Ideias do Milênio

"Um Estado sem direitos é um Estado mau"

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4 de fevereiro de 2011, 12h43

Divulgação/GloboNews
Roberto Saviano - Divulgação/GloboNews

Roberto Saviano é o autor do livro Gomorra, no qual revela os segredos da Camorra, um dos mais poderosos braços da máfia italiana. O livro já vendeu mais de 1,3 milhão de exemplares em 40 países. Virou também filme de sucesso que conquistou a Palma de Ouro do Festival de Cannes.  Mas a vida de seu autor virou um inferno, obrigado a ter uma vida invisível para escapar das ameaças dos camorristas. Roberto Saviano foi entrevistado pela jornalista Ilze Scamparini, para o Milênio, programa que a Globo News transmite às 23h30 das segundas-feiras (com retransmissões terça-feira às 3h30, 11h30 e 17h30; quarta às 5h30 e domingo às 7h05). Levada ao ar em março do ano passado, a entrevista é transcrita a seguir:

Ilze Scamparini — Os filmes de Hollywod e as séries de televisão cobrem a Máfia italiana com glamour. O jovem jornalista italiano Roberto Saviano, hoje com 30 anos, foi o responsável por destruir essa imagem quando publicou na Itália em 2006 o livro Gomorra, a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Uma obra que denuncia não só o poder criminal da organização, mas também o seu império econômico. Narrado em estilo literário, Gomorra vendeu mais de 2 milhões de cópias na Itália e de 3,5 milhões no mundo e tornou Saviano conhecido em 40 países. O livro também inspirou o filme Gomorra que em 2008 ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A coragem e o talento do escritor do sul da Itália o condenaram para sempre. Jurado de morte pela Camorra, a Máfia napolitana, Saviano vive enclausurado sem endereço fixo e sob a proteção de forte escolta policial. Foi em um desses esconderijos que entrevistamos o autor de Gomorra.

Ilze Scamparini — Saviano, a fama é cruel no seu caso. Tirou de você a possibilidade de viver a vida normal de um rapaz de 30 anos. Para me dar esta entrevista quantos seguranças estão aqui?
Roberto Saviano — Minha escolta é composta de 50 homens e 2 carros blindados, mas, quando vou de um lugar a outro, há um terceiro carro, que faz a “viabilidade”. Então, tenho sempre sete pessoas ao meu redor. Sete pessoas fixas e três carros. 

Ilze Scamparini — Neste período, sua escolta está maior?
Roberto Saviano — Está. Há muita tensão porque a Itália está passando por uma fase de tensão criminal muito forte. A Itália só perde para a Colômbia em número de pessoas com escolta. Mas eu nunca requisitei uma escolta. Quando me concedeu a escolta, o Estado o fez para defender um direito dele: o Direito de expressão. É inconcebível que um escritor, por viver ameaçado ou pressionado, saia do país ou pare de escrever. O Estado me deu a escolta para eu continuar fazendo o que estou fazendo agora, ou seja, falando.

Ilze Scamparini — Para você, a normalidade foi suplantada pelo estado contínuo de alerta. Conte como é um dia da sua vida. Eu sei que você se muda sempre, que seus apartamentos não podem ter janelas. A luz, para você é um elemento de risco?
Roberto Saviano — É. E o estranho é que eu sou de Nápoles, uma cidade cheia de luz. Nesses três anos em que moro fora de Nápoles — estou com a escolta há quase três anos e meio —, sempre morei em apartamentos muito pequenos e escuros. Eu me mudo sempre, muitas vezes moro em quartéis, e, pode parecer um paradoxo, mas prefiro os quartéis aos apartamentos. No quartel, pelo menos estou entre amigos. Muitos dos policiais se tornaram meus melhores amigos. Em casa, estou sozinho. Ou preciso estar, digamos, muito protegido. Às vezes, me colocam em apartamentos de 25m², que os policias chamam de elevador. Por que os locais são tão pequenos? Não é para me torturar, mas, como eu preciso me mudar com frequência, uso alojamentos cedidos em caso de emergência a testemunhas de processos, aos ex-membros das máfias. Nesses lugares, encontro os vestígios de quem esteve ali antes. Se acho muitos jornais esportivos, imagino que lá tenha morado um ex-mafioso. Se acho alguns discos ou livros, acho que era a mulher de uma testemunha judicial. Eu fantasio em cima do que foi deixado lá. Eu já deixei alguns livros…  

Ilze Scamparini — Alguém vai pegar o que deixou.
Roberto Saviano — Sim.

Ilze Scamparini — Como você vê sua família, encontra seus amigos? Você é casado ou é obrigado a renunciar a uma vida em casal?
Roberto Saviano — Toda minha vida é escondida. Não posso falar dela… Quando posso ter uma, não posso falar dela. O motivo é simples. Se eu falasse da minha vida privada, mesmo dos amigos, não só de amor ou família, essas pessoas, automaticamente, acabariam sob proteção. Mesmo que não fossem ameaçadas. Porque é fácil me pressionar através da minha família. Pode ser até só uma chantagem, para me obrigar a fazer algo. Por isso, além de ter uma vida privada muito complicada, eu preciso fazer de tudo obsessivamente, para escondê-la. E isso é horrível. Não posso almoçar ou jantar com um irmão ou uma namorada, não posso ir ao cinema… É uma coisa muito difícil de explicar, mas, quanto mais gosto de uma pessoa, menos devo vê-la. Se eu tenho um jantar de trabalho com alguém, o que eu costumo fazer, a polícia permite que eu vá. Porque, se alguém nos vir, qualquer informação ou mesmo uma fotografia não representa um risco. Mas, se eu pego alguém ligado a mim e vou jantar fora, esse jantar revela o laço. De amizade, de família, sentimental… Por isso, as pessoas de quem você mais gosta são as que você mais tem que esconder, são com quem passa menos tempo ou mais tempo escondido. A vida fica de cabeça para baixo. Você vivo como um prisioneiro, mas não fez nada. Você é visto como uma pessoa nojenta. Porque eu não sou benquisto pelo meu país nem pelo meu povo. Por ninguém. Sou até desprezado.

Ilze Scamparini — Você acha?
Roberto Saviano — Sem dúvida. Há uma parcela que me apóia, por sorte. É a parcela vital. Mas, se você for a Nápoles ou a Casal di Principe [cidade italiana da região da Campânia] e perguntar na rua, ao acaso, receberá 50, 80 respostas negativas. Sem dúvida. De inveja, de raiva, de deprezo.

Ilze Scamparini — Mesmo das pessoas honestas.
Roberto Saviano — Claro. Sobretudo delas. Por serem as que mais se sentem constrangidas, elas pensam: “Se o que ele diz é verdade, por que fiquei calado? É porque o que ele diz não é verdade. Por que eu não digo nada? Porque ele é um safado, um palhaço, quer ganhar dinheiro. Por isso eu fico calado.” Cada um tenta se justificar. Os honestos. Os criminosos me desprezam abertamente. Os honestos… Os intelectuais, os jornalistas, se sentem constrangidos. Não deve haver um jornalista na Campânia que goste de mim. Nem um único. Não tem nem um. Todos acham que passei por cima deles. Se sentem desconfortáveis comigo. Eles dizem: “Nós já sabíamos disso. Por que ele chega assim e conta ao mundo?” Porque eu usei outro método, só isso. Uma coisa é a notícia, outra é a literatura. Uma coisa é atingir, com um jornal local, 20 mil pessoas, outra é estar na primeira página dos jornais. As máfias e as organizações que me odeiam não o fazem porque eu revelei algo, mas porque o mundo leu o que eu escrevi.

Ilze Scamparini — Você ultrapassou um limite que não estava previsto. Roberto Saviano — Não estava previsto.

Ilze Scamparini — Por quê?
Roberto Saviano — Porque este assunto sempre esteve restrito a quem trabalha com ele. Poucos jornalistas, poucos juízes e alguns especialistas. Quando meu livro passou de 100 mil exemplares, eu recebi a escolta, não antes. Antes, os próprios mafiosos o compravam. Para ler. Ontem, foi feita uma prisão aqui perto, e o narcotraficante tinha meu livro na mesa de cabeceira. Por quê? Porque os criminosos leem muito sobre si mesmos. Mas, antes não havia hostilidades, antes que o assunto começasse a ser discutido por todos. Vou fazer um pequeno exemplo: o processo Spartacus [processo contra 115 acusados de fazer parte do clã mafioso Casalesi, com base em Casal di Principe]. O processo de primeira instância terminou em 12 anos [1998-2010]. Então veio o livro, a televisão, os jornais… Coloquei os Casalesi sob os holofotes. A segunda instância terminou em um ano e meio. A terceira, em um ano. Por quê? Por causa dos holofotes. E isso é tudo que as máfias não querem. Os holofotes aceleram tudo. É disso que eles têm medo. E é isso que torna um escrito, que, por si só, é a coisa mais inofensiva que pode existir para uma máfia, se torne perigoso.

Ilze Scamparini — Um ex-membro da Camorra revelou que havia um plano para matar você. Um plano semelhante àquele que mandou pelos ares o juiz Giovanni Falcone. Que impressão essa notícia causou a você, em um país onde as máfias assassinaram outros jornalistas?
Roberto Saviano — É claro que eu passei alguns dias em choque, porque não entendia… A coisa toda foi muito estranha, porque a notícia saiu como se o dia e a hora já estivessem determinados. Depois, esse criminoso arrependido desmentiu isso, dizendo que sabia que eu fora condenado à morte, mas não sabia quando seria. Isso também me deixou muito preocupado. Mil leituras sobre um único fato. É como se eu não confiasse mais em ninguém. Quando esse ex-mafioso deu essa notícia, que havia um atentado pronto contra mim, devo dizer que, sim, por dentro, eu senti um bloqueio, uma imobilização, mas isso não era uma novidade. Era a terceira ou quarta vez que diziam algo parecido, só que, desta vez, saiu nos jornais. Eu sei que, enquanto eu estiver sob os holofotes, eu terei muita proteção. Mas também sei muito bem que não vou estar sempre sob os holofotes, principalmente com relação a esses assuntos, que são tão pesados para a mídia e a Itália. A Itália detesta falar das máfias. É como se falasse dos piores aspectos da sua própria família. Ao ouvir falar de máfia na Itália, um italiano se sente como  o marido que ouve falar da traição da mulher todos os dias. Por isso eu sei que, com certeza, chegará uma hora em que as luzes vão se apagar, eles vão fazer o que devem fazer. Mas todos acham que matar uma pessoa visível no país não seja conveniente para as máfias. Mas eu nunca vou esquecer a frase de um ex-membro da Camorra quando lhe perguntaram durante o processo se matar jornalistas e juízes não era algo suicida. Ele disse: “É verdade, pode parecer suicida, mas a maior dor e a maior felicidade duram cinco dias.” Cinco dias, algumas prisões, um pouco de exposição, e passa.

Ilze Scamparini — Por que você escolheu ser jornalista investigativo e quando decidiu escrever sobre a Camorra?
Roberto Saviano — Eu nunca tentei trabalhar como repórter, sempre quis ser escritor, mas não de ficção. Eu prefiro meu estilo: romance de não ficção. Ou seja, estilo de romance, mas com eventos reais. Na linha de um escritor que eu considero meu mestre: Truman Capote. Por que eu decidi? Por dois motivos. Primeiro, porque tudo aquilo que eu combatia onde nasci me dava nojo, eu não agüentava mais. Nem as mentiras que se contavam. Depois, eu achava que era um argumento forte. Na minha ambição meio doida, eu tinha certeza de que poderia contar aquelas histórias ao mundo. Eram histórias interessantes, eram cem vezes melhores que Pulp Fiction, e O Poderoso Chefão, eram melhores do que tudo o que os roteiristas e diretores contavam. E eu as via ali, na minha cidade. Por isso decidi escrever. Sem pensar no que iria acontecer.

Ilze Scamparini — Como você trabalhou? Que fontes usou, quais foram as dificuldades?
Roberto Saviano — Tudo muito simples, as fontes eram muito simples. Atos judiciários das varas antimáfia, artigos de jornalistas locais, advogados, policiais e carabinieri e pequenos membros da Camorra. Essas eram as minha fontes, Eu juntava tudo, absorvia e, com esse bolo estranho, escrevia. Tudo era fonte, para mim. E os diálogos do livro são de escutas telefônicas, que, às vezes, superam qualquer roteiro. Eu li escutas inacreditáveis!

Ilze Scamparini — Conversas surreais?
Roberto Saviano — Isso. Às vezes, por exemplo, havia escutas em que contavam… Pessoas que se telefonavam, e ao telefone, cada um em sua casa assistem ao noticiário para saber se mataram a pessoa certa ou se erraram. Em uma, alguém diz: “Droga, caiu sangue no meu sapato! Vou ter que jogar fora e acabei de comprar.” Porque, em uma busca poderiam achar o sapato com sangue. E mil outras coisas inacreditáveis. Outra que vale a pena mencionar, durante uma guerra, um grupo perdeu homens demais, e a mídia passa a ideia de que o grupo foi derrotado. Dois chefões do grupo, Cosimo Di Lauro e Tamburino, se ligam e dizem: “Vamos matar nossos amigos.” “Como assim, nossos amigos?” “Isso. Porque nós sabemos que são nossos amigos, mas os jornais vão dizer que são nossos inimigos. Assim, parecerá que matamos inimigos.” É uma coisa inacreditável! Mas foram essas as histórias que eu contei.

Ilze Scamparini — Você recebeu ameaças enquanto investigava?
Roberto Saviano — Enquanto investigava, não. Eles não queriam saber o que eu estava fazendo. A Camorra sempre se sentiu protegida dos jornalistas. Sempre. Ela só aparecia na página policial, nos jornais locais. No máximo, uma denúncia. No máximo, a difamação. Às vezes, ficavam com um pouco de medo. Mas nunca. E eu tinha só 25 anos. Era um garoto inofensivo.

Ilze Scamparini — Quando seu livro saiu, você disse que, em um primeira fase, ele não foi um sucesso editorial.
Roberto Saviano — Não. Ele foi um sucesso entre os leitores. A primeira edição teve 5 mil exemplares. Em junho de 2006. Em setembro de 2006, ele chegou a 100 mil.

Ilze Scamparini — O que aconteceu?
Roberto Saviano — Boca a boca. E eu tentei promovê-lo em todos os lugares. Encontros, encontros, entrevistas, encontros, encontros… E boca a boca. As pessoas gostavam de ler sobre a Camorra. Nunca tinham ouvido falar dela. Havia muito livros sobre a Camorra, uma centena, e alguns eram obras-primas, mas eram pesados. Ensaios muitas vezes ilegíveis. As pessoas leram e leram. Um dia, eu fui a Casal di Principe, critiquei o chefão em praça pública, e foi quando me designaram a escolta. Naquele momento, eu me tornei uma espécie de símbolo. Tendo conquistado a mídia pela quantidade de livros e aparecido com tanta força e simbolismo na capital da Camorra, o estado resolveu me proteger. Por vários motivos, eles investigaram isso.

Ilze Scamparini — E você esperava uma resposta tão grande e positiva do exterior?
Roberto Saviano — Nunca. Do exterior, eu esperava ainda menos. Dois dias atrás, me disseram que eu sou o italiano com o maior número de downloads de livro virtual. Foi uma satisfação incrível, porque eu não pensava que poderia em pouco tempo, superar mestres históricos da literatura. Vender mais, no mundo todo, do que Os Noivos, o livro de Alessandro Manzoni, é realmente incrível. Mas foi o que aconteceu.

Ilze Scamparini — Como foi a transição do livro para o filme?
Roberto Saviano — O filme, do qual eu gostei, claro, que é um filme importante, é muito diferente, muito diferente. Foi um trabalho complicado, pois ele só tem algumas histórias do livro. Eu gosto disso, porque o livro e o filme não anulam um ao outro. Se você lê o livro, o filme é diferente. Se vê o filme, sente necessidade de ler o livro. São coisas paralelas. Foram escolhidas apenas algumas histórias, em especial as policiais. Quando o filme foi lançado, foi comparado com um filme brasileiro, o Tropa de Elite. Eles estavam sempre nos concursos, nas manifestações, estavam sempre juntos. E, como foram bem recebidos, pela crítica americana, todos diziam que um dos dois receberia o Oscar. Nenhum dos dois chegou nem a ser indicado. E é bom que seja assim, pois o cinema hollywoodiano não suporta que o crime seja contado sem romantismo.

Ilze Scamparini — Dizem que você tirou o glamour da máfia, criado por outros autores pelo cinema de Hollywood, em filmes como O Poderoso Chefão e Era uma Vez na América. Você concorda?
Roberto Saviano — Com certeza. O glamour dado aos mafioso não foi um erro, porque Era uma Vez na América e O Poderoso Chefão são obras-primas, mas…

Ilze Scamparini — … prejudicou.
Roberto Saviano — De certa forma, não mostrou os mecanismos. Mostrar os mecanismos não era a tarefa do [Francis Ford] Coppola [diretor americano do filme O poderoso Chefão]. A tarefa do Coppola era outra, assim como a de Sergio Leone [diretor italiano do filme Era uma Vez na América]. Qual é o problema? Não precisamos mentir: os chefões muitas vezes são fascinantes e têm uma vida fascinante. Negar isso significa mentir. Mas o que é preciso fazer? Não ficar preso àquele fascínio e ir além. Eu não tirei o glamour dos mafiosos porque os fiz se vestirem mal ou ter apenas uma vida infame. Não, eu disse: “Tudo bem. Para cada três dias de glamour, eles têm 30 anos de vida infernal.” É preciso contar como é a vida deles, como é sua vida sentimental, o fato de que nunca colocarão o pé em um restaurante que lhes pertença, em um hotel que lhes pertença. Eles vivem dez anos escondidos antes de serem presos e passarem outros dez, 20 anos presos. É preciso desmontar a lenda do chefão. Esta, sim, é uma tarefa louvável. Mas, se você se detém no aspecto fascinante, não está contando o que acontece. Eles têm suas fases: [Salvatore] Riina e [Bernardo] Provenzano [capi da máfia italiana], antes de serem presos, tiveram sua fase de carrões e mulheres bonitas, quando tinham 25, 30, 40 anos. Mas isso é uma fase. Por exemplo, os Piromalli, uma família de Gioia Tauro, um porto fundamental controlado pela ‘Ndrangheta’, vivem sempre escondidos. E são jovens. Mas vivem escondidos, entocados, fechados, com carros discretos. Mas, durante duas semanas por ano, eles vão para Milão e caem na farra. Contratam as melhores garotas de programa da Itália e na Europa. Mulheres de 10 mil euros por fim de semana, alugam andares inteiros de hotéis, boates, esbanjam dinheiro e somem de novo. São pequenos momentos. Porque o luxo, além de ser algo que dá prazer, passa um recado político, passa uma imagem. Por isso, ele deve existir, mas em momentos específicos. Mas, durante a maior parte da vida, eles tentam se esconder. Para não suscitar inveja no clã, para não chamar a atenção dos jornalistas, para não “abrir o apetite” dos juízes. Porque, se você se torna um chefão famoso, o juiz que prende você está feito. Por isso, em um país corrupto como a Itália, você deve tentar desviar a atenção. Tudo bem, o juiz vai prendê-lo porque você é um criminoso, mas, se não for um criminoso famoso, não aparece nos jornais importantes. E o que significa não aparecer nos jornais importantes? Significa fazer um acordo sobre a pena. Se eu transformo um mafioso em um nome importante, e digo a toda a Itália quem ele é, se ele for condenado a quatro anos, é um escândalo, então os juízes devem condená-lo a 15 anos. Se o mafioso foi inteligente e foi sorrateiro, silencioso, faz um acordo para seis ou quatro anos de reclusão, e a Itália não fica escandalizada, porque nem sabe quem ele é. É assim que a informação se torna importante.  É por isso que o mafioso não quer que ela seja nacional, só local.

Ilze Scamparini — Falando de Gomorra, não do livro, mas da cidade, que, ao lado de Sodoma, é um símbolo de imoralidade de degradação, uma cidade maldita, como Nápoles, ou, ao menos, como você a vê hoje. O que você sente ao fazer uma comparação tão dolorosa?
Roberto Saviano — É verdade, é uma comparação dolorosa que, no entanto, achei útil não só pela sonoridade, porque em italiano, "Gomorra” e “Camorra” soam parecido, mas para passar uma mensagem literária. Mas há outra história. Na Bíblia, a mulher de Ló, com que ele sai, e que Deus salva das cidades de Sodoma e Gomorra… Deus deixa os honestos dessas cidades irem embora, desde que eles não virem para ver o que Deus está fazendo com as duas cidades, que estão pegando fogo. A mulher de Ló se volta e vira uma estátua de sal. Para mim, isso tem um grande significado. Nós temos que olhar o que acontece nessas cidades, ainda que possamos virar sal. Deus diz: “Não olhem para aquilo que sou obrigado a fazer com as cidades.” Eu contrariei isso: nós precisamos olhar o que está acontecendo, ainda que isso implique a mais dolorosa das penas, ou seja, mudar a própria vida ou destruir a própria vida.

Ilze Scamparini — É verdade que, em Nápoles, ninguém quer alugar um imóvel para você? De que eles têm medo?
Roberto Saviano — Então, um napolitano que se recusa a me alugar alguma coisa diria: “Eu tenho medo de arriscar a vida dos meus filhos.” É mentira. Mentira. Esse medo não existe. Muitos juízes vivem normalmente em suas casas, no centro de Nápoles ou na periferia, sem que os vizinhos sintam medo. No meu caso, eles têm vergonha. Alugar um imóvel para mim causa vergonha, porque eu não sou bem-visto. Sou mais malvisto do que um criminoso. Sou visto como alguém que cuspiu em sua própria terra, que lucrou em cima de seu povo. Por isso, alugar um imóvel para mim é como ficar do meu lado. A pessoa ia precisar se justificar com os amigos, a família, pois todos dirão: “Você alugou um imóvel ao Saviano? Puxa! Você acredita mesmo naquele imbecial?” É assim. Então, no começo, me respondiam: “Doutor, me desculpe, mas eu tenho medo.” E eu acreditava no medo, então via que, muitas vezes, no mesmo prédio, moravam juízes antimáfia, presidentes de associações contra a extorsão, também escoltados. Então vi que não era verdade que tinham medo. Não era verdade. O medo é uma motivação nobre dada para acobertar uma motivação nojenta, indigna, que é a vergonha de estar do meu lado.

Ilze Scamparini — Você disse que a Camorra sempre foi muito mais discreta do que as outras máfias. Por quê?
Roberto Saviano — As razões são principalmente midiáticas. Nunca mataram um juiz como Giovanni Falcone, nunca realizaram homicídios grandiosos, ainda que tenham matado muitos inocentes. A ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, e a Camorra, a máfia da Campânia, são duas máfias muito mais perigosas do que a siciliana hoje e são profundamente desconhecidas. Elas têm ramificações no mundo todo, operam em toda parte, e sempre gozaram da indiferença da imprensa nacional. Os jornais nacionais não mantêm enviados fixos na Calábria. Na Campânia, a Camorra sempre ficou restrita às páginas policiais. É cômodo para as máfias ter a imprensa, porque elas querem que se escreva sobre elas, porque, assim têm o controle do que acontece em todos os países. Assinam jornais da Austrália, do Brasil, da França, assim como jornais locais italianos, para ver como vão as coisas. Mas elas querem que se escreva sobre elas de certa maneira, ou seja, crônica judiciária. Como está correndo o processo, onde aconteceu o homicídio… E chega. Elas não querem análises e aprofundamentos. Não querem isso. E elas gozaram dessa sombra porque houve, não censura, mas indiferença.

Ilze Scamparini — Enquanto a Cosa Nostra fazia atentados espetaculares.
Roberto Saviano — Já a Cosa Nostra, e foi por isso que ela entrou em crise, começou a fazer essa espécie de atentado terrorista – aliás, “espécie”, não – esses atentados terroristas, matando gente como Falcone e Borsellino, fazendo atentados na Itália. E, acima de tudo, é uma organização antiga. Com “antiga”, quero dizer que é pré-globalização. É pesada, em forma de pirâmide, sem talento para a globalização, como as duas outras tiveram, que entraram imediatamente no Leste Europeu, que têm uma estrutura federal, horizontal. A máfia siciliana é lenta. É como a Democracia Cristã — um partido antigo e muito poderoso que, aos poucos, se desmancha. É claro que a Cosa Nostra ainda é poderosa e ainda é uma organização perigosa, mas não é nada em comparação com a ‘Ndrangheta calabresa e a Camorra de Caserta.

Ilze Scamparini — A máfia recebe favores dos políticos?
Roberto Saviano — Sem dúvida. Mas, aqui também é preciso tomar cuidado, pois a máfia prefere se relacionar com os políticos locais, que são homens deles. Os políticos nacionais devem ser pressionados. Como uma grande empresa faria, como poderiam fazer a BMW, a Nike ou a Adidas, com um político. Ou seja, ela pressiona como um grande grupo empresarial. Ela não os ameaça com um revólver ou dá dinheiro por baixo da mesa. Hoje, isso mudou. As máfias são grande grupos empresariais que orientam a política, assim como os grandes grupos legais. Já o político local, o prefeito, o assessor, o vereador, o governador, é escolhido por ela. Estamos em um país — para você entender — onde o subsecretário de Desenvolvimento, uma função importantíssima, chamado Nicola Consentino, é considerado, por vários ex-membros da máfia, um homem da Camorra. O Judiciário pediu sua prisão, mas o Parlamento se recusou a prendê-lo. A maioria do Parlamento queria que ele fosse candidato ao governo da Campânia. Em dado momento, eles perceberam que ele não era apresentável, e essa mesma maioria não o apresentou mais como candidato. Mas ele continuou sendo subsecretário.

Ilze Scamparini — Parece que até o primeiro-ministro o defendeu.
Roberto Saviano — Foi. Por quê? Porque há uma luta pelo jogo dos ex-membros das máfias. Na Itália, acham que o ex-mafioso pode denunciar. O ex-mafioso não denuncia ninguém. Imagina! É um criminoso. O ex-mafioso é um criminoso que decidiu colaborar com o Estado. Ele dá elementos. Quem denuncia é o Judiciário. Quando se diz que um ex-mafioso denunciou comete-se um erro, porque ele não tem autoridade ou competência para denunciar. O que ele faz?

Ilze Scamparini — Mas ele dá a informação.
Roberto Saviano — Exato. Mas é o Judiciário que a avalia. Então, deve-se dizer: “O Judiciário denuncia…” Não é preciso falar do ex-mafioso. Por que se fala deles? Porque, para a opinião pública, é muito fácil dizer: “Um assassino acusou um político. Devo acreditar no assassino?” E toda a opinião pública diz: “Não se pode acreditar num assassino.” Mas atenção: o assassino traiu. Portanto, ele deve dar uma informação. A polícia e o Judiciário a verificam e a usam – usam a informação de um criminoso – para prender outro criminoso. Na Itália, a mídia caiu na armadilha de dizer: “Ex-mafioso acusa.” Acusa nada! E isso é importante, porque o jogo das máfias é exatamente esse. Quando os mafiosos querem se defender de um ex-membro da máfia, dizem que é um viciado, que matou uma criança. O que importa? Todo mundo sabe disso. Mas não é ele que acusa. É ele que, exatamente por ser uma pessoa imunda, decide trair para não ser presa. E o Estado usa a informação que ele dá. Ele verifica e passa à acusação.

Ilze Scamparini — O mundo todo viu Nápoles debaixo de montanhas de lixo. É verdade que o lixo rende mais que a droga?
Roberto Saviano — Eu me lembro de um interrogatório conduzido pelo promotor Franco Roberti de um camorrista do norte de Nápoles. O promotor perguntava: “Vocês têm muito dinheiro. Quem é o fornecedor de cocaína e heroína de vocês?” E esse preso, Petrella, dizia: “Não temos nenhum.” “Quem é o fornecedor de cocaína e heroína?” “Não temos.” “E esse dinheiro?” “Ganhamos com o lixo.” Isso foi no começo nos anos 1990. E o promotor perguntou: “Com o lixo?” “É. Os resíduos são ouro. O lixo é ouro.” E, assim nasceu a operação Rei Midas. O rei que transformava tudo em ouro.

Ilze Scamparini — E sabe-se qual é a quantia que eles movimentam?
Roberto Saviano — O clã dos Casalesi faturou, em uma única operação comercial de tratamento de lixo tóxico, 800 milhões de euros. Um único inquérito demonstrou que eles ganharam 800 milhões de euros tratando no Sul da Itália os resíduos tóxicos do Norte. Estamos falando, e eu repito, de uma única operação. Há centenas de operações iguais a essa. Dá para imaginar a montanha de dinheiro. E essa montanha de dinheiro justifica envenenar a própria terra. Funciona assim: uma empresa do Norte da Itália e do Norte da Europa produz muitos resíduos tóxicos. Tratar resíduos tóxicos custa muito caro. Então, chega uma empresa mafiosa que não se apresenta assim, mas como uma empresa regular, e diz: “Nós lhe damos o certificado oficial de que você tratou seus resíduos com uma empresa legítima e cobramos de você um valor irrisório para esse tratamento.” Todas as empresas passam a procurá-los. Através da corrupção de alguns funcionários, eles atestam que aquele resíduo foi tratado legalmente, mas ele foi jogado no rio ou foi enterrado. 

Ilze Scamparini — Ou em um trem…
Roberto Saviano — Ou em um trem. Ou em um navio que é afundado. E, assim, as pessoas morrem de câncer.

Ilze Scamparini — Por que os napolitanos não se rebelaram contra a Camorra? Eles não se sentiam humilhados de ver tanto lixo nas ruas?
Roberto Saviano — Porque o povo napolitano está acostumado a se submeter e a encontrar uma solução individual. Ou seja, se o lixo está na porta da sua casa, você paga ao vereador ou ao chefão da máfia para tirá-lo dali. Não é nunca uma solução coletiva. E há mais um fato. Os cidadãos se rebelam contra o Estado, mas nunca contra a Camorra. As manifestações eram contra o Estado. “Não façam um novo aterro sanitário.” Por quê? Por que não abrir um aterro sanitário? Se eu abro um aterro sanitário na França, o Estado me garante que uma série de resíduos chegará até lá. Por que não querem aterros sanitário em Nápoles? Porque eles pensam: “Se abrir o aterro sanitário, a Camorra na hora entra no negócio.” Então, eu me rebelo contra o Estado, porque posso fazer isso. Porque o Estado me prende ou me multa. A Camorra me bate, me mata.

Ilze Scamparini — Então, é por medo.
Roberto Saviano — Por medo. E também porque não há garantia. O Estado diz “Vamos fazer incineradores.” Mas as pessoas têm medo. “Você diz que o incinerador receberá tal resíduo, mas o que a Camorra vai colocar lá?” No aterro sanitário de Pianura, da qual se falou muito, pois muitos foram contrários a ele em Nápoles, foram encontrados um esqueleto de baleia. É inócuo, não é perigoso, mas um esqueleto de baleia! Porque uma baleia tinha encalhado na Ligúria, no Norte da Itália, e foi descartada em Nápoles. Havia caminhões inteiros enterrados com resíduos tóxicos dentro. Por que Nápoles se encheu de lixo? Por que não Roma? As pessoas não entenderam. E funciona assim.

Ilze Scamparini — Por que não Reggio-Calabria, por que não Palermo…
Roberto Saviano — É simples. Os aterros sanitários napolitanos, administrados pela Camorra, recebiam não só o lixo da Campânia, mas da Itália toda. Os juízes então fechavam o aterro, por ser perigoso, e ninguém sabia onde colocar o lixo. O que aconteceu com o novo governo? O governo transformou os aterros sanitários em áreas militares. Assim, os juízes não podem mais fechá-los.

Ilze Scamparini — O novo governo Berlusconi?
Roberto Saviano — Isso.

Ilze Scamparini — Que foi lá e…
Roberto Saviano — … tirou o lixo das ruas. Ele começou a abrir incineradores, mas, principalmente, transformou os aterros em áreas militares. Ou seja, não podem ser fechados pelos juízes. Assim, enchem, enchem, enchem, enchem. O grande sucesso da campanha “Nápoles Limpa” é apenas uma enrolação. Mas é claro que é preciso reconhecer que, diante de uma emergência daquelas, tudo é lícito. Eles agiram bem fazendo o que fizeram.

Ilze Scamparini — Por isso, a população apóia isso.
Roberto Saviano — Sim. A grande chantagem que os políticos da Campânia fazem com relação a Berlusconi é essa: “Se nos tratar mal, colocamos o lixo na rua de novo.”

Ilze Scamparini — A violência e a ignorância alimentam a delinquência no mundo todo, não? No filme, um dos protagonistas exclama, com entusiasmo, que vai chegar aos 30 anos. São tão baixas as expectativas?
Roberto Saviano — A vida verdadeira é jogar tudo, e agora. Pensar em chegar aos 50, 60 anos, é visto quase como um azar. Não é o que se quer. Mulheres, dinheiro, possibilidades de amedrontar os outros e morte. Porque a morte não dá medo. Ela faz você se sentir diferente dos outros. Eu venho de um lugar onde a morte não é um risco do ofício, mas uma parte importante do ofício. É exatamente por morrer que eu me sinto diferente, me sinto melhor, mais capaz. Porque você tem medo de morrer, e eu, não, nós somos diferentes. As máfias não querem… O mafioso não quer sobreviver. Isso é um erro. Ele sabe que acaba preso ou morto. Sabe muito bem. E leva isso em conta.  

Ilze Scamparini — Saviano, você acha que a Máfia ou as máfias podem ser derrotadas? E como?
Roberto Saviano — Sem dúvida, podem ser derrotadas. Mas seria preciso mudar as regras econômicas. Enquanto, em uma licitação, vencer a empresa que consegue fazer o trabalho no menor tempo possível e com o custo mais baixo, as máfias vão vencer sempre. Depois, também é preciso legalizar as drogas. Não é uma questão moral. Eu sei que a legalização envolve um problema moral. Mas é o único modo. Ou se legalizam as drogas, ou as máfias verão, nesse setor, liquidez, liquidez, liquidez e, com isso, possibilidade de investir nos mercados legais.

Ilze Scamparini — Você conhece as favelas? Como imagina uma favela brasileira?
Roberto Saviano — Eu li sobre elas em reportagens, vi filmes… No meu imaginário, não são muito diferentes, embora sejam muito maiores, de um bairro do Sul da Itália, como o Spagnoli ou mesmo Scampia. O que sempre me marcou na visão que se tem do Brasil é que o mundo concebe a criminalidade brasileira como se fosse uma criminalidade de rua. Mas não é. A criminalidade brasileira hoje se baseia no narcotráfico. Mesmo de altíssimo nível. Muitos inquéritos contra as máfias italianas demonstram que toneladas de cocaína saem dos portos brasileiros. O Rio sempre foi um lugar onde a Camorra, a Cosa Nostra e a ‘Ndrangheta têm base porque o Brasil é como se fosse um território livre, onde se decide o preço da cocaína. No México e na Colômbia é onde realmente se produz a cocaína, mas o preço da cocaína é decidido no Brasil, onde estão os nigerianos, a Camorra, a ‘Ndrangheta, os membros do ETA, os marroquinos, os russos. E é lá que se decide o preço. Como isso é feito? É simples. Quantas toneladas de cocaína vão para a Rússia? Cinqüenta. Então, o preço cai. Se são dez, o preço sobe. O Brasil é fundamental. É claro que impressiona mais um menino que mata alguém. E é muito mais fácil contar a história dos sinais: não pare no sinal ou você pode ser assaltado. É muito fácil contar essa história. No Brasil, a verdadeira criminalidade é o narcotráfico, a lavagem de dinheiro, e, sobretudo, como a criminalidade mafiosa utiliza os baixos níveis da criminalidade para construir um império.

Ilze Scamparini — E gostaria de contar essa história?
Roberto Saviano — Claro, muito. E acho que vou contá-la. Porque o Brasil e o México são os dois países sul-americanos onde a criminalidade mais cresce. A Colômbia já é passado na América do Sul. 

Ilze Scamparini — O que você pretende fazer da vida, Saviano? Vai viver escoltado para sempre? Vai mudar de país definitivamente?
Roberto Saviano — Não sei. Não sei mesmo. Nem me pergunto isso. Eu vivo mês a mês, dia a dia, e… Às vezes, não aguento mais. Às vezes, tenho mais força.

Ilze Scamparini — Você sofre, chora…?
Roberto Saviano — Às vezes, sim. Às vezes eu sofro porque não aguento mais. Também não aguento mais as pessoas me olhando, o país, a maldade… A Itália parece um país gentil, mas não é. São aos olhos dos turistas. Como todos os países sem direitos, é um país mau. Quando, em um país, não existem direitos verdadeiros, seguros, onde a meritocracia não existe, seu inimigo não é o político ou o criminoso que impede você de ter um direito ou de gozar da meritocracia. Seu inimigo é a pessoa ao lado, aquele que tem um apartamento melhor do que o seu, uma mulher mais bonita que a sua, ou que você acha mais bonita que a sua. Esse é seu inimigo. Aqui, todo mundo é inimigo de todo mundo. E isso me faz sofrer muito. Porque, na minha condição, eu não me sinto, com relação a quem me está próximo… Eu não me sinto totalmente compreendido. Às vezes, me sinto até invejado, o que parece inacreditável.

Ilze Scamparini — Você se arrepende de alguma coisa?
Roberto Saviano — Eu devo ser sincero e responder que várias vezes me arrependi de ter escrito esse livro. É a verdade. Eu reescreveria o livro, eu defendo meu livro, mas não gosto mais dele, porque ele destruiu a minha vida.

Ilze Scamparini — Quais são os negócios entre a Camorra e os chineses?
Roberto Saviano — A relação é muito complicada, porque, na verdade, os chineses pagam um “imposto” à Camorra, principalmente pelas pessoas que importam. A máfia chinesa tornou o transporte de pessoas um grande negócio. O tráfico de seres humanos. Chama-se “cabeça de serpente” os homens que levam… Os chineses que levam chineses para várias partes do mundo. Eles recebem por cabeça. As relações também são do tipo escambo, porque os chineses trabalham nas fábricas da Camorra. A Camorra dá a eles a possibilidade de abrir lojas, mercados, no território deles. Muitas vezes, os chineses dão, além da mão de obra, também matéria-prima. Toda a matéria-prima que chega da China para as empresas da Camorra vem com um grande desconto. No começo, as organizações criminosas não gostavam nem dos chineses, nem dos africanos, nem dos eslavos. Depois… Hoje, são unidas. Os portos de Nápoles e de Gioia Tauro, os dois maiores de Itália e dois maiores do Mediterrâneo, são controlados pelos chineses. O movimento é todo chinês. É claro que há uma pequena parte que não é, mas o movimento é chinês.

Ilze Scamparini — Isso, graças à Camorra?
Roberto Saviano — Graças à Camorra e à ‘Ndrangheta, sim, mas em que sentido? A Camorra movimenta as mercadorias, ou seja, permite o fluxo imediato de dinheiro. É nesse sentido. A Camorra não gere diretamente o porto de Nápoles, nem a ‘Ndrangheta, o porto de Gioia Tauro, mas elas fazem circular… Basta um dado: pelo porto de Gioia Tauro, passam 1 milhão e 300 mil contêineres por ano. O Estado verifica mil deles por ano.

Ilze Scamparini — Você acha que faz parte de um movimento político? Uma espécie de frente de libertação contra as máfias, em especial as que protegem parte da política. Ou talvez você tenha sido levado a um território que não é seu?
Roberto Saviano — Eu não acho que faço política. Se faço, é em um sentido mais nobre, da batalha de ideias. Não tenho preferências políticas. Na verdade, nos últimos anos, pediram que eu fosse candidato da direita ou esquerda. Eu tive propostas da extrema direita à extrema esquerda. Tive propostas do Italia Centro, do Partito Democratico… Todos os políticos me pediram para sair candidato. Eu não me candidato porque não me sinto só um escritor, mas não saberia ser político. Eu seria um político sem experiência, por isso, sou muito desconfiado. Depois, há outra coisa. Eu acho que a legalidade deve ser transversal. Ou seja, não o resultado da política, mas a premissa. Se não é assim, se não se parte desse pressuposto, estamos acabados. Se a legalidade é a luta de um dos lados, não vamos longe.

Ilze Scamparini — Em Nápoles, a Camorra usa todo esse desespero. Porque as pessoas não vão embora, não se protegem?
Roberto Saviano — Muita gente vai embora, emigra. O Sul da Itália tem milhões de emigrantes. A Campânia é a região com a maior taxa de profissionais formados emigrados da Itália. 

Ilze Scamparini — Então, eles vão embora.
Roberto Saviano — Vão. Um dos problemas é: “Se nós vamos embora, quem fica na Campânia?” Ficam aqueles que não conseguem emigrar ou estão mais dispostos a contemporizar. A classe política meridional dos últimos anos está entre as piores da história italiana. 

Ilze Scamparini — Por que a Itália é um país corrupto?
Roberto Saviano — Porque é um país onde um homem é condenado por um crime 20 anos depois de cometê-lo, onde a sociedade civil é praticamente ausente, com exceção de alguns grupos de missionários sociais que resolvem problemas sacrificando seu dia a dia, ou mesmo a própria vida. É um país onde o empreendedorismo está em crise profunda, que recebe um grande número de imigrantes, mas que não fala disso, e onde a esquerda e a direita políticas estão totalmente infiltradas pelas organizações criminosas, mas não consideram isso um problema. As coisas estão mudando, de certa forma. O ministro Maroni, por exemplo, está trabalhando bem, mas fazendo prisões. Mas as máfias não são derrotadas com prisões. Não só com elas. O escudo fiscal, a lei que permite trazer de volta o capital do exterior, favorece as máfias. A lei que impede as escutas telefônicas favorece as máfias.

Roberto Saviano — Neste país, mataram dois juízes em poucos meses. Mas as organizações não foram particularmente prejudicadas. Os Corleonesi foram derrotados. Em parte. Mas as outras máfias ainda são poderosas. Na minha cidade, na minha província, em 2002, mataram um sindicalista. O que aconteceu? Quando eu tinha 16 anos, mataram um padre. O que aconteceu? Uma passeata e pronto. Mataram um inocente, símbolo da resistência às extorsões, em Castel Volturno, em 2008. Ele se chamava Domenico Noviello.

 

Ilze Scamparini — Por que eles matam tantos inocentes?
Roberto Saviano — Não. Eles os matam cientes do que fazem. Às vezes, não. Às vezes, é uma bala perdida. Mas, em geral, é premeditado. As pessoas são mortas porque fizeram algo. Federico Del Prete, por exemplo, fundou um sindicato contra eles. Domenico Noviello, 12 anos antes de ser executado, tinha denunciado uma extorsão. Doze anos antes! Isso é impressionante nas máfias. As máfias nunca esquecem. A memória deles é um valor agregado ao seu terror. Você tem medo da organização porque sabe que ela não esquece. Se ela esquecesse, todos conseguiriam passar 3 ou 4 anos escondidos. Mas eles nunca esquecem. Tommaso Buscetta contava que devia executar um homem, um inimigo, uma pessoa de uma família contrária à dele. Mas essa pessoa, por 3 anos, saiu todos os dias acompanhada do filho. E ele não queria matá-la na frente do menino. Ele levava o filho à escola, voltava e não saia mais. Eles esperaram o menino crescer, chegar aos 15, 18 anos, e o mataram quando o menino tinha 18 anos. Eles esperaram 10 anos. Pode parecer um discurso sujo: “A máfia é tão impiedosa que espera anos para não matá-lo na frente da criança?” Isso também acontece.  

Ilze Scamparini — Isso parece coisa de cinema.
Roberto Saviano — Não, isso existe. É claro que não existe um comportamento único. Há comportamentos muito agressivos. Em Nápoles, durante a Guerra de Scampia, que é um bairro de Nápoles, entre dois grupos, os Spagnoli, porque também atuavam na Espanha, e os Di Lauro, os combates fizeram centenas de mortos. Quando uma das duas famílias venceu, os Spagnoli, muitas pessoas da outra família quiseram entrar na vencedora. Os Spagnoli disseram: “Vamos aceitá-los, mas, para vir, precisam matar um parente. Assim, vocês provam que não estão mais ao lado dos inimigos.” E eles começaram a matar o primo, o avô. O pai, não, mas… Para passar para o outro lado, precisavam matar um parente. As regras não são fixas. Alguns grupos têm um pretenso código: as mulheres são intocáveis… Outros não têm nenhum. Outros só tem quando lhes convém.

Ilze Scamparini — Uma curiosidade: a Camorra tem homens honrados, como a Cosa Nostra?
Roberto Saviano — Na verdade, a única organização que mantém uma fortíssima forma simbólica é a máfia calabresa, a ‘Ndrangheta. Eles tem uma hierarquia complicada, que pode ser resumida na forma de uma árvore: raiz, tronco, ramo, galho e folhas. São todas as hierarquias da organização, que tem, como símbolo, essa árvore. A Camorra tinha o pacto de sangue, através do batismo da Camorra, mas agora, aos pouco, as novas gerações o deixam de lado. O batismo da Camorra é muito simples, que se baseia em uma Nossa Senhora, um santinho…

Ilze Scamparini — Como a Cosa Nostra?
Roberto Saviano — Como a Cosa Nostra. Fura-se o dedo, uma gota de sangue cai nesse santinho, todas as pessoas presentes beijam essa Nossa Senhora. Se alguém não beijar, você não entra na organização. Esse santinho é então queimado, simbolizando que quem os trai terá o mesmo fim: o fogo, as chamas.

Ilze Scamparini — Você queria ser escritos, a literatura pode contar muita coisa, mas o jornalismo também pode. Você escolheu os dois. Qual é a relação entre o escritor e o jornalista?
Roberto Saviano — O jornalista tem uma tarefa, o escritor não precisa dela. O jornalista deve ir, por exemplo, ao local de um assassinato. Lá, deve encontrar elementos para falar do homicídio, ele tem uma tarefa,mesmo que seja por iniciativa do diretor, pelas regras da reportagem. Eu, por exemplo, quando ia aos locais de execução, me perdia nos detalhes. Às vezes, eu via apenas o rosto das pessoas vomitando por terem visto aquela cena horrível. Eu não queria saber o que acontecera. Os detalhes, eu pegava depois no inquérito. É uma questão de objetivos diferentes. Mas, muitas vezes, o método pode ser o mesmo. O jornalista pode ter um texto bonito, o escritor pode ter o método do repórter. A grande diferença é sobretudo essa, entre o escritor de não-ficção e o jornalista. Sempre gostei de uma frase de Truman Capote: “Eu tenho certeza de que os rios do jornalismo e da literatura, cedo ou tarde dormirão em um único leito.” Eu procuro fazer isso.

 Ilze Scamparini — Que história de Capote você…?
Roberto Saviano — A Sangue Frio. Para mim, é um manual de literatura, antes mesmo que um bom livro. A técnica nos mostra o que é escrever, mas ao mesmo tempo mostra o que é o rigor. Este é o livro que me iluminou.

Ilze Scamparini — Como você chegou a publicar o livro?
Roberto Saviano — Eu tive muita sorte, porque eu tinha escrito contos em revistas online. Porque a revista literária não existe mais fisicamente, não tem mercado. Mas elas existem online, e são fundamentais. Eu publiquei meus contos lá, e os editores me fizeram propostas. Na verdade, eu escrevi Gomorra já com o contrato com a Modadori. Eles não leram o livro antes de me contratar. Eu já tinha um contrato antes de escrever o livro.

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