Constituição celeste

No Uruguai, vice também preside o Senado

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6 de fevereiro de 2011, 9h41

O Uruguai ostenta condição de país mais urbanizado da América Latina, com mais de 90% de sua população vivendo nas cidades. Ambiente natural dos charruas, brava grei que matou o espanhol Juan de Solis em 1516, identidade hoje inexistente, pulverizada nos mestiços que perambulam nas fronteiras com o Brasil. Área cobiçada pelos inacianos, missionários jesuítas, com foros de estado-tampão, o Uruguai tem em José Gervasio Artigas o herói que lutou contra a Espanha, inspirador dos lendários 33 orientais, que liderados por Lavalleja deram fim à efêmera dominação brasileira. O país ainda conviveu com a sanha do capitalismo inglês, ensejador de estradas de ferro, da Meat Extract Company of London e do Frigorífico Anglo, hoje Museu Industrial. Divido entre blancos federalistas e colorados unitaristas o Uruguai tem passado por metamorfoses e transformações, palco de engenharia social, a exemplo do governo de José Batlle y Ordónes, que no início do século XX ensaiou fixação de estado de bem-estar social.

No pretérito merecedora do epíteto de Suíça da América Latina, a República Oriental do Uruguai sofreu presença militar ainda em meados dos anos sessentas, década que presenciou surgimento de grupo que combatia a ditadura, Movimento de Libertação Nacional, cujos membros são conhecidos como tupamaros, nome que evoca o líder peruano que liderou revolta contra espanhóis no século XVIII, Tupac Amaru. Nos anos oitentas, com o fim da ditadura, cogitou-se de anistia geral que beneficiou militares, a lei do ponto final. Frente ampla parece tentar desmontar a dicotomia de colorados e blancos, que radica nos choques caudilhistas de Frutuoso Rivera e Manuel Oribe.

A constituição do Uruguai é de 1966 e principia indicando que a República Oriental do Uruguai é associação política de todos os habitantes compreendidos dentro de seu território (la República Oriental del Uruguay es la asociación política de todos los habitantes comprendidos dentro de su território). Firma-se convicção de que a República do Uruguai será sempre livre e independente de todo poder estrangeiro (ella es y será para siempre libre e independiente de todo poder extranjero). Tem-se a plenitude da soberania, de modo radical, substancializada na Nação, a quem compete o direito exclusivo de estabelecer as leis do país. Trata-se de estado laico (el Estado no sostiene religión alguna). Reconhece-se, no entanto, em favor da Igreja Católica, o domínio de todos os templos que tenham sido total ou parcialmente construídos com fundos do erário público.

Aos habitantes da República a constituição do Uruguai formalmente consagra a proteção de direitos, de modo que seus titulares possam desfrutar da vida, honra, liberdade, segurança, trabalho e propriedade. A declaração de direitos da constituição uruguaia é pulverizada em vários artigos, cada um deles com redação lacônica, sintética, porém abrangente quanto a seus alcances específicos. Veda-se a privação de direitos constitucionais, a menos que tal se dê nos termos das leis e do interesse geral (nadie puede ser privado de estos derechos sino conforme a las leyes que se establecieron por razones de interes general). Consagra-se a isonomia, na medida em que se proclama que todos são iguais perante a lei, não se reconhecendo nenhuma diferença, se não as que decorram dos talentos e das virtudes pessoais (todas las personas son iguales ante la ley no reconociéndose otra distionción entre ellas sino la de los talentos o las virtudes). Abraçou-se o devido processo legal, sem o qual ninguém poderá ser preso ou penalizado (nadie puede ser penado ni confinado sin forma de proceso y sentencia legal).

Proíbe-se o confisco de bens, por razões políticas (no podrá imponerse la pena de confiscación de bienes por razones de carácter político). Não se permite a investigação sob segredo. Todo procedimento criminal tem seu início por acusação de competência de um acusador público. Veda-se o julgamento criminal à revelia, matéria remetida à lei, para pormenorização normativa. Garante-se o segredo de correspondência, mediante a proclamação da inviolabilidade da correspondência epistolar, telegráfica ou qualquer outra. A liberdade de comunicação e de expressão recebe albergue constitucional, proibindo-se censura prévia, embora se responsabilizando o autor, editor ou emissor, por eventuais abusos cometidos.

O direito de petição é garantia constitucional (todo habitante tiene derecho de petición para ante todas y cualesquiera autoridades de la República). Outorga-se o direito de propriedade, que a constituição qualifica como inviolável. É livre a entrada de todos no território do país, bem como a permanência em solo uruguaio, devendo-se observar o disposto em legislação ordinária e prejuízos de terceiros.

Indica-se a família como a base da sociedade (la familia es la base de nuestra sociedad). Determina-se que o Estado velará pela estabilidade moral e material da família uruguaia, com o objetivo de se alcançar uma melhor formação dos filhos, para o meio social. O cuidado com as crianças é dever e direito dos pais (es um deber y um derecho de los padres). Aos responsáveis por grande número de filhos, determina-se que o Estado providencie ajuda, na medida das necessidades dessas famílias. Para com os filhos nascidos fora do matrimônio os pais têm os mesmos deveres que lhes são determinados para com os filhos nascidos no matrimônio regular (los padres tienen para com los hijos habidos fuera del matrimonio los mismos deveres que respecto a los nascidos en él). Protege-se a maternidade, disponibilizando-se à mãe a proteção social (la maternidad, cualquiera se la condición o estado de la mujer, tiene derecho a la protección de la sociedad y su asistencia em caso de desamparo).

Indica-se que a proteção do meio ambiente é de interesse geral. As pessoas devem abster-se de qualquer ato que cause destruição ou contaminação que prejudique a natureza. Garante-se o direito de herança. Concebe-se bem de família, cuja constituição, conservação, gozo e transmissão decorrem de lei específica. A usura é proibida pela constituição uruguaia. Veda-se a prisão civil por dívidas (nadie podrá ser privado de su liberdad por deudas). Determina-se que a lei regulamentará a distribuição imparcial e equitativa do trabalho (la ley reglamentará la distribuición imparcial y equitativa del trabajo).

Em relação aos funcionários públicos, determina-se que os mesmos são funcionários a serviço da Nação e não de grupo político – "los funcionários están al servicio de la Nación y no de uma fracción política". Escreveu-se explicitamente que a lei estabelecerá estatuto com base fundamental em conceito que dê conta de que o funcionário existe para a função que ocupa, e não o contrário "la ley establecerá el Estatuto del Funcionário sobre la base fundamental de que el funcionário existe para la función y no la función para el funcionario".

A cidadania divide-se em natural ou legal – "los ciudadanos de la República Oriental del Uruguay son naturales o legales". Naturais são os nascidos em qualquer ponto do país – "ciudadanos naturales son todos los hombres y mujeres nacidos em cualquier punto del territorio de la República". Também detém cidadania originária (natural) todos os filhos de pais ou mães uruguaios, independentemente do local de nascimento, exigindo-se comparecimento no país e subseqüente registro civil. A cidadania derivada (legal) é outorgada a todos os estrangeiros com boa conduta, com família constituída no Uruguai, e que possuam capital de giro ou propriedade no país, ou ainda que exerçam alguma ciência, arte ou indústria, observando-se interregno de três anos de residência no território. Para aqueles que não tenham constituído família no Uruguai, guardadas as condições de boa conduta, o prazo é ampliado para cinco anos. Por fim, outorga-se também cidadania derivada uruguaia para estrangeiros que mereçam a graça especial da Assembléia Geral, em decorrência de serviços notáveis ou de méritos relevantes. A prova de residência é feita por instrumento público ou privado. A todos os cidadãos é facultado o exercício do serviço público. Os cidadãos de nacionalidade derivada devem aguardar transcurso de três anos após o deferimento do pedido de cidadania.

A forma de governo segue ao modelo de um regime democrático e republicano. O Poder Legislativo é exercido por uma Assembléia Geral – "el Poder Legislativo será ejercido por la Asamblea Geral". Essa Assembléia Geral é bicameral, reunindo Câmara de Representantes e outra de Senadores, que atuam separadas ou conjuntamente, nos termos de disposições específicas da Constituição do Uruguai. A criação de impostos exige maioria absoluta nas duas casas.

A Câmara dos Representantes é composta de 99 membros eleitos diretamente pelo povo. O mandato é de cinco anos. A Câmara dos Senadores é composta por 30 membros também eleitos de forma direta. O Vice-Presidente da República preside o Senado, detendo voz e voto. O mandato do senador é de cinco anos. Senadores e representantes não são responsáveis pelos votos e opiniões emitidos no desempenho das respectivas funções. Nenhum senador ou representante poderá ser preso, da data de eleição ao fim do mandato, exceto em flagrante delito, quando então se informará imediatamente à referida casa legislativa. Após prever o rito do procedimento legislativo a Constituição do Uruguai indica as palavras com as quais deve se promulgar textos normativos, a saber: “El Senado y la Câmara de Representantes de la República Oriental del Uruguay, reunidos em Asamblea General, decretan".

O poder executivo é exercido pelo Presidente da República e por seu Conselho de Ministros. O voto para Presidente e Vice-Presidente é direto, exigindo-se que o vencedor detenha a maioria absoluta dos votos. O mandato presidencial é de cinco anos. Ao Presidente da República cabe a representação do Estado, dentro e fora do país. Um Conselho de Ministros atua sob sua chefia. A competência do governo, formado pelo Presidente e pelos Ministros é ampla, variando da conservação da ordem e tranqüilidade interna ao comando superior das forças armadas. Determina-se que o Presidente não pode deixar o território nacional, por prazo superior a 48 horas, sem autorização do Senado. Prevê-se Tribunal de Contas, composto por 27 membros. Esse tribunal detém autonomia funcional, nos termos de lei. A ele cabe, entre outros, o controle dos gastos do Estado.

O poder judiciário é exercido por uma Suprema Corte de Justiça e por tribunais e juízos singulares. A Suprema Corte de Justiça é composta por cinco magistrados. Exige-se que tenham 40 anos completos, nacionalidade originária ou que detenham cidadania derivada, há pelo menos dez anos, além de 25 anos de residência no país. Exige-se que o magistrado seja advogado com exercício de dez anos de profissão ou que tenha exercido a magistratura ou o ministério público ou ministério fiscal por oito anos. São designados pela Assembléia Geral, com mandato de dez anos. Não poderão ser novamente apontados para o cargo, a menos que se passem cinco anos após o término do mandato originário.

Tribunais de Apelação situam-se logo abaixo da Suprema Corte, em relação à hierarquia do judiciário no Uruguai. Os juízes desses tribunais devem contar com idade mínima de 35 anos. Exige-se que tenham exercido a advocacia pelo prazo mínimo de oito anos, ou que tenham atuado no Ministério Público ou Ministério Fiscal, pelo prazo mínimo de seis anos. Há Juízes Letrados, de quem se exige idade mínima de 40 anos completos, exercício da advocacia, do ministério público, do ministério fiscal ou do juizado de paz, pelo prazo não inferior a quatro anos. A magistratura confere a vitalicidade a quem a exerce. Há ainda Juízes de Paz, de quem se exige idade mínima de 25 anos, e que são nomeados para mandatos de quatro anos. A aposentadoria dos magistrados uruguaios é compulsória aos 70 anos de idade. Há incompatibilidade entre o exercício da magistratura e de outras funções públicas, exceto o magistério superior em matéria jurídica ou outra função pública honorária ou permanente, com exceção daquelas que guardem relação direta com o poder judiciário.

A constituição do Uruguai prevê contencioso administrativo, centrado em tribunal, composto por cinco membros. A competência desse tribunal é relativa às demandas referentes à nulidade de atos administrativos efetivados pela Administração Pública, no exercício de suas funções, e que se identifiquem como contrários ao direito ou com desvio de poder – "contrários a uma regla de derecho o con desviación de poder". Quanto à competência para se provocar esse tribunal administrativo, ela é restringida ao titular de direito ou interesse direto, pessoal e legítimo, que fora violado ou lesionado por ato administrativo.

Oscilando entre os compromissos assumidos com o Mercosul e os generosos acenos dos Estados Unidos da América, o Uruguai realoca seu sistema normativo de modo a desmobilizar o legado de um Estado sufocante, consagrando neoliberalismo que lhe garanta convites para participar no clube dos grandes do planejamento econômico e tributário, reconquistando a posição perdida na década de 1980.

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  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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