Índio indiciado

Denúncia contra índio deve trazer laudo antropológico

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28 de fevereiro de 2011, 16h21

Deve ser comprovado por meio de perícia antropológica que o índio indiciado conhece o caráter ilícito das ações supostamente criminosas que praticou. Caso contrário, a denúncia não é recebida. A decisão é da 1ª Vara Federal em Bauru, que rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra dois índios da reserva Araribá, em Avaí (SP).

Para o juiz federal Roberto Lemos dos Santos Filho, o fato de os índios adotarem práticas da cultura preponderante, como uso de telefone celular e de automóveis, não é suficiente para provar que eles tinham conhecimento de que a conduta atribuída a eles no caso, cárcere privado era ilícita.

"Da análise dos elementos colhidos no bojo do inquérito que embasou a denúncia em parte reproduzida, reputo de todo inviabilizada a instauração de Ação Penal, à míngua de condição de procedibilidade atinente à prova do efetivo conhecimento por parte dos índios indiciados do caráter ilícito das ações que praticaram, o que somente seria possível aferir mediante a realização de perícia antropológica", afirmou o juiz em sua decisão.

De acordo com ele, o MPF descartou o laudo antropológico por considerar que os índios já estão "incorporados à comunhão nacional", por terem adotado costumes de "não indígenas". Essa análise foi feita com base no testemunho das vítimas e dos próprios denunciados, que afirmaram que um dos índios sabe ler e escrever, possui habilitação e conta bancária, é proprietário de telefone celular, foi filiado a partido político por 11 anos, já se candidatou ao cargo de vereador de Avaí e foi nomeado para ocupar o cargo em comissão de chefe da coordenação técnica local da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Bauru. Também foi dito que o outro índio é aculturado e titular de cargo eletivo.

O juiz considerou que os argumentos do MPF para descartar o laudo foram fundamentados na visão etnocêntrica e integracionista, "que tratava os índios como categoria fadada ao desaparecimento", baseado na premissa de que não deve haver políticas de âmbito cultural e social para determinadas minorias étnicas. Porém Santos Filho destacou que a Constituição, no seu artigo 231, reconhece a diversidade étnica e cultural do Brasil, estabelecendo respeito à cultura, aos valores determinadores do comportamento do grupo minoritário.

"Em razão da diversidade cultural assegurada pela Constituição, compreendo imprescindível a realização de perícia antropológica para precisa apuração de os indígenas que realizaram as condutas descritas na denúncia terem, de forma efetiva, conhecimento do caráter ilícito e ilegítimo das ações perpetradas, providência essa que não foi adotada."

Ação e reação
A decisão destaca que há provas que demonstram que a conduta imputada aos índios cárcere privado foi praticada como meio de chamar a atenção das autoridades, em razão do não atendimento pela Funai de reivindicações sobre a mudança da sede da autarquia de Bauru para Itanhaém. Em depoimento, um dos indiciados chegou a afirmar que pediu a colaboração dos servidores para que pudessem chamar a atenção da direção da Funai em Brasília e que o movimento foi desencadeado pelo fato dos indígenas estarem insatisfeitos com a administração da entidade, uma vez que, há anos, se julgam "manipulados" pela autarquia. Segundo o índio, a Funai vem prometendo resolver a situação da tribo, mas não tem cumprido suas promessas.

Nesse contexto, Santos Filho considerou que deve ser considerados os hábitos da etnia dos acusados. "E tais elementos somente poderiam ser apurados mediante a prévia realização de estudo antropológico." Ele citou Luiz Fernando Villares, que, na obra Direito e Povos Indígenas, afirma que "as ações praticadas por indígenas devem ser questionadas frente ao condicionamento cultural que o impossibilita de compreender a norma penal e seu alcance. Ou seja, uma conduta que é penalmente reprovada, através da figura do crime e de sua punição, pode ser interiorizada na cultura indígena como ato obrigatório ou mesmo um ato lícito, que reside na esfera da liberdade individual, ou mesmo um ato moralmente tolerado".

Ao final, o juiz considerou que para que seja autorizada a instauração da Ação Penal, é necessária a prévia realização de estudo antropológico, "único instrumento hábil a aferição do potencial conhecimento dos indiciados acerca da ilicitude das condutas adotadas". Dessa forma, ele rejeitou a denúncia ofertada em desfavor dos dois índios.

Estatuto do índio
A nova proposta do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), em tramitação no Congresso, prevê a exigência do laudo antropológico pelo juiz, para que avalie o modo como um ato criminoso é visto dentro da cultura de quem o praticou. O laudo já é pedido em alguns casos, mas ainda não é obrigatório.

Com isso, cai por terra a condição inimputável do indígena, pois, caso o laudo demonstre que ele já se inseriu na cultura predominante, ele poderá ser julgado pela Justiça Federal. O novo texto do estatuto diz ainda, no capítulo da criminalização, que, quando o ato for praticado entre índios, é preciso respeitar a decisão da própria comunidade, que pode aplicar alguma punição ou mesmo inocentar o acusado. Pelo documento, ainda que o caso vá aos tribunais, o juiz pode entender que a pena aplicada é suficiente e, assim, não emitir qualquer sentença.

O caso
De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, durante manifestação da reserva Araribá, dois índios fizeram de refém três servidores da então administração regional da Funai na noite do dia 20 de maio de 2008 até as 19 horas do dia 22 do mesmo mês.

Os índios reivindicavam a nomeação de um representante indígena para o cargo de administrador regional da Funai em Bauru e a manutenção da sede na cidade. A direção da autarquia em Brasília decidiu transferir a regional para o litoral de São Paulo. Consta dos autos que a manifestação se iniciou por volta das 9 horas do dia 20. Os índios bloquearam os dois sentidos da rodovia Comandante João Ribeiro de Barros, a rodovia Bauru-Marília, na altura do quilômetro 381, com um trator e troncos de árvores.

As Polícias Federal, Rodoviária e Militar, além de servidores da Funai, foram chamadas para negociar, até que a pista foi liberada. No entanto, a manifestação continuou na reserva Araribá, nas aldeias Tereguá e Kopenoty. Três servidores da Funai foram intermediar um acordo. Por volta das 15 horas, os funcionários leram um fax emitido pela Funai de Brasília, o que provocou o descontentamento dos índios.

Os manifestantes, então, pediram aos servidores que permanecessem no local até que viesse uma resposta adequada de Brasília. Como a resposta não chegava, os índios afastaram os servidores dos policiais militares que estavam no local e os encarceraram por dois dias, segundo a denúncia do MPF. Os três servidores teriam relatado que foram mantidos na reserva contra vontade e que sofreram ameaças dos índios. A manifestação só teve fim por volta das 19 horas do dia 22, quando a presidência da Funai enviou uma carta autorizando o deslocamento de 12 lideranças indígenas da reserva para Brasília, para tratar sobre a administração regional da autarquia.

Ao ser interrogado, um dos índios afirmou que os servidores estavam apenas colaborando com os indígenas, na tentativa de chamar a atenção da administração da Funai. Ele também assumiu que os funcionários foram impedidos de sair do local e que as tribos fizeram a "dança da guerra", na qual colocaram uma das vítimas no centro da roda dos índios, que usavam armas artesanais, entre elas arco-flecha, burdunas e lanças.

O MPF alegou na denúncia que os reféns foram coagidos com as armas e, embora não tenha ocorrido violência física, houve violência moral e psicológica devido às ameaçadas. No entanto, não apresentou o laudo antropológico, considerado imprescindível pelo juiz federal para que a denúncia fosse aceita.

Clique aqui para ler a decisão.

Autos 0005381-95.2008.403.6108

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