Bom Samaritano

Judicialização ameaça pessoas que fazem o bem nos EUA

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13 de agosto de 2011, 7h38

A tempestade inundou parte da cidade. A água começa a cobrir o carro de três policiais e eles pedem ajuda. O motorista de um ônibus escolar enfrenta a inundação, resgata os policiais e os transporta até à delegacia. A polícia homenageia o motorista. A empresa de transporte escolar o demite. Alega que ele "violou as políticas e procedimentos para a segurança das crianças, por transportar pessoas não autorizadas" (no caso, havia um adolescente e uma funcionária da empresa no ônibus). O site da Polícia Officer.com, que divulgou a notícia, lamentou a demissão. O incidente ocorreu em Nova York, no início do mês – em um momento em que os americanos começam a rever, aos poucos, a "Lei do Bom Samaritano", uma lei que não pegou no país.

No final de julho, o estado de Nova York aprovou uma lei que resgata, em parte, os princípios da lei do bom samaritano. A Good Samaritan 911 se destina a prevenir mortes por overdose de drogas. Agora, em casos de overdose, familiares e amigos podem ligar para o número de emergência 911 para pedir socorro, sem medo de se complicar com a polícia e com a justiça, diante de uma possível acusação de uso ou posse de drogas. A lei, no entanto, limita a proteção para pessoas com "posse de pequenas quantidades de drogas", diz o site HuffPost New York. No estado de Nova York, morrem mais americanos de overdose do que por acidente de carro. Legislação semelhante foi adotada nos estados de Novo México, Washington e Connecticut e está sendo considerada em outros estados, para enfrentar crises semelhantes.

Common Law
Os princípios contidos nas leis do bom samaritano são aceitas em países cujos  sistemas jurídicos estão fundados na Common Law, tais como Canadá e Austrália. No Canadá a doutrina do bom samaritano é um princípio jurídico que impede que uma pessoa que tenta ajudar uma vítima de acidente em apuros seja processada judicialmente por transgressão ou danos involuntários, segundo a Wikipédia. Praticamente todos os estados americanos têm leis semelhantes. Mas, as controvérsias as mataram, na prática. As pessoas têm medo de "salvar" a vida de alguém e serem processadas. Preferem discar 911 e esperar que o socorro chegue a tempo.

O fato que definiu a "invalidez" da lei foi um acidente de carro em Los Angeles, há muitos anos, diz o site Liberty Mutual. Às 1h45, o carro de Alexandra Van Horn bateu em um poste, a uma velociadade de 70 km/h, ferindo-a gravemente. Sua colega de trabalho, Lisa Torti, que vinha em outro carro logo atrás, parou para socorrê-la. Como havia fumaça, Lisa retirou Alexandra do carro imediatamente, com receio de que ele poderia explodir. Alexandra ficou paraplégica e, segundo lhe disse posteriormente um médico, isso não teria acontecido se Lisa não a tivesse removido do carro. Alexandra processou a colega de trabalho por danos.

O caso foi para a Suprema Corte da Califórnia, que decidiu a favor de Alexandra, garantindo-lhe o direito de processar judicialmente a ex-amiga. Os juízes escreveram que a Lei do Bom Samaritano se aplica apenas em favor de paramédicos, médicos e membros de equipe de resgate com treinamento para fazer o trabalho. Em outros estados, o entendimento foi o contrário: a lei não se aplica a qualquer desses trabalhadores da área da saúde, porque eles são remunerados para fazer esse trabalho. Aliás, o benefício da lei não se aplica a qualquer cidadão que aceite uma recompensa por ajudar alguém, porque isso vai contra o princípio da Lei do Bom Samaritano.

A decisão da Suprema Corte da Califórnia causou polêmica em todo o país. O site Liberty Mutual conta que os bons samaritanos do país sofreram um rebaixamento na classificação de "bom", para "talvez bom". Segundo o site, um colunista de jornal escreveu que "O título ‘Parábola do Bom Samaritano’ tem de vir agora com um asterisco: (*) Não aplicável na Califórnia".

Desintegração jurídica
Uma colunista do Los Angeles Times disse que o sistema jurídico do país está desintegrando ainda mais a sociedade americana, que já é fria. "Você não pode abraçar uma criança, que não seja a sua, porque alguém pode chamar a polícia e acusá-lo de abuso sexual; você não pode sequer pedir desculpas, mesmo quando reconhece seu erro, porque você estará dando à outra parte os fundamentos para processar você judicialmente; agora você não pode tentar salvar a vida de alguém".

Também é preciso pensar duas vezes, antes de cometer qualquer salvamento heroico nos EUA. Em 2004, as emissoras de televisão americanas mostraram e repetiram o "ato heroico" de um jovem mexicano em uma cidade dos EUA. Enquanto uma pequena multidão observava uma casa em chamas, ele enfrentou o fogo e a fumaça e pouco depois saiu pela porta com uma criança nos braços. Enquanto todos aplaudiam, ele voltou a entrar na casa e, minutos depois, saiu com outra criança.

Ávidas por heróis, as emissoras retiraram, logo a seguir, a proposta de declaração de heroísmo. Quando a polícia finalmente chegou, o jovem mexicano foi identificado como um fugitivo da lei, acusado de furtos. Ele foi preso. Alguns comentaristas, pegos entre a dureza da lei e o lado humano da questão, se perguntavam se ele também seria processado por invasão de propriedade alheia. 

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