Fraudes em concursos

Mesmo com nova lei, denúncias podem ser esvaziadas

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31 de dezembro de 2011, 15h06

Deflagrada para desarticular uma organização acusada de fraudar concursos públicos e responsabilizar criminalmente os seus integrantes e demais pessoas que desse esquema se beneficiaram, a Operação Tormenta, da Polícia Federal, corre o risco de não surtir efeitos à altura de seu imponente nome.

A recente edição da Lei 12.550, que passou a ter eficácia na data de sua publicação no Diário Oficial da União, no último dia 16 de dezembro, e passou a prever como conduta criminosa a fraude em concursos, pode não ser suficiente para salvar a operação. A tese de defesa a ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça já aponta nesse sentido: como na época da impetração do Habeas Corpus não havia regra penal que criminalizasse a conduta de quem frauda concursos públicos, a ação penal deve ser trancada por atipicidade da conduta. Na hipótese de o STJ reconhecer os argumentos alegados em HC, a tormenta poderá ser reduzida a brisa.

A investigação da PF gerou 10 processos criminais. Em trâmite na 3ª Vara Federal de Santos, cinco apuram as condutas dos acusados de articular a fraude, enquanto o restante se relaciona aos candidatos que, segundo a denúncia, beneficiaram-se ou tentaram se beneficiar do esquema com a compra de gabaritos.

A ação penal relativa à fraude que gerou a anulação da prova da segunda fase do exame da Ordem dos Advogados do Brasil, aplicada em âmbito nacional no dia 28 de fevereiro de 2010, é considerada o carro-chefe da Tormenta. Nas investigações desse episódio, a PF apurou que o mesmo grupo ou boa parte dele estava envolvido nas fraudes de outros concursos.

Um desses certames — da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), de 2008 — é objeto de uma ação específica. Uma ré desse processo, que foi aprovada e chegou a tomar posse no cargo de oficial da inteligência, responde a processo pelos crimes de estelionato, receptação e fraude à concorrência, conforme denúncia do Ministério Público Federal.

Na defesa de sua cliente, o advogado Ricardo Ponzetto impetrou Habeas Corpus no STJ, antes mesmo da promulgação da Lei 12.550, sustentando que os crimes atribuídos à oficial de inteligência não se adequam à conduta por ela realizada, se verdadeira fosse a acusação, se constituindo em “afronta ao princípio da reserva legal”.

Crime específico
As regras de que não existem crimes e nem penas sem lei que os definam, devendo ainda a previsão legal ser antecedente à ocorrência do fato descrito como delituoso, englobam dois princípios constitucionais que são alicerces do Direito Penal e estão incluídos entre as garantias fundamentais previstas no artigo 5º da Carta Magna.

Conhecidas por princípios da legalidade ou da reserva legal e da anterioridade, essas garantias constitucionais foram violados na denúncia do MPF, segundo expôs Ponzetto no Habeas Corpus em favor da candidata aprovada no concurso da Abin. O advogado analisou os componentes dos três delitos atribuídos à cliente para descartar a ocorrência dos mesmos.

A defesa também frisou que o princípio da legalidade, no âmbito do Direito Penal, proíbe que se faça uso da analogia em prejuízo do réu, ou seja, que se amplie ou se adapte o alcance de determinado crime para responsabilizar o suposto autor. “Os tipos penais incriminadores têm interpretação restritiva e não admitem aplicação analógica”.

Para reforçar seus argumentos, Ponzetto ainda destacou que, na ocasião da impetração do Habeas Corpus, tramitavam no Congresso Nacional três projetos de lei incriminando a conduta de quem frauda concursos públicos. Desse modo, sem a previsão desse crime específico naquela época, não haveria como a sua cliente ser penalmente responsabilizada.

“Por mais imoral e desonesta que seja a conduta imputada, caso ela existisse em relação à paciente (ré), não poderá o Poder Judiciário suprir a falta da lei e amoldar o fato à figura típica dos crimes que constam na denúncia do Ministério Público Federal”, acrescentou o advogado, que pede o trancamento da ação penal pela “atipicidade do fato”.

Vácuo legislativo
De acordo com o jurista e mestre em Direito Penal Luiz Flávio Gomes, antes de a Lei 12.550/11 introduzir ao Código Penal o artigo 311-A, que define o crime de fraudes em certames de interesse público e estabelece a respectiva pena, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais não admitia ser criminosa esse tipo de conduta.

“A própria lei nova vem a demonstrar que existia um vácuo legislativo sobre esse tema. E sem uma lei específica, o Direito não admite que se faça uma engenharia jurídica para tipificar uma conduta sem previsão legal. E mesmo com a criação posterior de uma lei, ela só valerá para os fatos futuros, não podendo retroagir para alcançar os passados”, comenta o jurista.

Por esse motivo, Luiz Flávio Gomes defende que réus da Operação Tormenta denunciados apenas por fraudar concursos, na realidade, crime algum cometeram. “Claro que, moralmente, a conduta é reprovável. O ato revela falta de ética, mas o campo jurídico tem suas regras, entre as quais de primeiro haver uma lei e esta ser anterior ao fato”.

Embora o advogado Ricardo Ponzetto tenha impetrado o Habeas Corpus em nome apenas de sua cliente, caso ele seja concedido pelo STJ, os seus efeitos se estenderão aos corréus do processo que se encontrem em situação análoga. Tais efeitos, ainda, poderão refletir sobre os acusados das demais ações penais decorrentes da Tormenta.

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