Crimes virtuais

Google só é responsável quando não ouve denúncia

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26 de fevereiro de 2011, 9h28

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No ambiente da rede social Orkut podem ser identificados ao menos dez tipos penais. "Nós temos, por exemplo, casos de pedofilia, racismo, ameaças contra a integridade física da pessoa, calúnia, injúria e difamação", enumera o especialista em Direito da Tecnologia da Informação Alexandre Atheniense, do Aristoteles Atheniense Advogados. Apesar da profusão de crimes, muitas vezes, a certeza sobre quem seria — e, até, se haveria — o responsável pelo conteúdo postado no site leva os tribunais do país a tomarem decisões desencontradas.

A Google Internet Brasil, que é mantenedora do Orkut, foi recentemente eximida da responsabilidade do conteúdo postado no site. O pedido foi levado pelo próprio provedor ao Superior Tribunal de Justiça. A análise da questão coube à 3ª Turma que, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, entendeu que a responsabilidade da Google deve ficar restrita à natureza da atividade desenvolvida por ela no site.

A decisão do STJ caminha na contramão do que vêm decidindo a maior parte dos tribunais do país, onde a Google é, decisão após decisão, considerada como responsável por tudo que é postado no Orkut. Atheniense tenta explicar a discrepância: "A íntegra da decisão ainda não foi publicada. O que eu sei pela notícia do site [do STJ] é que a pessoa entrou com um pedido de filtro no site para excluir todo menção ao nome dela". Assim, o colegiado entendeu que a Google não teria como controlar o material postado na rede social por um simples motivo: monitorar, de antemão, o que entra e o que não entra vai contra a transmissão de dados em tempo real, um dos atrativos da rede.

A Google se justifica, nesses casos, dizendo que apenas hospeda o conteúdo. Atheniense conta que, quando a Google Internet Brasil se instalou no país, a linha de defesa adotada foi a do "não tenho nada a ver com isso". Para se defender, dizia que possuía responsabilidade apenas sobre os links patrocinados que são encontrados no site.

A realidade mudou quando foi instaurada a CPI da Pedofilia, encerrada em dezembro de 2010, depois de três anos de investigações. As mais de 1,9 mil páginas do relatório final apontaram casos de exploração sexual de podófilos contra crianças e adolescentes. Os criminosos agiam, por meio da internet, de estados como Bahia, Pará, Roraima, Amazonas, Alagoas, São Paulo Goiás, Espírito Santo e Piauí. Atheniense lembra que foram localizadas 300 comunidades no Orkut cujos integrantes eram pedófilos. O cerco então fechou.

O controle e o lucro
O advogado conta que o seu escritório venceu a Google em todos os casos sobre o tema até o momento. Ele explica, porém, que a própria Google dificulta a ponte entre site e usuário: "É um processo unilateral". O sistema de denúncia do provedor funciona com o preenchimento de um formulário. O problema, aponta, é que o autor da queixa não recebe qualquer tipo de feedback. "Mais pra frente, a Google pode dizer, simplesmente, que a pessoa não entrou em contato. O sistema é falho", esclarece.

Foi esse caminho que uma universitária de São Paulo tomou quando ficou sabendo que o seu perfil havia sido clonado. Na nova página foram incluídas mensagens e fotos pornográficas. Embora tenha entrado em contato com o sistema de denúncias da Google, nada foi feito, explica o defensor da causa, o advogado Edson Mazieiro, do Paulo Roberto Murray Advogados. O perfil falso permaneceu no ar por 40 dias e a estudante conseguiu uma indenização de R$ 50 mil por danos morais.

Na decisão liminar, o juiz de Direito Rogério Murillo Pereira Cimino, da 28ª Vara Cível de São Paulo, escreveu que "é incontroverso que a conduta — criação da página de conteúdo reprovável — não foi praticada pela ré. Entretanto, a ré é detentora da atividade empresarial, com a qual obtém lucro".

O advogado Alexandre Atheniense também lembra de um caso no qual a retirada do conteúdo do site se arrastou por muito tempo. Ele conta que, em um caso de perfil clonado e com a decisão judicial já em mãos, a Google demorou 30 meses para fornecer os dados do Internet Protocol, o IP — número pelo qual é possível saber onde o internauta está. "Nesses casos", opina, "o provedor é responsável porque, além de dar suporte para que o crime seja praticado de forma contínua, ainda não permitiu que a Justiça tivesse acesso aos dados".

"Se a Google fosse tão zelosa como alega ser, no dia seguinte à denúncia o conteúdo seria retirado do ar. Mas não é isso que acontece", lembra Atheniense. O que acontece, conta, é que o material só é proibido caso a pessoa entre na Justiça. O escritório que defende a empresa, o Barretto Ferreira, Kujawski, Brancher e Gonçalves — Sociedade de Advogados, disse que não pode se manifestar sobre o assunto.

"O padrão de responsabilidade é sempre baseado na culpa do servidor no caso concreto", explica o juiz da 32ª Vara Cível de Recife Demócrito Reinaldo Filho, que também é diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Informática. Isso significa dizer que o servidor só responde "quando é comunicado sobre o problema, mas não toma providências e permanece na inércia".

Direito e tecnologia
O panorama, no entanto, nem sempre foi esse, como explica o juiz. As primeiras decisões culminaram, na maior parte das vezes, na condenação da Google. Ele explica que "aos poucos foram surgindo as decisões em sentido contrário, antenadas com a jurisprudência estrangeira de que o provedor só é responsável pelo conteúdo que hospeda se recusar a identificar o ofensor direto do ato ou se demonstrar negligência na adoção de providências para cessar os efeitos do ato".

Lá fora, a Google vem sendo eximida de toda e qualquer responsabilidade sobre os conteúdos postados. "Se formos pensar, é natural que seja assim. As grandes empresas de tecnologia, como a Google e a Microsoft, estão nos Estados Unidos", lembra Reinaldo Filho. Tendo isso em vista e sob o pretexto de não congelar o desenvolvimento tecnológico — o chamado chilling effect —, as cortes decidiram por não responsabilizar os servidores.

De acordo com o juiz, o acórdão mais recente do STJ está em sintonia com o que vêm decidindo os tribunais do exterior. "Até que tenhamos leis regulamentando o assunto, o novo aresto do STJ pode servir como norte em futuras questões que envolvam a definição de papéis e responsabilidades dos agentes intermediários da cadeia de informação", acredita.

A fiscalização
Não há uma legislação específica para os crimes cometidos pela internet. Na rede, o que vale ainda é o Código Civil, o Código Penal e o Código de Defesa do Consumidor. "A legislação que temos é suficiente para dar conta do problema", entende Atheniense. Mas, o advogado faz a ressalva de que é preciso tipificar criminalmente condutas que hoje não estão previstas na legislação penal, como o acesso não autorizado a sistemas de redes e o estelionato virtual.

A Comunidade Europeia não foge à tendência. O bloco editou a diretiva "ausência de obrigação geral de vigilância". Pelo texto, os provedores não são responsáveis pelo controle das informações postadas por terceiros que venham a ser transmitidas ou armazenadas.

O juiz Reinaldo Filho, no entanto, não acredita que essa seja a melhor saída. "Os provedores colocam à disposição sites de extrema importância social e nos quais as pessoas podem inserir informações instantaneamente, mas não há um cadastro que possibilita a responsabilização do usuário. Se uma pessoa é ofendida e ninguém é responsabilizado, isso não coaduna com o sistema jurídico brasileiro. Havendo prejuízo, alguém tem que pagar. Nós precisamos harmonizar a jurisprudência", defende.

Assim como Reinaldo Filho o advogado Rony Vainzof, sócio do escritório Opice Blum, afirma que o provedor só deve responder quando não toma nenhuma atitude frente à denúncia. O advogado aponta outra influência na formação da jurisprudência dos EUA: a Primeira Emenda à Constituição do país, que estabelece a liberdade de expressão.

Para o especialista em Direito Eletrônico, a legislação atual precisa de pequenos ajustes quanto à pena. "Por ser um crime permanente", conta, "a pessoa pode ser presa inclusive em flagrante".

Uma decisão também recente dos tribunais brasileiros toca no ponto do controle prévio de conteúdo que, segundo o juiz Demócrito Reinando Filho, é "incompatível com nossa realidade atual". O juiz da 1ª Vara Cível de Foz do Iguaçu considerou improcedente o pedido de indenização de uma pessoa física contra a Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda. por um vídeo difamatório postado no YouTube. Para o juiz, o site não responde por conteúdo nele postado, já que a fiscalização seria impossível. No dia do julgamento, o vídeo já havia sido retirado do ar pela Google.

Mas o que deve ser feito quando o dano existe, de fato, e o provedor é declarado isento da responsabilidade? A especialista em Direito Eletrônico e Criminal Gisele Truzzi, chama a atenção para a necessidade de aplicar o meio termo aos casos. A melhor opção, acredita, seria o emprego da responsabilidade solidária em detrimento à responsabilidade objetiva e à isenção de responsabilidade.

"Essa é uma escolha mais equilibrada e é muito utilizada nos Estados Unidos", conta. A partir desse prisma, o usuário tem que comprovar o nexo de causalidade entre o provedor de hospedagem e o dano causado, de modo a evitar uma "indústria do dano moral".

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