Prática arbitrária

Caso da escrivã despida à força viola Direitos Humanos

Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983) juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Fundou a rede de ensino LFG.

25 de fevereiro de 2011, 14h44

Está comprovado: no Brasil nem toda nudez é castigada. O vídeo dos delegados de polícia que obrigaram uma mulher suspeita — de corrupção ou concussão — a ficar nua na presença deles para o efeito de uma busca pessoal é estarrecedor. Onde chega a arbitrariedade?

O crime de corrupção é grave e precisa ser devidamente punido. Mas a polícia não pode apurar um crime cometendo outro. Muito correta e digna de elogios a cobertura da TV Bandeirantes. Tributo ao jornalista Fábio Pannunziom, que divulgou o vídeo no seu blog. Os delegados foram afastados das suas funções.

A lei processual penal, em seu artigo 249, é clara: a busca pessoal em uma mulher deve ser feita por outra mulher, salvo em caso de retardamento ou prejuízo para a diligência. Havia mulheres no local — policiais — e mesmo assim os delegados optaram por despir, à força, a mulher. Prova — se é que se pode chamar aquilo de prova — totalmente ilícita, porque obtida de forma ilegal — com violação, desde logo, do artigo 249 do CPP. O vídeo constitui um exemplo emblemático de como não se deve colher provas no Brasil.

No princípio o delegado disse que se ela não se despisse haveria desobediência. Nada mais incorreto. Quem desobedece ordem ilegal não comete o crime de desobediência. De outro lado, esse crime não permite prisão em flagrante (porque se trata de infração de menor potencial ofensivo). Tampouco poderiam ser usadas as algemas — no contexto em que tudo aconteceu. Violou-se também a Súmula Vinculante 11 do STF.

Com a mulhe, ex-escrivã de polícia, teria sido encontrado R$ 200,00. Mesmo que esse dinheiro fosse fruto de uma corrupção passiva, ou concussão, mesmo assim, crime nenhum estava sendo cometido naquele momento. Não cabia prisão em flagrante, portanto. O abuso de autoridade está mais do que evidenciado. Também a tortura para a obtenção de prova.

O juiz, a pedido do Ministério Público, arquivou o caso. Não vislumbraram nenhum delito. Com a devida vênia, se equivocaram redondamente. As corregedorias respectivas deveriam apurar tudo isso com prudência e equilíbrio. Também deveriam entrar em campo o CNJ e o CNMP, além da OAB.

Todas as vezes que o Estado transforma um criminoso — ou suspeito — em vítima, por meio do abuso e da arbitrariedade, nasce mais uma violação de direitos humanos. Ou seja: mais um ato de violência. Violência que, nesse caso, foi ignorada pela Corregedoria da Polícia Civil, pelo Ministério Público e pelo juiz. Nem toda nudez é castigada.

A vítima de toda essa violência, ainda que seja um criminoso, tem todo direito de ingressar com Ação Civil reparatória contra o Estado, sobretudo quando afetada de modo profundo sua dignidade humana. E se não atendida no Brasil, tem portas abertas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a mesma que já “condenou” o país várias vezes, no Caso Maria da Penha e no Caso dos Presídios do Espírito Santo, por exemplo.

Mas por que tudo isso ainda acontece no Brasil? Três fatores se destacam:

(a) cultura da violência. O Estado brasileiro já nasceu sob a égide de um genocídio e até hoje ainda não sabe o que é razoabilidade, vida em paz e respeito ao outro. Vigora ainda entre nós, especialmente contra os discriminados étnicos, sociais e econômicos, a cultura da violência. Margens de ilegalidade e de arbítrio algumas autoridades se concedem — um pouco ou uma grande quantidade de dor, certa dose de humilhação bem como maus-tratos. O genocídio e a tortura fazem parte da história do Estado brasileiro. Os governantes fazem discursos dúbios. Preocupa-se mais com o vazamento do vídeo, que com o ato de tortura em si.

A tortura padronizada nas delegacias e nas prisões faz parte da política estatal ambígua, de guerra civil permanente, de todos contra todos, praticada desde 1500, com a conivência de grandes setores do Ministério Público e da Magistratura, que fecham os olhos para gritantes violações de direitos humanos — das vítimas dos criminosos assim como das vítimas da violência estatal. Com a garantia da impunidade. Isso não retrocede, ao contrário, só incrementa a guerra civil brasileira de todos contra todos.

(b) ausência das disciplinas Ética e Direitos Humanos: falta, sobretudo para muitos agentes da maquina repressiva (muitos não são todos), estudar Ética e Direitos Humanos, que constituem a base da cultura da não violência.

(c) cultura da impunidade: Mesmo quando vídeos são gravados, ainda assim, sabe-se que tudo será (muito provavelmente) arquivado pelo Poder Jurídico. O inquérito que apurou a violência aqui narrada foi arquivado. Os delegados foram afastados “porque o caso ganhou repercussão nacional”.

O sistema investigativo no Brasil está falido. Oitenta e seis mil inquéritos policiais, sobre homicídio, instaurados até 2007, acham-se praticamente parados. É preciso apurar com precisão tudo que ocorreu, porque alguma hierarquia pode estar por detrás do fato. Mas quando a ordem é manifestamente ilegal todos respondem: quem deu a ordem e quem a cumpriu.

Autores

  • é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes.

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