Falha burocrática

Estudo detecta discriminação no perdão presidencial

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6 de dezembro de 2011, 7h16

Um estudo da ProPublica — Journalism in the Public Interest (Jornalismo de Interesse Público) deixou autoridades do governo Obama e do ex-governo Bush envergonhados. O estudo revelou que, na última década, o instituto do perdão presidencial a condenados pela Justiça beneficiou pelo menos quatro vezes mais a brancos do que a negros, mesmo em casos em que os tipos de crimes e as condenações foram bastante similares.

Autoridades do Departamento de Justiça dos EUA e da Casa Branca se declararam "surpresos", "desalentados" e "pasmos" com as revelações do estudo. E prometeram rever o atual sistema de perdão presidencial, em que o presidente segue, cegamente, as recomendações de um escritório instalado dentro da Presidência, exclusivamente para recomendar clemência a condenados. O estudo também revelou que, entre os brancos, o sistema favorece os mais ricos, em detrimento dos pobres. E que influência política exerce um forte papel na escolha dos beneficiados.

Durante seus dois mandatos, o ex-presidente Bush concedeu menos perdões presidenciais do que o ex-presidente Richard Nixon aprovou em um ano. Seu escritório de perdão presidencial avaliou 1.918 casos e, segundo o ProPublica, recomendou o perdão para 189 pessoas: 176 brancos (93%), 7 negros, 4 latinos, 1 asiático e um nativo-americano.

Para ilustrar a discriminação racial no processo de concessão de perdão presidencial, o ProPublica citou alguns casos, com destaque para as histórias da mulher negra Denise Armstead e da mulher branca Margaret Legget e seu marido, todos de Little Rock (capital do estado de Arkansas) e acusados do mesmo crime: sonegação de imposto de renda. A mulher branca e seu marido foram perdoados; a mulher negra, não. Em outro exemplo, o ProPublica citou os casos de um negro, veterano de guerra do Vietnã, que foi condenado pela primeira vez pela posse de 1,1 grama de crack, e um branco que foi condenado, pela quarta vez, a última por vender 1.050 gramas de metanfetamina. O branco foi perdoado, o negro, não.

Sobre as mulheres, a reportagem do ProPublica — reproduzida na íntegra pelo Washington Post — conta que a cabeleireira negra Denise Armstead foi acusada pelo governo, em 1994, de deixar de declarar receitas de US$ 32 mil em um período de quatro anos. Ela contratou um advogado, que conseguiu provar que não houve sonegação em três anos e reconheceu um problema apenas em 1989, por causa de uma falha do contador que preencheu a declaração do imposto de renda. O advogado, um ex-agente da Receita Federal dos EUA, fechou um acordo para ela não ir a julgamento. Denise pegou três anos de liberdade vigiada e pagou multa de US$ 3 mil, em prestações mensais.

Por sua vez, Margaret Leggett e seu marido, que são brancos, foram acusados de fraudar o imposto de renda, para receber retornos no valor de US$ 25 mil. Em 1981, Margaret alugou um apartamento com um nome fictício e seu marido criou uma conta bancária fraudulenta e números falsos do Social Security (o número do SS equivale ao CPF no Brasil). Com esse esquema, declararam renda mínima e obtiveram retornos do imposto de renda (com base em um crédito que o governo dá a todos os contribuintes). Eles se declararam culpados no tribunal. Ela foi sentenciada a três anos de prisão, mas foi solta depois de três meses; ele pagou multa de US$ 5 mil e serviu 15 meses de prisão.

Anos mais tarde, as duas, boas candidatas ao perdão presidencial porque aceitaram suas responsabilidades perante o tribunal, cumpriram suas sentenças com bom comportamento, não tinham outras condenações e frequentavam suas igrejas, preencheram o longo requerimento para obter o benefício. Em abril de 2006, o presidente Bush seguiu a recomendação de seu escritório de perdões presidenciais, e concedeu o benefício à empresária Margaret. Um ano depois, também seguindo a recomendação burocrática, negou o benefício à cabeleireira negra Denise.

O poder constitucional do presidente dos EUA se limita a conceder perdão a condenados por crimes federais, na maioria dos casos relacionados a crimes financeiros ou relacionados a drogas. O perdão presidencial não apaga a condenação, mas restaura os direitos da pessoa ao voto, à posse de arma e de servir como jurado em tribunais federais. Mais importante que isso, para as pessoas, é que o perdão presidencial restaura os direitos de obter licenças e permissões para operar empresas e remove barreiras para conseguir emprego e tentar novas carreiras profissionais.

A mulher negra Denise Armstead pediu o perdão presidencial porque queria ser enfermeira. Mas a lei do estado de Arkansas, onde vive, requer atestado de antecedentes criminais para que uma licença seja concedida a candidatos à profissão de enfermeiro. O pedido de perdão também requer que seja apresentada uma razão que o justifique e essa era a razão dela. Para Margaret Leggett, a razão era de obter licenças para abrir novas empresas. Desde então, ela e o marido abriram 18 negócios, o que não teria sido possível sem o perdão presidencial.

O ex-presidente Bush criou o escritório de perdões presidenciais para evitar influências políticas. Seu antecessor, o ex-presidente Bill Clinton, teve de enfrentar um escândalo, porque ele concedeu perdão presidencial a Marc Rich, acusado de um crime financeiro e fugitivo. Depois que sua mulher fez doações ao Partido Democrata e à Biblioteca Presidencial Bill Clinton, ele obteve o perdão.

Mas o ex-presidente Bush acabou enfrentando seus próprios escândalos. Devido a influências políticas, ele concedeu perdão presidencial ao empreendedor imobiliário Isaac Toussie, de Nova York, que fez doações para o Partido Republicano. Toussie foi condenado em 2002 por falsificar documentos de pessoas de baixa renda e fraudar o sistema de financiamento imobiliário. Ele passou cinco meses na prisão, mais cinco meses em prisão domiciliar, três anos em liberdade condicional e pagou multa de US$ 10 mil. Ele não cumpriu todos os requisitos para obter o perdão presidencial, mas o obteve na última leva de perdões que Bush assinou em 23 de dezembro de 2008, pouco antes de deixar a Casa Branca, o que levou as famílias nova-iorquinas prejudicadas pelo esquema imobiliário do empreendedor ao "desespero", diz o ProPublica.

De acordo com a publicação, a tentativa de excluir influências políticas do processo de concessão de perdão presidencial não funcionou. Documentos do Departamento de Justiça mostram que, na última década, quase 200 membros dos dois partidos contataram o escritório de perdões, para influenciar em casos pendentes. Em quase todos os casos, os condenados ou suas famílias fizeram doações substanciais às campanhas eleitorais dos parlamentares e, na maioria das vezes, foram bem-sucedidos.

A sala de horrores em que se transformou o escritório de concessões de perdão presidencial começou com boas intenções. O ex-presidente Bush criou uma instituição burocrática, com a missão de substituir por critérios objetivos todo o processo anterior, contaminado por influências políticas. Um dos primeiros erros foi que a atividade do escritório se tornou uma operação secreta, em que sequer os motivos da aprovação ou da negação do pedido eram divulgados. A falta de transparência abriu caminho para as reinvestidas políticas no processo.

Os critérios foram definidos, mas mal escolhidos e cumpridos de forma burocrática. Um critério, por exemplo, estabeleceu que o condenado deve ter assumido responsabilidades pelos seus erros e mostrado remorso. Denise Armstead (como outros tantos) falhou nesse requisito, porque ela e seu advogado não aceitaram as acusações e demonstraram que não houve qualquer erro em suas declarações de renda em três dos quatro anos mencionados pela Receita.

Outro critério é o de que o pedido de perdão presidencial deve ser avaliado pelos promotores e juízes envolvidos no julgamento do caso. Denise Armstead não foi a julgamento, porque, através de seu advogado, fez um acordo em que aceitava uma pena menor para não levar o caso à decisão judicial. Por isso, seu pedido não poderia ser aprovado por qualquer juiz ou promotor. Todos os que fazem acordo são reprovados nesse critério, porque, burocraticamente, é um quesito não cumprido.

Do ponto de vista burocrático, para ter o direito ao benefício, o cidadão tem, então, de ir a julgamento (não fazer acordo) para, posteriormente, ser beneficiado pela opinião do juiz e do promotor, e não se defender, porque tem de assumir a responsabilidade por seus erros — e mostrar remorso.

Outras condições: o candidato deve esperar cinco anos após o cumprimento de sua pena para se qualificar; a conduta, o caráter e a reputação do condenado, depois que cumprir sua sentença, serão avaliados; a vida "estável" dos candidatos, conjugal e financeira, será levada em consideração; a boa situação financeira é um requisito fundamental: ex-condenados com grandes dívidas com cartões de crédito, com os bancos e que já fizeram pedido de falência não são bons candidatos; também não são bons candidatos os desempregados o que têm dificuldades para conseguir emprego.

O último critério derruba a maioria dos candidatos, porque ex-condenados têm dificuldades para conseguir emprego. O conjunto de restrições financeiras, que se baseia na ideia de que quem está mal de vida financeiramente apresenta maior probabilidade de voltar ao crime, derruba todos os candidatos de classes menos favorecidas, negros e brancos — pela "instabilidade financeira", mais os negros não latinos, que representam 39,4% da população carcerária dos EUA, e os latinos, incluindo latinos negros, com 12,6% da população carcerária, segundo as Estatísticas Judiciárias do Departamento de Justiça dos EUA.

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