Embargos Culturais

Descartes, discurso sobre o método e pesquisa jurídica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

25 de dezembro de 2011, 7h29

René Descartes, o fundador do pensamento moderno, nasceu em Touraine, em 31 de março de 1596, de família da pequena nobreza da época dos Bourbon. Ficou órfão aos oito anos, estudou com os jesuítas, graduou-se em Direito Civil e Canônico. Legou-nos um método. A certeza radica na dúvida.

Viajante contumaz e homem retirado, morreu de pneumonia em Estocolmo, em 11 de fevereiro de 1650. Saúde fraca, debilitada pelo frio sueco, condição prejudicada pelos horários que lecionava para a rainha Cristina. Descartes era habituado a dormir até o meio-dia, e as preleções começavam as cinco da manhã…

René Descartes é figura emblemática de uma época de transição. As navegações ampliaram a geografia, o renascimento protagonizou ideário humanista, a reforma protestante viabilizou individualismo decorrente da livre interpretação.

Inegável o parentesco espiritual entre Descartes e Santo Agostinho, a propósito da dúvida metódica. Para Santo Agostinho, o autor da Cidade de Deus, "(…) Se eu engano, existo, porque quem não existe não pode se enganar e por isso existo, se me engano". Copérnico, Bruno e Galileu fizeram especulações em torno do movimento e da extensão em Descartes.

Spinoza, Liebniz e Kant matizaram um colegamento com o cientificismo oitocentista. Grócio presumiu um direito natural e Rousseau uma moral ingênua, dramatizada por Racine e característica nos animais de La Fontaine. Foi Platão quem havia justificado a Res Cogitans e a Res Extensa, conceitos nucleares no pensamento de Descartes. O conhecimento seria intuição, como apreensão da extensão e do movimento, apanágios da experiência e da dedução.

O Discurso sobre o Método foi escrito em francês e publicado em 1637. Concebido como instrumento para "bem dirigir a própria razão e buscar a verdade nas ciências", foi redigido na primeira pessoa do singular e disposto em seis partes.

A primeira parte é autobiográfica e consigna que "o bom senso é a coisa mais bem dividida". Ironia? "É possível que me engane e talvez não passe de cobre e vidro o que tomo por ouro e diamante". Dúvida? "Nutri-me das letras durante a infância (…) mal terminei (…) mudei inteiramente de opinião". Desamparo? "Abandonei o estudo das letras e fui buscar o grande livro do mundo". Ousadia? "Tomei um dia resolução de estudar também em mim mesmo". É a valorização da subjetividade, resposta para a dúvida permanente.

A segunda parte enuncia as regras do método. Evidência (só é verdade o que é evidente como tal), análise (dividir as dificuldades em parcelas possíveis), síntese (do mais simples ao mais complexo), enumeração (fazer enumerações tão completas e revisões tão gerais, com a certeza de que nada é omitido).

A terceira seção sugere uma moral provisória, enquanto se aguarde um conhecimento definitivo: obediência às leis e aos costumes, moderação nas opiniões, firmeza e resolução, aceitação da ordem natural do mundo, cultivo da razão e busca da verdade.

A quarta parte declina a metafísica. É o "penso, logo existo" como "primeiro princípio da Filosofia". A quinta parte é a física, no sentido descritivo de coração, cérebro, artéria, razão e animais. A sexta parte faz surpreendente declaração de humildade, "(…) Quero que se saiba que o pouco por mim aprendido até aqui quase nada é em comparação com o que ignoro e ainda espero poder aprender".

As categorias metodológicas de Descartes são fundamentais também para a pesquisa jurídica. Assim, a regra da evidência consiste em não aceitar nada por verdadeiro que não seja reconhecido como tal pela sua evidência, isto é, uma coisa somente pode ser aceita como verdadeira quando se apresenta tão clara e distintamente ao nosso espírito que não permita nenhuma dúvida[1]. Quanto à regra da análise, esta consistiria em analisar as dificuldades decompondo-as no maior número de partes possíveis e necessárias para melhor resolvê-las[2].

Já a regra de síntese consiste em conduzir os pensamentos por ordem, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de reconhecer, para ir pouco a pouco, gradualmente, até os conhecimentos mais complexos, supondo que haja uma ordem também entre os objetos que não procedem naturalmente uns dos outros[3].

Por fim, quanto à regra de enumeração, esta consiste em fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que se tenha a certeza de nada omitir[4].

Condensadas na figura de pesquisador comprometido, as referidas regras ajustam-se perfeitamente a trabalhos de conclusão de curso, a monografias de pós-graduação, a dissertações de mestrado e a teses de doutoramento.

A monografia é documento que representa o resultado de estudo, devendo expressar conhecimento de assunto escolhido, que deve ser obrigatoriamente emanado de disciplina, módulo, estudo independente, curso, programa[5].

A dissertação é documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um estudo científico retrospectivo, de tema único e bem delimitado em sua extensão, com o objetivo de reunir, analisar e interpretar informações (…) deve evidenciar o conhecimento de literatura existente sobre o assunto e a capacidade de sistematizar do candidato (…) é feito sob a coordenação de um orientador (doutor), visando à obtenção de título de mestre[6].

A tese é documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um tema único e bem delimitado (…) deve ser elaborado com base em investigação original, constituindo-se em real contribuição para a especialidade em questão (…) é feito sob a coordenação de um orientador (doutor), visando a obtenção do título de doutor, ou similar[7].

As regras do método cartesiano, quando efetivamente aplicadas, colaboram para que as pesquisas não incorram em erros recorrentes, a exemplo do uso destemperado da história, do direito comparado e das fontes secundárias. A pesquisa jurídica se mostra em estado de perene prostração para com o passado, circunstância que se revela em exacerbado formalismo:

O caráter formalista do meio jurídico, o apego à tradições ritualísticas, o conservadorismo intelectual, são características que criam dogmas, e que permitem a perpetuação de assertivas inquestionadas sobre a natureza e o conhecimento da matéria. Observe como esse caráter formalista se manifesta no texto dos juristas, na remissão às vezes inútil a tribunos mortos em realidade social distinta, na própria menção à “doutrina” (uma palavra de sentido quase religioso) enquanto outras áreas de conhecimento se referem à “literatura sobre o tema”[8]. 

A pesquisa jurídica deve-se ser orientada por um método, no sentido de que,
O método é o melhor critério para distanciar da pesquisa o subjetivismo do autor, do intérprete, do criador…Quando se buscam, por meio de conclusões científicas, a generalização e a universalização de respostas para questões teóricas ou práticas, não se pode ter por base, pra a tomada de eventuais decisões, apenas opiniões que retratam um ponto de vista pessoal e rigorosamente individual. O mais das vezes, as opiniões pessoais e individualizadas são marcadas por profundo sectarismo, ou espelham opções ideológicas unilaterais, ou retratam paixões subjetivas, ou se fazem memoráveis por serem tendenciosas…[9]

Evidentemente, as regras do método cartesiano, e que visam à verdade, não seriam comuns em peças de argumentação, a propósito de petições. No caso, vinga a retórica, tradição criticada por Platão e estudada por Aristóteles. A retórica renasceu no século XX com Chaim Perelman.

No entanto, que o leitor não se fie muito no presente texto, especialmente no que se refere a minhas observações sobre o filósofo francês, desautorizado que eu estaria pelo próprio Descartes que fulminara seus futuros intérpretes.

Para o fundador do método cartesiano, "(…) Tenho, pois, o prazer de pedir aqui, aos nossos descendentes, que não acreditem nunca no que lhes disserem como tendo partido de mim, sem que eu próprio o tenha divulgado".


[1] Eduardo de Oliveira Leite, Monografia Jurídica, São Paulo: RT, 2011, p. 18.

[2] Eduardo de Oliveira Leite, cit., loc.cit.

[3] Eduardo de Oliveira Leite, cit., loc.cit.

[4] Eduardo de Oliveira Leite, cit., p. 19.

[5] ABNT-NBR-14724, apud Welber de Oliveira Barral, Metodologia da Pesquisa Jurídica, Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 3.

[6] ABNT-NBR-14724, apud Welber de Oliveira Barral, cit., loc.cit.

[7] ABNT-NBR-14724, apud Welber de Oliveira Barral, cit., loc.cit. 

[8] Welber de Oliveira Barral, cit., p. 27.

[9] Eduardo C. B. Bittar, Metodologia da Pesquisa Jurídica, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 29.

 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!