Abuso policial

Operadores do Direito repudiam revista em ex-escrivã

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26 de fevereiro de 2011, 9h41

O caso da escrivã de Polícia que, algemada, teve a roupa arrancada na frente de policiais e delegados causou indignação e, no meio jurídico, tem sido objeto de vários artigos e notas de repúdio à ação policial. Advogados, juízes, promotores, todos ficaram chocados com a truculência e a série de irregularidades cometidas por agentes da própria Corregedoria da Polícia Civil, que deveriam dar o exemplo e fazer cumprir a lei.

A revista da escrivã decorreu de uma suspeita de que ela havia recebido propina. No vídeo, que foi parar no YouTube, o delegado pede que a moça tire a roupa para ser revistada, ao que ela se recusa. Diante dos insistentes pedidos para que uma policial feminina faça a revista, o delegado responde que a moça está dificultando seu trabalho ao resistir em ficar nua na frente de outros homens. Por fim, ela é agarrada e despida à força. Dentro de sua calcinha são encontrados R$ 200 em quatro notas de R$ 50.

“Não há como justificar aquilo”, disse o promotor Rodrigo Octavio De Arvellos Espínola, do Ministério Público do Rio de Janeiro, em relação à ação policial. Na sua opinião, se de fato ela cometeu um crime, qualquer prova que pudesse levar a uma condenação ou mesmo a uma sanção administrativa da escrivã foi invalidada devido ao modo como foi obtida. “Os policiais, que haviam sido chamados para uma ocorrência de pouquíssima complexidade cometeram um crime, destruíram a prova e ainda demonstraram total despreparo.”

Para o promotor, o vídeo mostra como não se deve atuar nesses casos. Outra coisa que chamou a atenção foi a ação ter sido gravada. “É muito raro ver em vídeo um exemplo sólido da obtenção ilícita de uma prova”, diz.

De fato, os flagras de arbitrariedades, embora cada vez mais comuns devido às câmeras de segurança dos prédios ou de testemunhas que filmam pelo celular, são mais conhecidos por relatos do que propriamente por imagens. Mas foram relatos que levaram policiais a responderem a uma ação penal há alguns anos no Rio de Janeiro. Abordados como suspeitos de um crime, dois rapazes foram obrigados a se beijar, segundo acusaram os jovens. Os policiais foram denunciados pelo MP por constrangimento ilegal. Na época, houve proposta de transação penal.

Para o juiz Rubens Casara, também do Rio de Janeiro, é justamente o fato de atitudes autoritárias estarem naturalizadas que leva as pessoas a praticarem atos visualmente abusivos, e não se darem conta do abuso que estão cometendo. “A naturalização de arbitrariedades encobre perversões de todo tipo”, diz.

A própria sociedade costuma respaldar abusos quando o objetivo é punir alguém que cometeu um crime, como se os fins justificassem os meios. É fácil constatar isso nas redes sociais e em comentários feitos por leitores nas notícias publicadas na internet. “Os problemas das pessoas na análise [do caso] da ex-escrivã é que todos, principalmente as mulheres, analisam de forma emocional sem ver o mérito”, diz um no microblog Twitter. “Não se sentiu ladra também? Foi abuso, mas foi a mocinha que se colocou na situação”, disse outro ao comentar a declaração da escrivã de que se sentiu um lixo. “Esse caso da escrivã está enchendo, se ela roubou tem mais é que ser revistada mesmo e ser tratada como uma ladra como todo mundo que rouba”, comenta outro.

É claro que não é preciso ter conhecimentos jurídicos para também se indignar com a abordagem policial. Muitos utilizaram as redes sociais para repudiar a ação. Uma internauta diz que não entende nada de leis, mas que se sente ofendida com o caso. “Eu já fiquei revoltado com atitudes policiais autoritárias, mas essa de despir a escrivã superou todas. Inadmissível”, afirmou outro.

No meio jurídico, a reação veio em massa. O advogado Christiano Fragoso, membro do Instituto dos Advogados do Brasil, apresentou uma proposta de moção de repúdio, que será analisada na próxima quarta-feira (2/3) pelo plenário da entidade. Segundo ele, o valor sacrificado ao se permitir aquilo é muito mais importante do que a repressão ao crime do qual a escrivã era suspeita de ter cometido. “Houve uma violação flagrante da dignidade humana”, afirmou. “É a coisa mais absurda que já vi na minha vida.”

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa divulgou nota de repúdio à ação policial. “Um Estado democrático e consciente da necessidade de erradicação da corrupção deve, antes de mais nada, respeitar direitos individuais e jamais praticar arbitrariedades nem tampouco com elas compactuar”, diz nota assinada pela presidente do IDDD, Marina Dias.

Nos jornais, sites e blogs, pipocaram artigos sobre o caso. Na ConJur, foram publicados três artigos, dos advogados Arnaldo Malheiros Filho, Luiz Flávio Gomes e Thiago Gomes Anastácio. Arnaldo Malheiros Filho lembrou que a prova obtida pelos policiais é nula. “Não há a menor dúvida quando à ilicitude da prova colhida da maneira exibida no vídeo, o que a torna inadmissível no processo, como diz o inciso LVI do artigo 5º da Constituição. Ou seja, além de desrespeitar ilegalmente uma pessoa, os policiais envolvidos na operação anularam a prova que, se obtida por meios lícitos, poderia levar à condenação da servidora”, disse no artigo.

Nos blogs, vários operadores do Direito demonstraram indignação. “Poucas vezes fiquei tão indignado com uma ação policial. Os ‘corajosos e destemidos’ delegados que despiram na marra a escrivã V. F. S. L. produziram cenas tão vis e abjetas que me fizeram ter pena de uma suposta corrupta”, escreveu o procurador da República Vladimir Aras, em seu blog.

O caso da escrivã aconteceu em 2009. Nesta semana, a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital vai investigar se houve ilegalidade. O objetivo da investigação é apurar possíveis atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública. O Ministério Público já havia se manifestado pelo arquivamento do inquérito policial instaurado para apurar abuso de autoridade no caso. O inquérito foi arquivado pelo juiz.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo decidiu afastar da Corregedoria da Polícia Civil os dois delegados suspeitos de abuso de autoridade na prisão da escrivã. A corregedora-geral da Polícia Civil, Maria Inês Valente, que teria apoiado a conduta dos agentes, também foi afastada.

Leia a íntegra da nota do IDDD:

MANIFESTAÇÃO DE REPÚDIO

Diante das recentes notícias veiculadas na imprensa, exibindo brutal violência policial com violação da letra da lei e de Súmula Vinculante do STF, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD vem a público manifestar seu repúdio às atitudes que, a qualquer pretexto, atentem contra os princípios da dignidade humana, do devido processo legal, da ampla defesa e do respeito à condição feminina, alertando quanto à completa invalidade da prova colhida ilicitamente.

Não pode o Poder Público, sob a alegação de apurar e combater eventuais atos de improbidade de seus agentes, vilipendiar garantias constitucionais do cidadão. Um Estado democrático e consciente da necessidade de erradicação da corrupção deve, antes de mais nada, respeitar direitos individuais e jamais praticar arbitrariedades nem tampouco com elas compactuar.

O que a sociedade aguarda é que, em demonstração de que o que ocorreu foi inaceitável, a apuração de responsabilidades dos envolvidos seja feita em procedimento legal e com absoluto respeito ao direito de defesa.

Marina Dias

Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD

Leia a proposta de moção de repúdio do IAB:

PROPOSTA DE MOÇÃO

Excelentíssimo Presidente,

A Rede Bandeirantes de Televisão e, em seguida, outros meios de comunicação de massa noticiaram, nos últimos dias, o caso da escrivã de polícia do 25.º Distrito Policial de São Paulo que, sendo objeto de uma investigação por suposta prática de crime de corrupção passiva, foi, a pretexto de uma busca pessoal, algemada e despida à força por Delegados de Polícia da Corregedoria de Polícia Civil de São Paulo, na frente de vários outros homens.  Tal busca foi filmada, em imagem e som, pelos próprios executores da medida.  O vídeo se encontra no site Youtube e mostra a agonia da escrivã, que apelava, muitas vezes, aos gritos, para que a revista fosse procedida por policiais femininas e que não fosse filmada.   

Por mais grave que possa ser uma acusação de corrupção, nada justifica, num Estado Democrático de Direito, uma tal violação à intimidade e à dignidade da pessoa humana, enfim aos mais comezinhos e basilares direitos humanos fundamentais, reconhecidos pela Constituição Federal.

Causa ainda maior estranheza o fato, também noticiado pelos meios de comunicação, de que o procedimento investigatório iniciado para apurar abuso de autoridade por parte dos executores da medida teria sido arquivado pelo Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público.

O Instituto dos Advogados Brasileiros, como instituição tradicionalmente ligada à defesa da ordem jurídica, não pode deixar de expressar seu veemente repúdio a tamanha ofensa a princípios fundamentais de justiça e de democracia.

Requeiro seja oficiado ao Ministério da Justiça, ao Sr Governador, Procurador Geral de Justiça e Presidente do Eg Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Plenário do IAB, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 2011

Christiano Fragoso

Membro Efetivo, integrante da Comissão Permanente de Direito Penal.

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