Água na vaca

Mantida condenação de empresários por adulterar leite

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22 de dezembro de 2011, 10h44

Os desembargadores do 2º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgaram improcedente a ação de revisão criminal impetrada por três empresários que foram condenados por misturar água ao leite. De forma unânime, os desembargadores mantiveram os termos do acórdão da 4ª Câmara Criminal que, ao retipificar a conduta criminosa dos réus, aumentou a pena de reclusão de um ano — mínimo legal estabelecido inicialmente na sentença — para quatro anos e oito meses. Não cabe mais recurso.

O processo é originário da Comarca de Venâncio Aires, município distante 130km de Porto Alegre. O Ministério Público estadual relatou que os três sócios-proprietários da microempresa Fischer Indústria de Laticínios, localizada na Linha Grão-Pará, adulteravam o leite recolhido dos produtores com a adição de água. Além da água, acrescentaram, em várias oportunidades, produtos químicos para correção da acidez do leite, em índices que variaram entre 12% a 14% por litro.

De acordo com os autos, as análises químicas feitas por laboratórios autorizados e credenciados comprovaram a redução do valor nutritivo do produto lácteo da Fischer, sendo considerado impróprio para consumo, segundo a legislação vigente. O produto era distribuído em Venâncio Aires, Lajeado e Santa Cruz do Sul. Esta prática, segundo denúncia do MP, teve início no dia 1º de março de 2002 e perdurou até 28 de julho de 2008.

Pelos ilícitos constatados, os sócios foram denunciados como incursos nas penas do artigo 272, caput, na forma dos artigos 29, caput, e 71, caput — todos do Código Penal.

A defesa dos réus pediu em juízo a absolvição dos réus. Sustentou que seus clientes não praticaram o crime descrito pelo MP, já que a água teria sido adicionada ao leite pelos produtores-fornecedores — e não pela empresa de beneficiamento. Logo, reiterou a defesa, não existe o elemento subjetivo, o dolo e a vontade consciente de adulterar o leite.

O juiz de Direito João Francisco Goulart Borges, titular da 1ª Vara da Comarca, afirmou na sentença que a adição de água ao leite reduz o valor nutricional do produto, mas não chega a causar prejuízo à saúde do consumidor. Ressaltou, também, que não existem provas de que os proprietários da Fischer tenham feito a adição; normalmente, esta prática é comum entre os produtores, para aumentar artificialmente seus ganhos.

No entanto, o julgador de primeiro grau destacou que os sócios não estão livres da culpa, pois tinham a obrigação de realizar os testes individualmente, produtor por produtor, para detectar adição indevida de água. ‘‘Os réus tinham o dever de se certificar da qualidade do leite que recebiam, mas optaram pela omissão em benefício próprio, assim como também lucravam com a entrega de um volume maior de leite, artificialmente aumentado pela adição de cerca de 12% de água, prejudicando o valor nutricional do alimento e, assim, causando prejuízo à saúde da população’’, arrematou o juiz.

Assim, o juiz julgou parcialmente procedente a denúncia do MP, condenando os réus às sanções previstas no artigo 272, parágrafo 2º, do Código Penal (Dos Crime Contra a Incolumidade Pública), na modalidade culposa. Por serem primários e com bom antecedentes, os réus foram sentenciados à pena de um ano de reclusão e 10 dias-multa no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo para cada um. A pena restritiva de liberdade foi substituída por prestação pecuniária em favor de entidade assistencial do município, no valor de R$ 1 mil para cada réu condenado.

O Ministério Público considerou a pena branda e entrou com Apelação no Tribunal de Justiça. Em seu arrazoado, argumentou que a prova impõe a condenação dos réus pelo delito do artigo 272, caput, modalidade dolosa, contrariamente ao determinado pela sentença — que os condenou com base no artigo 272, parágrafo 2º, modalidade culposa.

Ciência dos fatos
O relator da Apelação na 4ª Câmara Criminal do TJ-RS, desembargador Marcelo Bandeira Pereira, julgou procedente a Apelação do Parquet estadual, por entender que a conduta culposa não tem como ser chancelada na espécie. Isso porque a empresa admitiu que tinha ciência dos fatos e, mesmo assim, de forma dolosa, continuava a repassar o alimento à população.

‘‘Saliento que, a par das declarações prestadas pelos apelados, documentos apreendidos na empresa, no cumprimento de mandado próprio, indicam que havia o controle e análise do leite adquirido, inclusive com o registro de quantidade de água apurado. Então, bem se vê, se desclassificação coubesse, essa diria com o enquadramento das condutas no parágrafo 1º do artigo 272 do Código Penal, para o qual cominadas as mesmas penas e cuja descrição se acha também presente na denúncia. Feito, porém, este destaque, saliento que o caso é de acolhimento da imputação exatamente como ditada na inicial’’, registrou o relator.

Após expor suas razões decidir, o desembargador Marcelo Bandeira Pereira, manteve as multas aplicadas pela sentença e retipificou a conduta criminosa dos réus para a qualidade dolosa, aumentando a pena-base, de um para quatro anos de reclusão.

Por conta da continuidade delitiva, elevou-a em 1/6, tornando definitivas as reprimendas em quatro anos e oito meses de reclusão, em regime inicial semi-aberto. O voto foi seguido, à unanimidade, pelos demais desembargadores integrantes da 4ªCâmara Criminal: Gaspar Marques Batista e Constantino Lisbôa de Azevedo.

Impugnação da coisa julgada
Após o acórdão ter transitado em julgado, os empresários entraram no TJ com uma ação de revisão criminal, pedindo a anulação do processo e, como consequência, a extinção das punições. Em síntese, alegaram ter havido equívoco na tipificação das condutas a eles imputadas. Alternativamente, solicitaram a desclassificação da imputação penal para os limites do artigo 2º, inciso V, da Lei 1.521/51 — ‘‘Misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes, expô-las à venda ou vendê-los como puros’’. Foi deferida liminar para suspender a execução da pena até deliberação do 2ºGrupo Criminal — formado por desembargadores da 3ª e 4ª Câmara Criminal do TJ gaúcho.

O relator da ação no Grupo, desembargador Nereu José Giacomolli, explicou que a diferença entre os dois tipos penais está no bem jurídico protegido. Enquanto o artigo 272 do Código Penal tem por finalidade a tutela da saúde pública, o artigo 7º, inciso III, da Lei 8.137, tem como objeto a proteção das relações de consumo.

‘‘Daí, o motivo pelo qual é imprescindível, para a adequação típica do fato ao artigo 272 do Código Penal, que a conduta tenha tornado o produto ou a substância nocivo à saúde ou tenha reduzido seu valor nutritivo. A conduta deve ser idônea a essa finalidade. Por outro lado, para a subsunção do fato ao artigo 7º, inciso III, da Lei 8.137/90, basta a mistura de gêneros ou mercadorias de espécies diferentes ou desiguais, com o intuito de vendê-los ou expô-los à venda como puros ou pelo preço mais alto. O bem jurídico, neste caso, não é a saúde pública, mas a estabilidade e a lisura das relações de consumo, motivo pelo qual não importa se os gêneros ou mercadorias misturadas são ou não nocivos à saúde e se têm ou não seu valor nutritivo reduzido’’, ensinou Giacomolli.

No caso concreto, explicou, a denúncia imputou aos empresários a adulteração de leite mediante o acréscimo de água, o que resultou na redução do valor nutritivo do produto – tudo devidamente comprovado por laudos periciais e reconhecido pelos donos da Fischer.

‘‘Assim, não identifico nenhum equívoco na adequação típica do fato ao artigo 272 do Código Penal, a impor a desconstituição da sentença ou a readequação típica do fato. (…). Não há, no ponto, nenhuma prova nova a autorizar a desclassificação da conduta imputada aos réus, seja para o tipo do artigo 7º, inciso III, da Lei 8.137/90, seja para a modalidade culposa, prevista no parágrafo 2º do artigo 272 do Código Penal’’, afirmou o relator, ao julgar improcedente a ação de revisão criminal e cassar a liminar concedida.

Participaram do julgamento os desembargadores Marcelo Bandeira Pereira (presidente), Gaspar Marques Batista, Ivan Leomar Bruxel, Constantino Lisbôa de Azevedo e Francesco Conti, em sessão realizada dia 14 de outubro.

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Aqui para ler o acórdão da 4ª Turma Criminal
E aqui para ler a decisão do 2º Grupo Criminal

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