Ruído na comunicação

Excesso de linguagem não anula senteça, decide TJ-SP

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15 de agosto de 2011, 14h17

Um crime envolvendo um empresário do ramo de cerveja. Uma sentença na qual o juiz foi acusado de se exceder na linguagem ao tecer considerações desnecessárias, beirando o preconceito. E, ainda, um despacho com linguagem ambígua que, somado à falta de comunicação entre desembargador e juiz, colocou o réu em liberdade quando ele deveria ficar preso.

Por conta do último engano, o réu só foi preso sete anos depois, em janeiro. Esse caso teve um de seus últimos capítulos na semana passada, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo negou recurso ao acusado e manteve a sentença de primeiro grau que o condenou a 23 anos de reclusão.

No centro da história está o pedreiro Gleison Lopes de Oliveira e a família de José Nelson Schincariol. O dono da cervejaria que leva seu nome foi morto por dois homens dentro de sua casa, em agosto de 2003, na cidade de Itu (SP). Cinco pessoas planejaram um roubo, pois sabiam que o empresáriotinha dinheiro em casa. O grupo estimava ter acesso a R$ 60 mil, mas o plano deu errado. O empresário foi flagrado dentro do sobrado, travou uma discussão com seus algozes e foi morto.

Cinco pessoas foram condenadas por latrocínio (roubo seguido de morte). Gleison e mais duas pessoas (Edevaldo Pires e Michel Alves de Souza) foram apontadas como mentores intelectuais do crime. Os outros dois (André Ricardo Claudino e Fábio Luís Siqueira) teriam sido os executores do crime.

No recurso apreciado na semana passada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a tese da defesa, patrocinada pelo advogado Roberto Delmanto Júnior, se amparava na conotação discriminatória apresentada pela sentença do juiz de Itu. Ao fundamentar sua decisão, ele afirmou que as pessoas carentes não possuem orgulho. “Orgulho? Certamente que não. Esse tipo de brio não integra os sentimentos de pessoas carentes”, afirmou o juiz na sentença contestada.

O advogado Roberto Delmanto sustentou em suas razões de apelação que a sentença deveria ser anulada porque o juiz ofendeu o princípio da dignidade humana, violou o direito ao silêncio e insultou o Código de Processo Penal. Ainda de acordo com o advogado, o juiz extrapolou os limites éticos e legais da atividade jurisdicional. “Constitui a mais afrontosa desconsideração a direito elementar da Constituição Federal, o da dignidade humana”, disse Roberto Delmanto Júnior.

A tese da defesa foi recebida pelo desembargador Miguel Marques. “Inaceitável a manutenção de um ato de ímpar magnitude e importância no âmbito jurídico-processual, como o é a sentença, quando permeado de tão discriminatória crença, porque divorciado das bases primárias prevalentes em nossa ordem jurídica constitucionalizada”, escreveu o desembargador Miguel Marques, em seu voto vencido. Segundo ele, as expressões usadas comprometem a legitimação do livre convencimento do juiz, convicção esta explicitada na fundamentação da sentença, na medida em que os argumentos esgarçam fundamento nuclear do Estado Democrático de Direito.

No entanto, os dois outros julgadores que integravam a turma não concordaram com os argumentos do advogado. Com base no voto vencido, a defesa entrou com novo recurso (Embargos Infringentes) que também foi negado com base nos mesmos fundamentos da apelação. Para a maioria dos desembargadores, a expressão usada pelo juiz de que pessoas carentes não possuem orgulho não maculou a decisão, sendo apenas um excesso de linguagem, passível de apreciação no âmbito correicional.

Ainda de acordo com a maioria, também não poderia caracterizar nulidade a crítica feita pelo juiz à legislação processual. O magistrado chamou de “bolorento” o Código de Processo Penal ao se manifestar na sentença.

“Não se permite qualificar como desarrazoado o comentário em questão, haja vista que a legislação apontada foi editada há mais de 60 anos, estando prestes a ser substituída por nova legislação, cujo projeto tramita no Congresso Nacional”, diz o acórdão.

A corte paulista reformou a sentença de primeiro grau apenas para reduzir a pena de dois dos acusados. André Ricardo Claudino e Fábio Luís Siqueira, apontados como executores do crime, foram condenados a 30 anos de reclusão cada um. O Tribunal reduziu a pena do primeiro para 23 anos e quatro meses e, a do segundo, para 26 anos de reclusão. A turma julgadora ainda absolveu Luís Francisco Candiani, que havia sido condenado a 14 anos de reclusão.

O telegrama e o engano
Essa não é a única confusão que surgiu nesse processo. Em 2004, oito meses depois do crime, Gleison ganhou a liberdade depois de um mal-entendido entre o juiz de Itu, José Fernando Azevedo Minhoto, e o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Raul Motta.

A defesa de Gleison pediu um Habeas Corpus reclamando a liberdade provisória do acusado de ser o mentor intelectual do crime e de passar informações sobre a rotina do dono da Schincariol. No mesmo recurso, o advogado pediu a anulação de depoimentos de testemunhas, alegando que havia irregularidades.

O desembargador Raul Motta anulou os depoimentos, mas manteve a prisão de Gleison. A confusão ocorreu quando o desembargador recusou o pedido de HC e comunicou a decisão ao juiz por telegrama. No texto, que tem uma só frase de 135 palavras, a falta de clareza e o uso ambíguo do gerúndio fez com que Minhoto soltasse o acusado: "negada a pretensão (…) de Habeas Corpus, (..) deferindo liberdade provisória ao paciente", diz o texto.

O réu foi solto e só foi encontrado pela Polícia em janeiro deste ano. O pedreiro foragido por conta do erro se escondia em uma casa no Jardim Jandaia, em Ribeirão Preto.

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