Ideias do Milênio

Paquistão é trunfo para relações com Afeganistão

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19 de agosto de 2011, 11h37

g1.globo.com/milenio
Entrevista de Anatol Lieven, professor do King’s College, de Londres, e escritor especializado em Paquistão, ao jornalista Sílio Boccanera para o programa Milênio, da Globo News, transmitido em 1º de agosto. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Tropas de elite americana entram às escondidas em território soberano do Paquistão e matam Osama Bin Laden. Humilhação para o exército paquistanês. Senão pela descoberta do chefe terrorista sob o nariz dos militares, então humilhação pela incompetência de nem ter percebido uma força estrangeira entrar no país, matar gente, capturar outros e ir embora sem ser notada pelos encarregados da defesa nacional. Há quem desconfie que o exército sabia da presença de Bin Laden ali há seis anos, mas o protegia. Anaol Lieven, o entrevistado do Milênio, acredita nesta tese. O país não tem um exercito. O exército tem um país. Quase 200 milhões de pessoas vivem no Paquistão, a maioria com menos de 25 anos. É alto o nível de desemprego e de pobreza, existe ameaça de desastre ecológico, mas não se trata de um estado falido garante o entrevistado. Aliado de primeira hora dos Estados Unidos na luta contra a Al-Qaeda, às vezes mais de olho nas verbas americanas do que nas metas políticas e militares de Washington, o Paquistão se vê cada dia sob fogo mais intenso de extremistas islâmicos. Que país é esse que o escritor indiano Salman Rushdie pede que seja declarado estado terrorista e a revista Newsweek já chamou de o país mais perigoso do mundo? É o que Milênio tenta discutir em conversa com Anatol Lieven, professor do King’s College de Londres. Estudioso do país asiático, onde ele morou e sobre o qual escreve há mais de 20 anos, além de visitar com freqüência. Lieven acaba de lançar o já bem recebido livro Paquistão, um país difícil.

 Silio Boccanera — Se pensarmos no Paquistão pelo ponto de vista da América Latina, há semelhanças entre os dois, principalmente nos anos 1960 e 1970, no que se relaciona às forças armadas. Apesar de, às vezes, haver um civil no poder, os militares sempre estiveram por trás, comandando as situações, dando ordens. Essa é mais ou menos a situação do Paquistão hoje?
Anatol Lieven — Sim, em grande parte. Principalmente, é claro, em tudo que esteja relacionado à segurança, são as Forças Armadas que decidem. As Forças Armadas controlam grandes partes do governo, quando estão no poder ou fora dele. Achei engraçado após a morte de Bin Laden, quando um jornalista americano me perguntou: “Como o presidente Zardari não sabia que o Bin Laden estava em Abbottabad?” Eu disse: “Talvez ele fosse a última pessoa do país a quem os militares informariam.” Se eles o estivessem abrigando, o que não foi provado. Mas, sim, os militares são o “Estado profundo”, como se diz.

Silio Boccanera — Eles também veem a si mesmos como os militares da América Latina se viam nos anos 1960, 1970 e em parte dos 1980, como a única instituição capaz de administrar a sociedade porque todo o resto é caótico?
Anatol Lieven — É praticamente isso. Acho que o Paquistão ainda mais do que a América Latina. Um dos motivos é que as Forças Armadas são a única parte meritocrática do Estado. Como o sistema político, os negócios e a posse de bens são estruturados em torno da hereditariedade, de clãs, e, claro, da riqueza, isso dá aos militares a grande ideia de que eles são a única parte do Estado que é honesta e eficiente.

Silio Boccanera — E há também o fato de que as lideranças políticas e civis não ajudam muito porque tendem a ser ineficientes, incapazes e corruptas, mais do que as Forças Armadas.
Anatol Lieven — As pessoas dizem que as Forças Armadas paquistanesas prejudicaram muito o governo democrático. Isso é verdade até certo ponto, mas é preciso dizer que o governo democrático do Paquistão também prejudicou muito o governo democrático, principalmente pela corrupção e incompetência. A corrupção é parte integrante desse sistema. Todo o sistema político gira em torno da extração de benefícios do Estado e da sua distribuição para os seguidores. Por isso, as pessoas entram na política, é assim que elas conseguem apoio. Isso dá ao sistema uma enorme estabilidade e resistência. O que isso não dá ao sistema é a capacidade de progredir e de se desenvolver.

Silio Boccanera — Outro aspecto das instituições do Paquistão que você descreve muito bem em seu livro é o sistema legal. Como você descreveu, ele funciona em três níveis. Há as leis oficiais, escritas, herdadas do império britânico, que ainda são usada em inglês nos tribunais e que beneficiam principalmente os ricos. Há outro nível que tem a ver com as leis tribais e tradições. E, claro, existe a sharia, a lei muçulmana. E todos os três níveis funcionam simultaneamente. Como eles conseguem isso?
Anatol Lieven — A resposta, obviamente, é: “Não conseguem muito bem.” Existem discordâncias entre esses três níveis. A predominância moral da lei consuetudinária, baseada na lealdade à família, é uma das coisas que destrói a lei do Estado porque, em qualquer caso no interior do Paquistão, haverá 50 testemunhas de cada um dos lados, mentindo descaradamente para defender os seus parentes. Por pior que a polícia paquistanesa seja, ela inspira compaixão nessas situações. Como eles podem descobrir a verdade desse jeito? Enquanto isso, como pano de fundo, o Talibã ofereceu a sharia como a grande alternativa. As pessoas comuns do Paquistão que simpatizam com o Talibã nesse ponto de vista frequentemente não o fazem só porque querem a sharia em si. A sharia é uma espécie de codinome para uma justiça mais transparente, honesta e rápida, que também seria feita no vilarejo, e não na língua inglesa numa cidade a 100 km.

Silio Boccanera — Outro aspecto que é parte do Paquistão é a pobreza disseminada, é um país pobre. A economia se baseia em quê?
Anatol Lieven — Ela se baseia na agricultura, no processamento de alimentos, no setor têxtil, na exportação e, até certo ponto, no processamento do algodão. Há uma certa quantidade de minerais e gás, não muita. Acima de tudo, a ocupação da maioria das pessoas é na agricultura ou em serviços informais, em lojas, em trabalhos ocasionais nas cidades, na construção, no artesanato e na manufatura de nível inferior, nesse tipo de coisa. É uma economia muito tradicional em diversos aspectos. Aliás, é isso que lhe dá resistência em alguns aspectos. As terríveis estatísticas sobre a economia paquistanesa não são tão terríveis quanto parecem porque grande parte da economia é informal, do mercado negro e cinza, de base familiar, e não aparece nas estatísticas.

Silio Boccanera — Não podemos entender o Paquistão sem pensar na Índia. É uma paranoia do governo e das Forças Armadas. O Paquistão é obcecado pela Índia. E o inverso não é verdadeiro. Por que essa obsessão?
Anatol Lieven — O Paquistão é muito menor. Se você tem um vizinho muito hostil, com quem travou três guerras, teve inumeráveis conflitos, que tem uma população oito vezes maior, que agora vai ter uma economia 12 vezes maior e tem um orçamento militar de US$ 38 bilhões, enquanto o seu é de US$ 4 bilhões… Qualquer um ficaria um pouco nervoso. É claro que, no caso das Forças Armadas paquistanesas, toda a sua existência e a sua mentalidade são estruturadas em torno da hostilidade à Índia. E isso teve efeitos muito negativos. Dito isso, os indianos não ajudaram muito. A Índia não é obcecada pelo Paquistão nesse mesmo grau, mas o principal partido indiano de oposição, o Bharatiya Janata, é obcecado por muçulmanos e pela ameaça do Islã. E isso levou a massacres extremamente sórdidos.

Silio Boccanera — Essa obsessão pela Índia no Paquistão também ajuda a explicar o comportamento deles na crise atual, tanto a ajuda que deram ao Talibã quanto a atitude em relação ao Afeganistão, a Al Qaeda etc. A obsessão deles pela Índia faz parte disso, não faz?
Anatol Lieven — Faz. As Forças Armadas paquistanesas, grande parte do Estado e boa parte da população estão totalmente convencidos de que a Índia quer transformar o Afeganistão num estado satélite da Índia e num inimigo deles, cercando assim o Paquistão. E é verdade que as forças que a Índia subsidiou no Afeganistão, a antiga Aliança do Norte, os Panjshir Tajiks, são fortemente contrários ao Paquistão. Por isso, as Forças Armadas paquistanesas dizem particularmente que têm que abrigar o Talibã afegão, porque todos irão embora, vai haver uma guerra civil, a Índia vai ter seus aliados no Afeganistão e o Paquistão tem que ter os deles. Há certa racionalidade nisso. O problema é que eles constroem em cima disso uma espécie de arquitetura barroca de paranoias em que eles acham que até os talibãs paquistaneses são agentes indianos e assim por diante, o que é uma loucura total.

Silio Boccanera — Então houve os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA. E a intervenção estrangeira afetou o Paquistão de novo. Como?
Anatol Lieven — Ela levou a liderança e os membros do movimento Talibã afegão a atravessar a fronteira, entrando nas áreas tribais paquistanesas. Somando-se a isso nos anos 1980, toda uma infraestrutura islâmica havia sido construída com dinheiro do Ocidente e da Arábia Saudita para apoiar os mujahedin afegãos. Isso se manteve, deu apoio aos talibãs afegãos nos anos 1990 e, depois do 11 de Setembro, eles simplesmente voltaram ao roteiro dos anos 1980: “Vamos dar apoio à resistência afegã contra um invasor estrangeiro no Afeganistão.” Além disso, as tribos pashtun dessa área atravessam as fronteiras. As mesmas tribos vivem no Afeganistão e no Paquistão. Essa fronteira traçada pelos britânicos, como na África…

Silio Boccanera — … como em todo o Oriente Médio.
Anatol Lieven — Isso. Passando pelo meio das tribos. Então é claro que as pessoas do lado paquistanês se identificam totalmente com a resistência tribal do outro lado da fronteira. O que aconteceu quando os americanos derrubaram o Talibã foi a radicalização das áreas tribais paquistanesas. Então a proteção dada ao Talibã afegão no Paquistão não é só a questão da unidade das Forças Armadas paquistanesas, apesar de isso ser um fato. O que eu descobri nas minhas viagens ao Paquistão é que isso também é apoiado por uma grande parte da população, principalmente entre os pashtuns do Paquistão. Isso em relação aos talibãs afegãos. Em relação à Al Qaeda, é muito complicado. Há muitas suspeitas agora de terem abrigado o Bin Laden.

Silio Boccanera — O que o senhor acha disso? As Forças Armadas sabiam ou foram simplesmente incompetentes? Sabemos que o governo civil não sabia nada, mas as forças armadas sabiam que Bin Laden estava lá e decidiram ignorar o fato? Ou ficaram totalmente surpresas com isso?
Anatol Lieven — Eu diria que há uma chance de 30% ou 25% de ter sido por incompetência, de que eles não sabiam. Eu diria que o saldo dessa probabilidade é de que ao menos uma pessoa do serviço de inteligência sabia. E isso leva a duas possibilidades. Uma é que foi uma decisão vinda de cima. Nesse caso, acho que a intenção era de, alguma hora, usar o Bin Laden como trunfo numa negociação, dá-lo aos americanos em troca de… 

Silio Boccanera — “Sabemos que ele está lá. Vamos guardá-lo e usá-lo na hora certa.”
Anatol Lieven — Isso. Um cenário mais ameaçador seria o de haver uma conspiração secreta de um grupo favorável à Al Qaeda dentro da ISI [Serviço de Informações Internas, a agência de inteligência do governo paquistanês]

Silio Boccanera — Isso é provável?
Anatol Lieven — É possível. A questão é que, nos anos 1980, a ISI era a instituição que passava o dinheiro americano e saudita para os mujahedin afegãos. E eles ficavam com uma parte. Isso significa que não só a ISI como um todo, mas setores dentro da ISI, têm suas fontes secretas de financiamento, independente do comando da ISI e das Forças Armadas. Esse grupo dentro da ISI realmente têm dinheiro para dirigir suas próprias operações, o que é profundamente ameaçador. Mas a instituição é tão opaca e cheia de segredos que as Forças Armadas resistem de forma taxativa a qualquer tipo de investigação ou exame. Então simplesmente não sabemos.

Silio Boccanera — Com este episódio recente do assassinato de Bin Laden, tanto o serviço de inteligência quanto as Forças Armadas, sem falar do governo, se sentiram publicamente humilhados em todo o mundo. Essa relação entre os EUA, tanto com o governo civil quanto com as Forças Frmadas, é muito sensível. As Forças Armadas não escondem que não gostam dos americanos, mas, ao mesmo tempo, recebem bilhões de dólares deles. Como se mantém o equilíbrio?
Anatol Lieven — É realmente como andar na corda bamba porque os soldados comuns detestam os EUA e detestam serem vistos como escravos dos americanos, matando seu próprio povo. Até agora, as Forças Armadas recebem benefícios suficientes dos americanos e também têm medo suficiente dos EUA para continuar esse relacionamento. Mas se pensa cada vez mais sobre alternativas no Paquistão. É importante notar que, neste momento, o primeiro-ministro paquistanês está na China. E a China já é uma grande financiadora das Forças Armadas paquistanesas. Ela construiu muita infraestrutura no Paquistão. E muitos paquistaneses esperam que a China possa ser convencida a substituir os EUA e a ajuda americana.

Silio Boccanera — Uma alternativa, uma opção para sair dessa situação, é os EUA e os países do Ocidente negociarem com o Talibã algum tipo de acordo político. Há chance de isso acontecer?
Anatol Lieven — Com certeza, acho que vale a pena explorar isso. Se fizermos isso, o Paquistão, em vez de um problema, será um trunfo indispensável, porque, basicamente, só o Paquistão poderia mediar um acordo desses, levar o Talibã à mesa de negociações. Acho que também vale a pena examinar isso por causa de algo que os americanos negligenciam, já que não sofrem por isso, mas com o qual os europeus, os russos, os iranianos e até os chineses se preocupam muito: o tráfico de heroína. Nos últimos 30 anos, a única força que conseguiu ser linha dura na produção de heroína no Afeganistão são os talibãs, pois são os únicos que realmente controlam o interior do país.

Silio Boccanera — Onde a heroína é produzida, o ópio…
Anatol Lieven — Exatamente. Para mim, uma parte crucial de qualquer acordo com o Talibã seria os talibãs concordarem em cortar o tráfico em troca de reconhecimento e ajuda. Mas as duas linhas centrais do acordo teriam que ser, primeiro: o Talibã controlaria certas áreas do Afeganistão enquanto não tentaria conquistar o país todo. Então os povos não-pashtun governariam a si mesmos, e haveria uma tênue divisão de poder no governo.

Silio Boccanera — Por muitos anos, como você disse, falávamos dos talibãs no Afeganistão, de um grupo que você poderia apoiar ou não, e o Paquistão simpatizava muito com eles, pelas razões que você citou. Mas agora há uma subdivisão, a dos talibãs paquistaneses, que está criando muito problema lá. Como isso muda a equação?
Anatol Lieven — É infernalmente complicado. É uma das razões de o meu livro ser tão grande. É realmente complicado. Porque, por um lado, os talibãs paquistaneses e afegãos são intimamente ligados. Por outro lado, o Talibã afegão, o próprio Mulá Omar, implorou publicamente ao Talibã paquistanês para que parasse de combater o Paquistão porque eles tinham criado planos separados.

Silio Boccanera — Os paquistaneses sempre podiam dizer que o Talibã não os combatia, nem causava problemas, mas agora a versão local do Talibã está causando problemas.
Anatol Lieven — Mas o Talibã afegão não está. Os grupos extremistas islâmicos dentro do Paquistão se separaram. Alguns deles se rebelaram contra o Estado paquistanês. A Polícia e as Forças Armadas paquistanesas os combatem duramente. E cruelmente. Eu estive numa área, em Swat, onde há alguns anos houve uma grande contraofensiva militar. A Human Rights Watch documentou numerosas execuções extrajudiciais lá. Julgando pelos meus encontros com pessoas de lá, isso é verdade. O que indica que as Forças Armadas lutam cruelmente contra os inimigos do Estado paquistanês. Mas a outros militantes que, no passado, tinham a Índia como alvo, que ainda não se revoltaram contra o Paquistão, as forças armadas dizem: “Eles não nos combatem, então não os combateremos.”

Silio Boccanera — O senhor pintou esse retrato de diferentes grupos extremistas que agem no Paquistão contra o próprio Paquistão. O senhor vê vê uma ameaça de tomada de poder pelos fundamentalistas no Paquistão?
Anatol Lieven — Se as coisas permanecerem como estão, não. Em parte, porque há muitos grupos diferentes. Não é como o Irã, onde há uma classe dominante teológica fundamentalmente unida, com uma religião nacional, que se reflete, aliás, no fato de serem uma nação, com uma língua. Com minorias realmente pequenas. O Paquistão se divide seguindo diferentes seitas religiosas, segundo a etnicidade, as províncias… Um homem que cito no livro diz: “Nós, paquistaneses, não concordamos em relação à revolução islâmica porque não concordamos em nada.” O que eu vi desta vez ao visitar áreas que foram liberadas pelas Forças Armadas é que elas são fortes o bastante para derrotar as revoltas. As revoltas, ao contrário do terrorismo, se restringem a algumas áreas pashtun do país. O risco, o perigo para o Estado, é as Forças Armadas se dividirem. Na minha opinião, a única coisa que pode dividir as Forças Armadas e causar um sério motim dentro delas são os EUA. Em outras palavras, se os EUA fizerem coisas que muitos soldados paquistaneses consideram totalmente intoleráveis, tão intolerável que eles façam um motim contra seus generais para combater os EUA. A raiva em relação ao ataque surpresa no Paquistão para matar o Bin Laden é, na minha opinião, um aviso em relação a isso. Neste caso, em um ataque-relâmpago, as Forças Armadas não podem fazer muita coisa. Mas, Deus no livre, se os EUA tornarem esses ataques uma estratégia de longo prazo, em breve, haverá um incidente em que os soldados paquistaneses atirarão nos americanos. Se receberem ordens para não atirar, me disseram que há grande chance de haver um motim. E, se fizerem isso, o antiamericanismo entre a população é tão grande que grande parte da população ficaria ao lado deles. Nesse caso, veríamos o Paquistão se deteriorar muito rápido. Mas seria preciso haver divisão das Forças Armadas. Se as Forças Armadas ficarem unidas, elas conseguirão manter o país unido, na minha opinião.

Silio Boccanera — Analisando o Paquistão no nível das relações públicas, sua imagem é ruim em comparação à velha rival, a Índia. A Índia é uma potência emergente, está ficando rica, é um dos Brics etc. Enquanto o Paquistão é visto por muita gente como um Estado falido, que, como o senhor disse, não é. Mas ele está perdendo nesse aspecto. Sua imagem para o resto do mundo é negativa.
Anatol Lieven — Sim, é. E, claro, a questão do Bin Laden foi outro golpe terrível para o Paquistão nesse ponto de vista, com a suspeita de que as Forças Armadas ou a inteligência o estavam abrigando. É preciso dizer que, sob vários pontos de vista, o Paquistão merece a crítica, principalmente em relação ao patrocínio do terrorismo contra a Índia nos anos 1990, na verdade, até 2008 em Mumbai (antiga Bombaim). O Estado e as Forças Armadas do Paquistão têm que responder por muita coisa. Mas, em certos aspectos, sim, sua fama é muito ruim. A extensão das perdas do Paquistão como resultado da guerra ao terror nunca foi totalmente reconhecida no Ocidente. O Paquistão sofreu a morte de 30 mil pessoas, dez vezes mais mortes do que nos atentados de 11 de Setembro.

Silio Boccanera — E eram civis.
Anatol Lieven — Sim, eram civis, e mais de 3.500 soldados e policiais, incluindo mais de 80 oficiais da inteligência. Um dos mais famosos, o coronel Imam, foi morto pelo talibã paquistanês em janeiro. Esse lado das coisas não foi compreendido adequadamente. 

Silio Boccanera — O Paquistão foi criado como Estado muçulmano, tem uma população muçulmana, e foi bem moderado durante várias décadas. De repente, houve uma radicalização lá, dentro de uma minoria da população muçulmana. Como essa evolução aconteceu? Como passaram daquela época para a situação atual?
Anatol Lieven — Uma das coisas que é preciso entender sobre a moderação do Islã no Paquistão é que ele não era moderado da forma como pensamos, ele era conservador no sentido amplo do termo. Ouso dizer que ele era, de diversas formas, “católico”. Era o catolicismo conservador extremamente supersticioso da Europa rural tradicionalista, talvez… 

Silio Boccanera — Como a Itália, Portugal, Espanha…
Anatol Lieven — Isso. Em grande parte imutável, concentrado em santos e superstições locais, em lugares santos, cultos…

Silio Boccanera — O islamismo não aceita essas coisas, mas lá havia isso.
Anatol Lieven — E ainda há em boa parte do mundo muçulmano. Os santos sufis são extremamente importantes. Então, em parte como resultado da urbanização, da educação, do fato de as pessoas saírem do interior para as cidades e receberem mais instrução, aconteceu, digamos assim, um “movimento protestante” no Paquistão. Alguns eram mais radicais, outros menos. Mas há aspectos da Europa dos séculos 16 e 17 nisso. Aconteceram movimentos reformistas radicais dentro do Islã. Mas eles têm dois aspectos, no caso do Paquistão. Um é o de quererem uma revolução dentro do Paquistão para transformar a sociedade paquistanesa. Mas, no Islã, esses movimentos desde sua origem no século 18, sempre foram também fortemente contra o Ocidente porque eles veem o Ocidente representando não só o velho inimigo cristão, mas também as formas modernas de corrupção, de mudança social, de modernizações antimuçulmanas…

Silio Boccanera — Até recentemente, a Grã-Bretanha era vista assim, e agora os EUA são.
Anatol Lieven — Correto. E a Índia e Israel são vistos como representantes locais e substitutos dos EUA.

Silio Boccanera — Como parte dessa evolução, os momentos cruciais foram a invasão soviética no seu vizinho, o Afeganistão, e depois a Al Qaeda, com tudo o que aconteceu, e os atentados de 11 de Setembro. Primeiro, vamos falar sobre a parte soviética. O que aconteceu com o Paquistão quando os soviéticos invadiram o vizinho Afeganistão? Qual foi o efeito lá dentro? O que foi feito?
Anatol Lieven — Bem, os EUA e a Arábia Saudita basicamente injetaram enormes quantias de dinheiro no Paquistão para criar os mujahedin afegãos para combater os soviéticos. Em parte por causa da tradição do Afeganistão, em parte por causa do regime Islâmico de Zia-ul-Haq no Paquistão, boa parte desse dinheiro criou partidos afegãos muçulmanos radicais.

Silio Boccanera — Com a desculpa de combaterem os soviéticos.
Anatol Lieven — Com certeza. Devemos dizer que alguns foram combatentes mais eficazes contra os soviéticos. 

Silio Boccanera — Incluindo o Osama Bin Laden.
Anatol Lieven — Sim, ele era… E isso absorveu os voluntários árabes radicais e estabeleceu as bases do que mais tarde se tornou a Al Qaeda. Por acaso, estive lá com os mujahedin como jornalista britânico. Conheci esses árabes e tive experiências desagradáveis porque, mesmo quando estavam sendo armados e vestidos pelo Ocidente, eles não faziam o menor esforço para esconder o seu ódio pelos EUA ou o fato de que, ao derrotarem os soviéticos, se voltariam contra nós.

Silio Boccanera — Coisa que fizeram.
Anatol Lieven — Fizeram.E qualquer pessoa do establishment americano que diga: “Esse antiamericanismo não estava lá na guerra no Afeganistão. Tudo começou em 1990.” Mentira! Qualquer um que conhecesse essas pessoas sabia disso na época. 

Silio Boccanera — Com todo esse cenário complicado, que tipo de pessoa entra nos grupos extremistas do Paquistão hoje em dia? São pessoas jovens, muçulmanos radicais? Por que eles entram? Quem são essas pessoas? Não é só por razões religiosas.
Anatol Lieven — Haveria três tipos básicos. Um é o do pashtun sem instrução, muito pobre, que, frequentemente, é membro de uma tribo. No começo, muitas vezes bastante motivado pela simpatia com a jihad afegã contra os EUA, o que o leva ao talibã paquistanês e então ele se torna parte da revolução no Paquistão. Muitos soldados de infantaria e os homens-bomba são assim. Os homens-bomba do Paquistão, geralmente, são jovens e sem instrução vindos da fronteira, dos vilarejos. O segundo tipo seria de uma pessoa muito mais instruída, da cidade, de classe média baixa, que freqüentou uma escola melhor, com educação de nível mais alto em termos muçulmanos, às vezes, tiveram até mesmo uma educação ocidental. Mas que, apesar disso, simplesmente acreditou em todo o discurso revolucionário islâmico radical e foi…

 Silio Boccanera — Num nível intelectual?
Anatol Lieven — Isso mesmo. Esse tipo de pessoa é uma ameaça muito maior no terrorismo contra o Ocidente. Vimos isso nos bombardeios em Londres.

Silio Boccanera — Pessoas com fortes vínculos com Paquistão, mas nascidas na Grã-Bretanha.
Anatol Lieven — Exato. E eram instruídas, da classe média. E essas pessoas com frequência, originalmente entram em grupos para combater a Índia, mas agora que essa jihad acabou eles estão passando para a revolução interna. O terceiro tipo era e ainda é um sectário que, essencialmente por razões locais, odiava a minoria xiita do Punjab e há alguns grupos terroristas antixiitas terríveis que operam lá desde meados da década de 1980. O Estado periodicamente volta a essa época e os reprime intensamente, então eles são naturalmente contra o Estado paquistanês, se aliaram ao Talibã paquistanês e também se revoltaram. Eles também se revoltaram socialmente, porque são contra a aristocracia xiita local, e se encaixam no discurso revolucionário socialista do talibã.

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