Cooperação Internacional

Não é fácil distinguir jurisdição e competência

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

17 de agosto de 2011, 14h19

Spacca
A dificuldade para distinguir jurisdição e competência agrava-se diante da existência de uma terceira ordem de limites ao poder de julgar, chamada “competência internacional”, terminologia que se deve, na visão de Hélio Tornaghi, a uma “convenção tácita” entre os autores de Direito Internacional Privado e de Processo ([1]). Seja qual for a razão que leve os especialistas ao emprego dessa expressão, ou que tenha levado o legislador do Código de Processo Civil brasileiro a utilizá-la nos seus artigos 88 e seguintes, é importante observar a advertência[2] de que a denominação “competência internacional” pode conduzir a analogias erradas com as normas que proveem distribuição de jurisdição entre vários órgãos jurisdicionais do mesmo Estado.

Competência é sempre delimitação da jurisdição. Reconhece-se ao Estado um amplo poder de dizer o direito (jurisdição), que, para autores como Gaetano Morelli, é ilimitado ([3]): “…es concebible en abstracto que el Estado ejerza ilimitadamente su propia jurisdicción; es decir, que la ejerza respecto de la composición de todas las litis posibles, aun de las que no están en modo alguno vinculadas con él”.

Quando se tem a concepção de jurisdição como poder ilimitado, é fácil deduzir a diferença entre esse conceito e a noção de competência internacional, que seria um limite auto-imposto pelo Estado àquele “super-poder” de julgar quaisquer causas que sejam propostas perante seus juízes.

Contudo, a visão de que a jurisdição é poder sem limites não enxerga a realidade, sendo mais uma daquelas ficções que os juristas de um tempo costumavam se valer para dar explicações que não se encaixavam em seus modelos teóricos. A função jurisdicional, como uma das expressões do poder soberano, encerra-se normalmente nos mesmos limites da soberania. Em algumas situações, o próprio exercício da jurisdição executiva sobre conflito localizado no território de outro Estado será, per se, uma agressão à soberania alheia.

Noutras situações, mesmo de jurisdição meramente constitutiva, é preciso ter-se em conta o interesse jurisdicional concorrente de outros Estados, pois assunção excessiva e abusiva de jurisdição pode levar à responsabilidade internacional.

O interesse sobre o julgamento de um conflito não é sempre exclusivo de um único Estado, podendo ocorrer que dois Estados tenham, ambos, interesse em julgar a mesma causa, ocorrendo um conflito de jurisdições. “A competência internacional pressupõe um conflito, pelo menos possível, entre jurisdições de Estados diferentes.”

Observe-se a diferença entre interesse do Estado (interesse público) e interesse das partes (interesse particular). Presume-se que todos os conflitos ocorridos no território nacional, envolvam questões públicas ou privadas, correspondem ao interesse (público) do Estado em vê-los solucionados, pois o “serviço público” de solução de controvérsias é essencial à manutenção da ordem social. O interesse público pela solução de litígios fora do território nacional pode existir — e de fato existe —, principalmente quando os conflitos têm reflexos sobre interesses ou pessoas protegidas pelo Estado, mas há disputas extraterritoriais irrelevantes ao exercício da jurisdição nacional. Ainda que as partes concordem em submeter seus desentendimentos à jurisdição de determinado Estado, pode ocorrer divórcio entre esse interesse privado pelo foro e o interesse público do foro em julgar a causa.

Normalmente, excluem-se da jurisdição os “conflitos irrelevantes para o Estado, por que o que lhe interessa, afinal é a pacificação no seio da sua própria convivência social”, ressaltam Ada Pelegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco ([4]). Portanto, há casos que, embora possam ser submetidos à sua jurisdição, são irrelevantes aos propósitos da atividade jurisdicional ou que podem ser mais bem solucionados por outra jurisdição.

Podemos, consequentemente, inferir uma conveniência do Estado em limitar a sua atividade jurisdicional. Essa conveniência de limitação da jurisdição se traduz em regras de competência geral (internacional). Essas regras de competência internacional informam ao Poder Judiciário quais são as causas que podem ser submetidas ao seu julgamento.

No Brasil, assim como em vários países de igual raiz jurídica, a competência internacional é abstratamente definida em lei. Nos países de colonização britânica, as limitações e extensões da jurisdição também são definidas abstratamente na common law (conjunto de regras baseado na autoridade dos precedentes judiciais) ou na statutory law (leis determinadas pelos parlamentos). Entretanto, permite-se que o juiz aprecie, casuisticamente, a conveniência de julgar conflitos com elementos de estraneidade. Nesses sistemas, o juiz chega a ter o poder discricionário de afastar causas inconvenientes ao foro. Nos Estados Unidos, é a chamada teoria do forum non conveniens.

A corte somente vai exercer juízo de conveniência se tiver jurisdição sobre a causa. Na ausência de jurisdição (jurisdiction) ou na hipótese de incompetência determinada pelas regras internas de distribuição de competência (venue), a doutrina do forum non conveniens não pode ser aplicada, conforme decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos em Gulf Oil Corporation v. Gilbert([5]): “…Na verdade, a doutrina do forum non conveniens nunca pode ser aplicada se houver ausência de jurisdição ou de competência territorial.”

O objetivo da doutrina do forum non conveniens é flexibilizar a análise da conveniência do foro que, do contrário, estaria presa aos critérios impostos pelas normas de competência, cuja inflexibilidade muitas vezes não permite afastar casos inconvenientes.

No Brasil, as considerações de conveniência do foro que, nos Estados Unidos, podem ser feitas discricionariamente pelo juiz do caso, foram objeto de preocupação legislativa traduzida nas regras sobre competência geral internacional, dispostas nos artigos 88 e 89 do Código de Processo Civil. O caput do artigo 88 diz: “É competente a autoridade judiciária brasileira quando:”. Os incisos que se seguem retratam as hipóteses, em matéria cível, que o legislador entendeu como convenientes ao julgamento pelo Estado brasileiro. No artigo 89 lê-se: “Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:”, ao que se segue uma lista de matérias cujos conflitos não são apenas convenientes ao conhecimento do Judiciário brasileiro, mas sim exclusivos deste.

As normas sobre competência internacional parecem ter sentido positivo, ou seja, parecem que estão atribuindo um poder à autoridade judiciária brasileira. Alguém poderia ser levado a pensar que a competência do juiz brasileiro sobre litígio decorrente de uma obrigação que tiver que ser cumprida no Brasil existe porque o Código de Processo Civil assim dispôs no seu artigo 88, inciso II. Entretanto, o sentido da norma de competência internacional é exatamente o oposto, negativo, pois visa limitar o âmbito da atuação jurisdicional legítima do Estado brasileiro. Competência, convém lembrar, é limitação de poder maior, a jurisdição. Portanto, se invertêssemos o sentido da lista de competência geral concorrente, teríamos uma definição da incompetência internacional da autoridade judiciária brasileira, conforme demonstramos pelo exercício a seguir:

Art. 88. É incompetente a autoridade judiciária brasileira quando:
I — o réu, estrangeiro, não estiver domiciliado no Brasil;
II — no Brasil não tiver de ser cumprida a obrigação;
III — a ação não se originar de fato ocorrido ou de fato praticado no Brasil.

Esse exercício de inversão do sentido da norma de competência geral concorrente permite demonstrar que o propósito das regras de competência internacional é fixar uma auto-limitação à regra de jurisdição. Ou seja, dentro do espaço ou da matéria em que o direito internacional reconhece válida a jurisdição do Estado, este, por critérios próprios, determina ao seu Poder Judiciário um âmbito de atuação ainda mais estreito (competência internacional). Há, pois, distinção entre jurisdição e competência internacionais, sendo o primeiro um limite externo do poder jurisdicional do Estado e o segundo o limite interno desse mesmo poder.


([1])         “Por uma convenção tácita, os autores de Direito Internacional Privado e de Processo denominam competência internacional a que é atribuída à justiça de um Estado (país)…” TORNAGUI, Helio. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 302.

([2])         MORELLI, Gaetano. Derecho Procesal Civil Internacional., Buenos Aires: EJEA, 1953, p. 86.

([3])         Ibid., p. 85.

([4])         CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. Op. cit., p. 128.

([5])         330 U.S. 501, 504: Tradução livre. Original: “…Indeed the doctrine of forum non conveniens can never apply if there is absence of jurisdiction or mistake of venue.”

Autores

  • Brave

    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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