça [em Portugal, é o Executivo o responsável pelo processo de informatização do Judiciário]. O Judiciário português é soberano, por isso, a administração da ferramenta de informática deveria estar nas mãos do Conselho Superior da Magistratura. Além disso, falta estabilidade no sistema, que ainda tem limitações de ordem técnica e não responde a tudo que os juízes querem fazer. Muitas vezes, os magistrados querem dar determinado despacho e descobrem que o sistema de informática não permite. Ou seja, escraviza a atividade do juiz. Por conta disso, a informatização não tem dados os resultados tão bons como esperado, mas ainda assim, o Judiciário português é um dos que está mais avançado no continente europeu.

ConJur — Por que o processo eletrônico ainda não chegou aos tribunais de segunda instância? Os juízes mais velhos resistem à tecnologia?
Bravo Serra — Não é falta de vontade. Os meios técnicos ainda não possibilitaram a informatização da segunda instância. Nos tribunais, a maioria dos juízes trabalha da sua casa. Isso significa que a rede ótica de transmissão de dados precisa atingir todo o país. Ainda não há infraestrutura para isso. Mas, quando houver os meios técnicos, certamente a idade dos magistrados mais velhos vai levar a uma maior resistência às novas tecnologias. Tem magistrado, por exemplo, que ainda escreve a decisão com caneta e manda os funcionários digitarem depois.

ConJur — Em quanto tempo vai ser possível um processo começar e terminar todo em meio eletrônico em Portugal?
Bravo Serra — Em até 10 anos, isso vai ser possível. E estou a falar em todas as peças processuais, cível, laboral, família e criminal.

ConJur — O papel vai ser definitivamente abolido do Judiciário português em 10 anos? É isso? O que já está em papel está sendo digitalizado?
Bravo Serra — Não, eles ficam em papel. Só os novos é que já começam em formato digital. Ainda assim, os novos também podem ter um suporte físico, quer dizer, a lei ainda permite que o magistrado imprima o processo. Para os juízes acima de 30 anos, imprimir processo eletrônico é comum, mas serve mesmo só para o manuseio pelos julgadores porque o processo corre em forma digital.

ConJur — Quanto tempo normalmente demora um processo em Portugal, do momento em que chegue à Justiça até a solução final?
Bravo Serra — Depende. Não consigo dar um tempo médio.

ConJur — Mas já dá para saber se a Justiça ficou mais rápida com a informatização da primeira instância?
Bravo Serra — O problema que, neste momento, se está ainda a ter é que o sistema atual não aguenta o suficiente. Quando o juiz abre quatro janelas para ver quatro documentos ao mesmo tempo, se a rede de informática não tem capacidade para aguentar tudo isso, pode travar o computador e o juiz ter de reiniciar a máquina. Aí, o que levaria 10 minutos demora muito mais. A rede interna do Ministério da Justiça ainda não está devidamente equipada para a transmissão de grande fluxo de dados no país inteiro.

ConJur — A morosidade é um problema do Judiciário português?
Bravo Serra — Seguramente que é.

ConJur — Além da informatização, o que mais está sendo feito ou podia ser feito para tornar a Justiça mais rápida?
Bravo Serra Um dos grandes problemas em Portugal é a alteração constante da lei. Para os juízes, fica difícil sedimentar uma jurisprudência quando as regras que se aplicavam num caso já não se aplicam em outro. Muitas vezes, a lei é feita para se adaptar ao que está acontecendo no momento, quando deveria ser feito o contrário: adaptar o caso à lei vigente. As frequentes mudanças dificultam a atividade do juiz. Além disso, Portugal é um país onde se procura muito pela Justiça e os meios alternativos são muito pouco utilizados. Mesmo quando são utilizados, a parte que não fica satisfeita, seja com a mediação ou com a arbitragem, vai para a Justiça reclamar. Ou seja, os meios alternativos funcionam como mais uma etapa no processo.

ConJur — Portugal tem um juiz para cada cinco mil habitantes. É suficiente?
Bravo Serra — Em relação à população, bastaria. Mas, frente ao número de processos, não. Das duas uma: ou há processos demais ou a organização judiciária não está adequada. Há países na Europa que a relação juiz por habitante é inferior a Portugal e a Justiça funciona.

ConJur — Há algum projeto para aumentar o número de juízes?
Bravo Serra — O Conselho Superior da Magistratura defende que seja feito um estudo objetivo, coerente e ponderado para saber qual o número ideal de processos por juiz. Não é fácil porque também tem de ser levada em consideração a complexidade dos processos e as circunstâncias. Um processo no norte do país não é igual a um processo no sul, um no interior não é igual a outro no litoral. Não é a mesma realidade. De posse de um estudo desses, é possível fazer uma distribuição melhor dos processos pelos juízes portugueses.

ConJur — Há alguma fiscalização em cima dos juízes para saber se estão trabalhando direito?
Bravo Serra — Temos alguns inspetores, mas não é suficiente. O ideal seria que houvesse linhas de comunicação direta entre os tribunais e o Conselho Superior da Magistratura para que eu pudesse, do meu computador, a qualquer momento, saber qual a situação atual de determinado tribunal. Isso depende também do aprimoramento do sistema de informática. Quando isso for possível, o Conselho vai poder traçar um panorama das atividades dos tribunais e dar respostas mais rápidas aos problemas.

ConJur — Qual é o perfil do juiz português?
Bravo Serra — O juiz português médio hoje já não é mais o mesmo de décadas atrás. Há uns 20 anos, ele era alguém de classe média superior, homem do interior do país, que saía de uma das duas faculdades de Direito no país: Coimbra ou Lisboa. Hoje, há 18 faculdade de Direito em Portugal. Houve uma explosão da oferta de licenciados em Direito e o mercado não consegue absorver tudo. Os concursos para a magistratura chegam a ter mais de dois mil candidatos. Quer dizer, a variedade hoje é muito maior e é difícil dizer qual é o perfil do magistrado português, mas mais da metade dos julgadores recém-chegados é formada por mulheres.

ConJur — E como se explica esse aumento de mulheres no Judiciário português?
Bravo Serra — Dou duas explicações. Uma delas é que as mulheres têm mais afinco quer na faculdade quer na preparação para o concurso. A outra é que estamos num país em que a mulher quer ter a sua própria vida.

ConJur — Como é a relação dos juízes com os advogados?
Bravo Serra — Não há regras escritas que dizem que o juiz têm que receber o advogado. O que há é uma regra de bom costume que os dois lados têm de se tratar com cordialidade. Sou magistrado há 40 anos. Antigamente, nenhum advogado deixava de passar pelo gabinete do juiz para cumprimentá-lo quando ia até o tribunal fazer alguma diligência. Hoje em dia, lamentavelmente, está havendo uma dicotomia entre magistrado e advogado. Não há esforços dos juízes para atender os advogados e nem dos advogados para procurar os juízes. Isso causa não diria um mal-estar, mas certamente menos bem-estar. Por isso, para o último congresso do CSM, convidamos advogados para palestrar. É uma tentativa de melhorar essa relação.

ConJur — Quantos advogados há em Portugal hoje?
Bravo Serra — Houve uma explosão do número de advogados no país. Há mais de 20 mil para uma população de 10 milhões de habitantes. É mais do que o suficiente.

ConJur — Recentemente, começou a se discutir cortes nos salários dos juízes para ajudar Portugal a diminuir a dívida pública. No Brasil, cortes salariais na magistratura são proibidos por lei. E em Portugal?
Bravo Serra — Aqui, não. Mas houve uma recente recomendação do Conselho da Europa dizendo que os subsídios dos juízes não podem ser reduzidos. É uma recomendação objetiva, e não um mero ponto de vista corporativo. Oxalá ela seja considerada pelo Executivo e Legislativo.

ConJur — Além da discussão sobre corte salariais, de quais outras maneiras a crise econômica na Europa atingiu o Judiciário português?
Bravo Serra — Ainda hoje, o Judiciário sofre com a crise, ainda mais porque ela chegou justamente quando a Justiça passava por uma evolução tecnológica. Impediu a aquisição de suporte técnico e humano. A própria lei da nova organização judiciária, que tem três anos, ainda não pode ser toda implementada porque comporta custos muito elevados. A crise também levou mais lides para a Justiça, principalmente no juízo laboral e de execução de dívidas. Tudo isso tem um reflexo negativo. É certo que, se a Justiça não der respostas para tudo isso, estará a contribuir para piorar a situação. É um nó que vai crescendo.

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