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Julgados sobre a responsabilidade dos provedores

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20 de fevereiro de 2011, 8h53

Recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, parece ter criado verdadeiro “leading case” na jurisprudência brasileira sobre a questão da responsabilidade civil dos intermediários da comunicação informática. O julgado acatou a tese de que os provedores de serviço na Internet não podem ser responsabilizados por material informacional ilícito que transitam em seus sistemas, quando produzidos diretamente por seus usuários.

A tarefa de determinar a extensão ou limites da responsabilidade dos agentes nas redes de comunicação eletrônica sempre foi extremamente difícil, diante das peculiaridades de como ocorrem as interações sociais nos ambientes e espaços virtuais. Nem sempre elas se estabelecem da mesma forma ou guardando exata correspondência com os ambientes físicos ou mesmo com os contextos dos meios de comunicação tradicionais (televisão, rádio, imprensa escrita etc.), daí a dificuldade de fazer o enquadramento jurídico dessas situações, por não termos um corpo de leis definindo a responsabilização dos agentes intermediários na transmissão, publicação e armazenamento de mensagens e arquivos de dados.

Diferentemente de outros meios tradicionais de comunicação, na Internet nem sempre o operador ou controlador de um site, de um blog ou de um canal de chat é quem publica a informação. A sua posição é diferente de um editor de mídia tradicional, que geralmente tem o completo controle sobre o conteúdo que divulga em seu veículo de comunicação. Em face do trabalho que empreende, está em condições de examinar previamente o conteúdo da informação e, assim, decidir se a publica ou não. Diz-se que tem o controle editorial sobre a informação. Desse poder de controle, decorre a responsabilidade pela publicação de informações danosas. A pressuposição é de que, se decide publicar alguma coisa, é porque tem conhecimento da natureza da informação publicada. Por essa razão, responde solidariamente com o fornecedor da informação, ao levá-la ao conhecimento do público.

Os prestadores de serviços na Internet, como os mantenedores de sites de relacionamento, de fóruns eletrônicos de discussão e de canais de chat nem sempre têm esse mesmo poder sobre o conteúdo das informações que transitam em seus sistemas, por causa das tecnologias que empregam. Simplesmente permitem que mensagens, fotos e vídeos sejam postados instantaneamente, em espaços (virtuais) que fornecem em seus sistemas para que o usuário (internauta) por sua própria conta e iniciativa edite (publique) a informação. Para exemplificar, tomemos o sistema do site de relacionamento Orkut, por ser bastante popular e de utilização disseminada no Brasil. Nos seus subespaços, qualquer usuário pode criar um perfil ou comunidade e publicar a informação que desejar, sem controle (editorial) prévio da empresa que mantém esse serviço (a Google). Da forma como o sistema foi criado e funciona, o operador não tem como examinar previamente o conteúdo das mensagens antes de sua publicação. Em conseqüência, se convencionou que não pode ter o mesmo padrão de responsabilidade do editor de mídia tradicional.

Foi nesse sentido que se construiu e evoluiu a jurisprudência alienígena. No caso Cubby, Inc. v. CompuServe, um dos primeiros julgados sobre difamação na Internet (em 1991), a Corte Distrital de Nova Iorque concluiu que o provedor não teve oportunidade de rever o conteúdo da publicação antes dela ser enviada para o seu sistema, daí que não podia ser responsabilizado pela mensagem eletrônica[1]. A partir do julgamento desse caso, fortaleceu-se na jurisprudência estrangeira o princípio geral de que o operador de um site não pode, em regra, ser responsabilizado pelas mensagens postas em serviços eletrônicos de mensagens, à falta de controle editorial, já que, nesses casos, quem faz a "fixação prévia da mensagem para comunicação ao público" não é ele, mas sim um usuário do sistema. A idéia dominante passou a ser a de que um provedor notificado por um indivíduo que considera uma publicação difamatória, somente pode ser responsabilizado se não removê-la. As primeiras leis que surgiram no continente americano e no europeu, sem praticamente nenhuma exceção, trouxeram capítulos adotando o princípio geral da isenção de responsabilidade pela difusão de material ilícito realizada por terceiro[2].

A jurisprudência brasileira, no entanto, seguiu inicialmente uma tendência contrária ao caminho que vinha sendo universalmente aceito. Apenas a título de exemplificação, cite-se a sentença do Juiz de Franca-SP, Dr. Orlando Brossi Junior, o qual, julgando ação promovida por uma pessoa jurídica que se sentiu ofendida por informações divulgadas em comunidade do Orkut, estabeleceu que o provedor de serviços (mantenedor do site de relacionamentos) tem o dever, sim, de vigilância sobre o conteúdo que transita em seu sistema[3]. Destacou que se “o provedor de hospedagem assumiu o risco de disponibilizar serviço que eventualmente possa ser mal utilizado, lesando bens alheios”, está obrigado a indenizar. Acatou o dever de vigilância como fundamento da responsabilização, assinalando que:

A requerida realmente possui poder de gerência sob o conteúdo que hospeda, podendo verificar a idoneidade das informações que lhe são lançadas, reprimindo aquelas que afrontem os bons costumes e a moral, objetos de tutela jurídica. Saliente-se que não se trata de censura prévia, e sim de sopesar os princípios da liberdade de expressão, afastando os excessos ocorridos, com base na premissa neminem laedere.

Como supedâneo de sua fundamentação, a sentença fez menção à anterior julgado do TJSP, que já acolhia a tese do dever de controle prévio do conteúdo divulgado no site, que guarda a seguinte ementa:

DANO MORAL – Responsabilidade civil – Internet – Nomes e telefone das autoras indevidamente divulgados em "site" de relacionamento – Dados inseridos por terceiros, atribuindo-lhes a prática de programas sexuais – Negligência da ré em não efetuar controle prévio sobre a qualidade dos dados inseridos na rede, ou de sistema de rastreamento de usuários – Recebimento de ligações de interessados nos serviços – Ofensa à imagem das autoras – Valor indenizatório – Fixação segundo juízo jurisprudencial – Recursos não providos[4]

Até aí, no entanto, a jurisprudência parecia caminhar no sentido de condenar o provedor por conteúdo postado por terceiros (usuários de serviços na Internet), mas utilizando o esquema de imputação de responsabilidade baseado na culpa. Porém, começaram a surgir decisões ainda mais imperativas do ponto de vista da responsabilização do provedor, pois o fundamento passou a ser a natureza de sua atividade. Alguns magistrados começaram a adotar o entendimento de que o risco agregado à atividade (de prestação de serviços informáticos) justificaria a responsabilização objetiva do provedor, isto é, independentemente de agir com qualquer grau de culpa em determinado episódio. Estava se consagrando a teoria do risco como fundamento da responsabilidade do provedor por publicações postadas por terceiros.

A 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais seguiu essa nova vertente, ao condenar o Google a pagar indenização em razão da divulgação de textos de conteúdo ofensivo no Blogspot, serviço de criação de blogs mantido por aquela empresa. Ao que parece, o risco que torna a atividade do provedor periculosa a ponto de justificar sua responsabilização, foi apontado na circunstância de não manter sistema de controle mais perfeito da identificação dos usuários do serviço. A relatora do processo, Desa. Cláudia Maia, deixou expressa sua opinião de que, sem algum tipo de controle dessa natureza e sem haver responsabilização do provedor por negligência na adoção de tal medida, qualquer um pode fazer comentários depreciativos na Internet e prejudicar a reputação e imagem de outra pessoa sem qualquer conseqüência, o que não se compatibiliza com o nosso sistema jurídico. Disse ela que:

À medida que a provedora de conteúdo disponibiliza na internet um serviço sem dispositivos de segurança e controle mínimos e, ainda, permite a publicação de material de conteúdo livre, sem sequer identificar o usuário, deve responsabilizar-se pelo risco oriundo do seu empreendimento[5].

A ementa desse julgado ficou assim redigida:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PUBLICAÇÃO DE MATERIAL OFENSIVO NA INTERNET SEM IDENTIFICAÇÃO DO USUÁRIO. RESPONSABILIDADE DA PROVEDORA DE CONTEÚDO. DANO MORAL. ARBITRAMENTO. À medida que a Provedora de Conteúdo disponibiliza na Internet um serviço sem dispositivos de segurança e controle mínimos e, ainda, permite a publicação de material de conteúdo livre, sem sequer identificar o usuário, deve responsabilizar-se pelo risco oriundo do seu empreendimento. Em casos tais, a incidência da responsabilidade objetiva decorre da natureza da atividade, bem como do disposto no art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Não tendo o réu apresentado prova suficiente da excludente de sua responsabilidade, exsurge o dever de indenizar pelos danos morais ocasionados. O arbitramento do dano moral deve ser realizado com moderação, em atenção à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes. Ademais, não se pode olvidar, consoante parcela da jurisprudência pátria, acolhedora da tese punitiva acerca da responsabilidade civil, da necessidade de desestimular o ofensor a repetir o ato.[6]

Ainda, como exemplo da linha jurisprudencial que adotou a responsabilidade objetiva do provedor por conteúdo informacional ilícito publicado por terceiro:

INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. ORKUT.
O prestador do serviço orkut responde de forma objetiva pela criação de página ofensiva à honra e imagem da pessoa, porquanto abrangido pela doutrina do risco criado; decerto que, identificado o autor da obra maligna, contra ele pode se voltar, para reaver o que despendeu” (TJMG.Apel. Cível nº 1.0701.08.221685-7/001. Relator: Des. Saldanha da Fonseca. J. 05/08/2009).

É importante registrar que a jurisprudência brasileira não foi apenas pontuada de decisões que sustentavam a responsabilidade do provedor por mensagens e informações publicadas por terceiros. Aos poucos foram também surgindo as manifestações em sentido contrário, antenadas com a jurisprudência estrangeira de que o provedor só é responsável pelo conteúdo que hospeda se recusar a identificar o ofensor direto do ato ou se demonstrar negligência na adoção de providências para cessar os efeitos do ato (como, p. ex., não removendo as informações ilícitas tão logo notificado a respeito). Confira-se abaixo os seguintes arestos:

“(…) CIVIL – DANO MORAL – INTERNET – MATÉRIA OFENSIVA À HONRA INSERIDA EM PÁGINA VIRTUAL – AÇÃO MOVIDA PELO OFENDIDO EM FACE DO TITULAR DESTA E DO PROVEDOR HOSPEDEIRO – CO-RESPONSABILIDADE – NÃO CARACTERIZAÇÃO – CONTRATO DE HOSPEDAGEM – EXTENSÃO – PERTINÊNCIA SUBJETIVA QUANTO AO PROVEDOR – AUSÊNCIA – SENTENÇA QUE IMPÕE CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA – REFORMA. Em contrato de hospedagem de página na Internet, ao provedor incumbe abrir ao assinante o espaço virtual de inserção na rede, não lhe competindo interferir na composição da página e seu conteúdo, ressalvada a hipótese de flagrante ilegalidade. O sistema jurídico brasileiro atual não preconiza a responsabilidade civil do provedor hospedeiro, solidária ou objetiva, por danos morais decorrentes da inserção pelo assinante, em sua página virtual, de matéria ofensiva à honra de terceiro.” (TJPR – 5ª Câmara Cível – Apelação Cível nº. 130075-8 – Rel. Des. Antônio Gomes da Silva – j. em 19/11/2002)

“RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÃO CONSIDERADA PELO AUTOR COMO SENDO FALSA E OFENSIVA A SUA HONRA E IMAGEM. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO COM RELAÇÃO À PRIMEIRA RÉ (UOL) E PROCEDÊNCIA EM FACE DA SEGUNDA (DUBLÊ) (…). ILEGITIMIDADE PASSIVA DA 1ª RÉ, SIMPLES PROVEDOR DE ACESSO A INTERNET, E QUE, COMO TAL, APENAS CEDE ESPAÇO A TERCEIROS, OS QUAIS SÃO OS VERDADEIROS RESPONSÁVEIS PELO CONTEÚDO DE SEUS SITES (…).” (TJRJ – 3ª Câmara Cível – Apelação Cível nº. 2004.001.03955 – Rel. Des. Orlando Secco – j. em 04/11/2004)

“Civil e Processual Civil. Julgamento de ação cautelar em que se considerou a parte sem interesse processual de agir. Coisa julgada, no entanto, formada em agravo de instrumento julgado anteriormente pelo Tribunal reconhecendo o interesse processual. Provedor de internet, que apenas disponibiliza endereço eletrônico e permite ao usuário veiculação de página na rede, sem interferir em seu conteúdo. Ofensa moral veiculada na rede mundial de computadores. Responsabilidade que recai sobre membro usuário do serviço, e não do provedor. Inocorrência de solidariedade entre ambos, que não se presume. Artigo 896, do Código Civil de 1916. Apelação Cível parcialmente provida” (TJPR – 5ª Câmara Cível – Apelação Cível 0147550-7 – Rel.: Des. Salvatore Antonio Astuti – j. em 30/07/2007)

“DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. SITE DE RELACIONAMENTOS: ORKUT.COM. PROVEDOR DE HOSPEDAGEM. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO EM RELAÇÃO AOS USUÁRIOS QUE ACESSAM PÁGINAS CRIADAS POR OUTROS USUÁRIOS. RESPONSABILIDADE FUNDADA NA TEORIA SUBJETIVA. CULPA DO PROVEDOR DE HOSPEDAGEM NÃO DEMONSTRADA. RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO CRIADOR DA PÁGINA.
O provedor de hospedagem que se limita a disponibilizar espaço para armazenamento de páginas de relacionamento na internet não mantém relação de consumo com o usuário que acessa página produzida por outro usuário. A ausência de remuneração impede, no particular, o reconhecimento de relação de consumo com os usuários que acessam o site para buscas pessoais.
Impossibilidade de controle, pelo provedor de hospedagem, do conteúdo das páginas. Tratando-se de responsabilidade subjetiva, somente mediante a demonstração de culpa do provedor de hospedagem é que seria possível imputar-lhe o dever de indenizar.
Responsabilidade civil do provedor de hospedagem não configurada diante da inexistência de prova de sua culpa, ainda que concorrente, por página ofensiva à autora.
Desprovimento do recurso” (TJRJ – 13ª Câmara Cível – Apelação Cível nº. 2007.001.523346 – Rel. Des. Arthur Eduardo Ferreira – j. em 16/01/2008)

O mesmo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que antes produzia julgados afirmando a responsabilidade objetiva do provedor, mais recentemente, através de sua 18a. Câmara Cível, gerou acórdão dissonante dos anteriores pronunciamentos de outros órgãos fracionários, como revela a ementa abaixo:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PUBLICAÇÃO DE TEXTO OFENSIVO EM SÍTIO VIRTUAL – RESPONSABILIDADE CIVIL – APLICAÇÃO DA LEI DE IMPRENSA – IMPOSSIBILIDADE – PROVEDOR DE HOSPEDAGEM – AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR – AÇÃO CAUTELAR – NULIDADE DA SENTENÇA – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – INOCORRÊNCIA – ABSTENÇÃO DE PUBLICAR TEXTOS FUTUROS – IMPOSSIBILIDADE- À falta de legislação específica, comumente tem-se aplicado às relações travadas na rede mundial de computadores o regramento atinente à lei de imprensa, equiparando-se o sítio virtual – ou site, para os menos apegados à língua pátria – à figura da “agência noticiosa” contemplada nos artigos 12 e 49, § 2º, da Lei nº. 5.250/67.- No entanto, essa exegese do referido artigo não pode ser feita de forma irrestrita, devendo-se atentar para as peculiaridades do meio de comunicação considerado. – A internet consiste em um conglomerado de redes de computadores dispersos em escala mundial, com o objetivo de realizar a transferência de dados eletrônicos por meio de um protocolo comum (IP = internet protocol) entre usuários particulares, unidades de pesquisa, órgãos estatais e empresas diversas.- Ainda que a internet seja um meio de comunicação relativamente recente, não há que se falar em necessidade de norma especial para sua regulamentação, salvo casos que versem sobre especificidades técnicas de sistemas de informática.- O provedor de hospedagem permite que o usuário publique informações a serem exibidas em páginas da rede. A relação jurídica aproxima-se de um contrato de locação de espaço eletrônico, com a ressalva de que poderá ter caráter oneroso ou gratuito.- Em regra, o provedor de hospedagem não é responsável pelo conteúdo das informações que exibe na rede, salvo se, verificada a ocorrência de ato ilícito, se recusar a identificar o ofensor ou interromper o serviço prestado ao agente. Isso porque não há que se falar em dever legal do provedor de fiscalizar as ações de seus usuários. Destarte, a responsabilidade civil do provedor de hospedagem é regida pelas normas do Código Civil, afastando-se a aplicação da lei de imprensa. (…) – Não se pode perder de vista que, além de inexistir norma que impute ao provedor de hospedagem o dever legal de monitoramento das comunicações, esse procedimento seria inviável do ponto de vista jurídico, pois implicaria fazer letra morta da garantia constitucional de sigilo (art. 5º, XII da CF/88)[7].

Numa das primeiras vezes em que o tema assomou no STJ (em março de 2010), tudo levou a crer que a Corte que tem a missão institucional de uniformizar a jurisprudência nacional penderia para a tese da responsabilização solidária do provedor por conteúdo ilícito gerado por terceiros. Isso porque a 2ª. Turma, conduzida por voto do Ministro Herman Benjamin desproveu recurso especial interposto pela Google do Brasil que pretendia modificar decisão do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRO). A famigerada empresa norte-americana havia sido multada por não impedir a criação de novas páginas virtuais (ou comunidades) com teor ofensivo à honra de duas adolescentes. A ação, na origem, fora proposta pelo Ministério Público, que obteve tutela antecipada para que o Google retirasse as páginas eletrônicas com conteúdo ofensivo às vítimas, bem como para que atuasse de forma preventiva a fim de evitar a criação de novas “comunidades”[8] semelhantes.

O Google ingressou com agravo de instrumento para o TJRO, irresignado apenas contra a parte da decisão que determinava a obrigação de impedir a criação eventual de novas comunidades de teor semelhante, sob a alegação de que não teria meios técnicos e humanos para fiscalizar previamente o ambiente dos espaços virtuais concedidos aos seus usuários. O TJRO entendeu que a empresa não conseguiu comprovar a inviabilidade técnica ou deficiência de pessoal e manteve a decisão recorrida[9].

No STJ, o ministro Herman Benjamin, embora ressaltando que o recurso era contra uma decisão provisória e que o Google teria oportunidade de produzir as provas que considerasse convenientes junto ao juízo da primeira instância (para validar seus argumentos de inexistência de tecnologia capaz de rastrear o conteúdo das páginas e comunidades criadas no Orkut), afirmou que “quem viabiliza tecnicamente a veiculação, beneficia-se economicamente e estimula a criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade dos internautas e de terceiros, como os próprios internautas que geram e disseminam informações ofensivas”. “Reprimir certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento e multiplicação de outras tantas com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada remedia, mas só prolonga a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas de ofensas”, complementou o ministro. A ementa desse julgado está vazada nos seguintes termos:

PROCESSUAL CIVIL. ORKUT. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BLOQUEIO DE COMUNIDADES. OMISSÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. INTERNET E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ASTREINTES . ART. 461, §§ 1º e 6º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE OFENSA.
(…)
5. A internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer.
6. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é um só, pois nem o meio em que os agressores transitam nem as ferramentas tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou enfraquecer a natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e imprescritível que lhe confere o Direito brasileiro.
7. Quem viabiliza tecnicamente, quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade de internautas e terceiros como os próprios internautas que geram e disseminam informações ofensivas aos valores mais comezinhos da vida em comunidade, seja ela real, seja virtual.
8. Essa co-responsabilidade – parte do compromisso social da empresa moderna com a sociedade, sob o manto da excelência dos serviços que presta e da merecida admiração que conta em todo mundo – é aceita pelo Google, tanto que atuou, de forma decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os gângsteres virtuais. Tais medidas, por óbvio, são insuficientes, já que reprimir certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento de outras tantas, com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas.
9. O Tribunal de Justiça de Rondônia não decidiu conclusivamente a respeito da possibilidade técnica desse controle eficaz de novas páginas e comunidades. Apenas entendeu que, em princípio, não houve comprovação da inviabilidade de a empresa impedi-las, razão pela qual fixou as astreintes . E, como indicado pelo Tribunal, o ônus da prova cabe à empresa, seja como depositária de conhecimento especializado sobre a tecnologia que emprega, seja como detentora e beneficiária de segredos industriais aos quais não têm acesso vítimas e Ministério Público.
10. Nesse sentido, o Tribunal deixou claro que a empresa terá oportunidade de produzir as provas que entender convenientes perante o juiz de primeira instância, inclusive no que se refere à impossibilidade de impedir a criação de novas comunidades similares às já bloqueadas.
11. Recurso Especial não provido[10].

Ainda no final de 2010, ocorreria, no STJ, o julgamento que se tornará, na nossa opinião, o precedente com força para orientar a jurisprudência brasileira doravante quanto ao tema da responsabilidade (civil) dos intermediários (provedores de serviço de hospedagem e acesso à Internet) da comunicação telemática. O caso envolveu novamente a Google Brasil Internet Ltda., condenada em primeira instância a indenizar uma mulher por danos morais, em razão da publicação de ofensas contra a pessoa dela no site de relacionamentos Orkut. A sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que entendeu que a empresa mantenedora do site (Google), na condição de provedor de serviço de hospedagem, não tem obrigação de vigilância do material informacional que circula em seus sistemas informáticos. Contra o acórdão do tribunal inferior foi interposto recurso especial para o STJ, ao fundamento da responsabilidade objetiva do provedor, na condição de prestador de um serviço colocado à disposição dos usuários da rede mundial de comunicação. A recorrente alegou, ainda, que o compromisso assumido pela empresa de exigir que os usuários se identifiquem não foi honrado, caracterizando a falha do serviço (apesar de gratuito), geradora da responsabilidade.

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, considerou que a fiscalização do conteúdo (das páginas virtuais elaboradas pelos próprios usuários) não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode considerar defeituoso o site que não examina e filtra o material nele inserido. A verificação antecipada, pelo provedor, do conteúdo de todas as informações inseridas em seu sistema informático eliminaria um dos maiores atrativos da internet, que é a transmissão de dados em tempo real. A Ministra ressaltou que mesmo em sendo possível do ponto de vista técnico implantar um sistema de rastreamento do material editado no site pelos usuários, o provedor se defrontaria sempre com o problema de definir o que vetar ou não, já que não tem como avaliar qual mensagem ou imagem é ilícita ou potencialmente ofensiva. A Ministra deixou claro seu ponto de vista de que os provedores de conteúdo não respondem objetivamente por informações postadas no site por terceiros, já que deles não se pode exigir que exerçam um controle informacional antecipado. Por fim, ressaltou que a responsabilização do provedor pode se dar quando, notificado da existência de uma mensagem de conteúdo ofensivo, não toma qualquer tipo de providência[11].

Esse último acórdão do STJ, como se disse, está em sintonia com a jurisprudência alienígena e com a maioria das decisões anteriormente proferidas por juízes brasileiros sobre o tema da responsabilidade dos provedores de serviço na Internet. Ele traz em si a marca de duas grandes virtudes: a primeira, de evitar a propagação da tese da responsabilidade objetiva, de evidente inadequação tendo em vista que a atividade informática não pode ser considerada de periculosidade exagerada a ponto de invocar a teoria do risco[12]; a segunda, de colaborar para a estruturação de uma jurisprudência mais uniforme, garantindo mais segurança jurídica. Organizar e dar estrutura a uma jurisprudência de responsabilidades para os prestadores de serviços na Internet traz o resultado benéfico de torná-los conscientes com relação aos atos que praticam voluntariamente[13]. Até que tenhamos leis regulamentando o assunto, o novo aresto do STJ pode servir como norte em futuras questões que envolvam a definição de papéis e responsabilidades dos agentes intermediários da cadeia de informação.

Mas é preciso não subestimar as consequências indesejadas que podem advir de um padrão de imunização por demais estrito para os provedores. Não se pode admitir que empresas que desenvolvam certas tecnologias da informação – as quais, apesar trazerem enormes benefícios em termos de integração social, também podem ser utilizadas como ferramentas para ataques aos direitos das pessoas – nunca sejam responsabilizadas. Na maioria dos casos de disseminação de conteúdo ilícito na Internet, os agentes que editam a informação não conseguem ser identificados. A dificuldade de identificar o autor direto do dano funciona como circunstância que pode justificar o direito da vítima voltar-se contra o provedor. Repugna ao Direito a idéia de que ocorra um prejuízo a alguém sem que haja a correspondente reparação. Daí que não seria desarrazoado, por exemplo, se a jurisprudência começasse a exigir um maior grau de desenvolvimento ou melhorias nos sistemas de identificação dos usuários[14] dos serviços gratuitos (a exemplo dos sites de relacionamento) prestados na Internet. É possível e mesmo viável a criação de uma teoria da responsabilidade subsidiária do provedor[15], para enfrentar os problemas surgidos com a difusão de informações nos ambientes eletrônicos.


[1] Esse caso emergiu como resultado de uma ação judicial contra um dos maiores provedores de serviços on line do mundo, a CompuServe. Nesse caso, Cubby, Inc. v. CompuServe, uma mensagem eletrônica foi distribuída por via de um sistema de fórum on line, mantido pela CompuServe à disposição de seus usuários, contendo mensagens difamatórias sobre um provedor rival (Cubby). A Corte Distrital de Nova Iorque entendeu que, sem poder examinar e sem ter controle sobre a informação que circulava em seu sistema, a CompuServe não podia ter conhecimento do caráter danoso da mensagem, sendo isentada de responsabilidade.

[2] Uma dessas primeiras iniciativas veio com o Communications Decency Act, lei editada nos EUA, em 1996. A Lei proibia a difusão de material obsceno e pornográfico na rede, colimando como fim último a proteção das crianças. Como parte desse Ato, no entanto, foi adicionada uma disposição atribuindo imunidade aos provedores que meramente transportam na rede conteúdo fornecido por outras pessoas. Ainda nos EUA, foi aprovado em 1998, o Digital Milllenium Copyright Act (DMCA), que estabelece várias regras sobre a utilização de obras intelectuais em meio eletrônico. Numa de suas seções, enuncia a regra da não responsabilização dos provedores por conteúdo colocado em rede por terceiros. Nos países europeus também foram estabelecidas várias tentativas de regulamentação da responsabilidade do provedor. No âmbito comunitário, cumpre referir a Diretiva da União Européia sobre comércio eletrônico (Diretiva 31/2000/CE), que traz uma seção completa sobre a "responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços" (Seção 4 do capítulo segundo). Nos artigos 12o. a 15o. construiu um regime de responsabilidades muito parecido com o do DMCA, embora não se limitando à violação da proteção de obras autorais. A regra geral é a da não responsabilização do provedor por conteúdo de terceiro e quando se limite a prestar serviços de acesso e transmissão de informações (mensagens de e-mail, p. ex.). No que diz respeito à prestação de serviço de webhosting (armazenagem de páginas eletrônicas e outras informações fornecidas pelos usuários), o art. 14 prevê a possibilidade de responsabilização do provedor quando tem conhecimento da ilicitude do conteúdo que armazena ou de fatos e circunstâncias que a tornem aparente, e não adota nenhuma iniciativa no sentido de remover o conteúdo ou de impedir o acesso dos usuários a ele.

[3] Processo Nº 196.01.2006.028424-6, Comarca/Fórum Fórum de Franca, Cartório/Vara 2ª. Vara Cível, autor: Carmen Steffens Franquias Ltda. Réu Google Brasil Internet Ltda. No caso julgado, terceiro não identificado criou uma comunidade indicando que a empresa autora encontrava-se em estado falimentar. A empresa, sentindo-se ofendida em sua honra objetiva, ingressou com ação por danos diretamente contra a Google (empresa a qual pertence o serviço Orkut), sustentando que a divulgação lhe causara danos ante o constrangimento da falsa informação. A defesa de mérito do Google centrou-se na alegação de que não tinha o dever de fiscalizar o conteúdo divulgado no site, não se lhe podendo atribuir culpa in vigilando.

[4] Apelação Cível n. 431.247-4/0-00 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Privado – Relator: Salles Rossi – 22.03.07 – V.U.

[5] Processo 1.0439.08.085208-0/001. Nesse caso, a vítima foi um diretor de faculdade, que, após demitir um coordenador do curso, passou a sofrer hostilidades em um blog com textos de conteúdo ofensivo. Ele ajuizou ação contra a Google e, além da retirada do conteúdo ofensivo do blog, pediu indenização por danos morais. Em sentença proferida em agosto de 2008, o juiz Marcelo Alexandre do Valle Thomaz, da 3ª Vara Cível de Muriaé, julgou procedentes seus pedidos, condenando a Google a pagar vinte mil reais.

[6] TJMG-13a. Câmara Cível, Apelação Cível n. 1.0439.08.085208-0/001, relator Cláudia Maia, ac. un., j. 12.02.09, DJ 16.03.09

[7] Apelação Cível n. 1.0105.02.069961-4/001, rel. Des. Elpídio Donizetti, j. 18.11.08, DJ 10.12.08.

[8] Uma comunidade on line compreende grupos de pessoas que compartilham informações (textos, vídeos, músicas, fotos e quaisquer outros artefatos digitais), além de experiências.

[9] O argumento utilizado pelo TJRO para considerar que o provedor teria meios de vigilância sobre o conteúdo das comunidades criadas no Orkut foi um tanto quanto extravagante, pois comparou a situação posta nos autos com o que acontece na China, onde existe vigilância na Internet. Nos termos do voto-condutor, “o provedor de serviços responsável pela manutenção do orkut já se utiliza da fiscalização de conteúdo em outros países, como é o caso da China, não sendo possível vislumbrar, de início, em que a situação ora analisada difere da que vem sendo empregada naquele país”.

[10] STJ-2ª. Turma, REsp 1.117.633-RO, rel. Min. Herman Benjamin, ac. un., j. 09.03.10, DJe 26.03.10.

[11] STJ-3ª. Turma, REsp 1193764-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, ac. un., j. 14.12.10. Não tivemos acesso à integra do acórdão, que ainda não foi publicado. As informações sobre os fundamentos do voto da relatora foram colhidas em notícia publicada no site do STJ, em 20.01.11.

[12] A responsabilidade pelo risco tem como fundamento não um erro de conduta do agente, mas o simples exercício de atividade que possa trazer perigo de lesão ao patrimônio moral (à vida ou saúde) ou material de outras pessoas. Com efeito, estabelece o § único do art. 925 do C.C. que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. É difícil conceber que a atividade dos provedores de serviços na Internet tem um risco especial, uma carga elevada de perigo com grande probabilidade de risco às pessoas. Tradicionalmente, somente as atividades que criam situações com grande possibilidade de ano à vida ou à saúde de terceiros, como, p. ex., a produção e distribuição de energia elétrica ou nuclear, de explosivos e o transporte de combustíveis, é que têm sustentado a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva.

[13] Um operador de sistema informático não advertido dos problemas legais que sua atividade acarreta pode tanto falhar em reduzir ou eliminar conteúdo prejudicial em áreas submetidas a seu controle, como pode restringir alguns serviços desnecessariamente, pelo simples temor de ser responsabilizado.

[14] Atualmente, os provedores exigem o preenchimento de cadastro como condição para liberação do serviço, mas não têm como conferir a real identidade da pessoa (usuário). O ideal seria que instalassem sistemas mais seguros, capazes de checar a identidade antes do início da prestação do serviço.

[15] A responsabilização do provedor que estamos a cogitar seria sempre uma responsabilidade “substituta” ou “secundária”, só operante nas situações onde não for possível identificar o infrator primário. Não seria nunca uma responsabilidade solidária (entre o provedor e o autor direto do dano), no sentido de o ofendido poder escolher contra quem demandar. Admitimos, unicamente, uma responsabilidade secundária, significando a possibilidade de chamar o provedor à responsabilização como substituto do autor direto do dano, diante de uma situação fática que impede alcançá-lo.

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