Combate às drogas

Juízes sugerem resposta penal diferenciada

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7 de agosto de 2011, 7h35

Um documento assinado por membros do Judiciário do Brasil, Argentina, Portugal e Itália aponta a necessidade de respostas penais diferenciadas para cada tipo de delito envolvendo as drogas. No documento, traduzido do italiano para o português pelo juiz José Henrique Rodrigues Torres, de Campinas (SP), o grupo conclui que as medidas adotadas até então na "guerra contra as drogas" não surtiram efeito, além de terem provocado "gravíssimas" consequências. O documento, assinado em junho deste ano em Roma, foi divulgado pela Associação Juízes para a Democracia (AJD).

"A estratégia dos Estados deve ser modificada para que sejam garantidas a assistência integral aos usuários de drogas, a realização de fortes e eficazes campanhas de informação e prevenção sobre o uso de quaisquer drogas, consideradas legais ou ilegais, e, sobretudo, a implantação de políticas públicas efetivas de inclusão social e laboral", diz a Declaração de Roma.

Para os juízes que assinam o documento, as políticas de combate às drogas implementadas por diversos países violam o princípio da proporcionalidade das penas, sobretudo em casos de menor gravidade. O resultado, dizem, é o colapso do sistema carcerário.

"A excessiva utilização da legislação de emergência, nesses últimos 30 anos, apenas logrou atingir o resultado de aumentar os nichos de corrupção nos estamentos políticos, judiciais e, sobretudo, das forças de ordem e prevenção", completam. Por outro lado, políticas sociais e que garantam tratamento aos envolvidos não têm sido implementadas.

O grupo defende mudanças na legislação "para que as normas contemplem respostas penais diferenciadas, de acordo com a natureza e gravidade dos delitos de tráfico de drogas e de maior complexidade, garantindo-se que a reprovação punitiva seja proporcional ao injusto e às condições pessoais dos autores dos fatos, assegurando-se a possibilidade de não encarceramento e a implantação de medidas alternativas, bem como a imposição de condenações condicionais, e estabelecendo-se a alternativa utilização de soluções no âmbito do Direito Administrativo e do Direito Civil".

Rubens Roberto Casara, um dos juízes brasileiros participantes do encontro, explica que o documento elaborado ao final da reunião é fruto de um consenso entre os membros, apontando realidades em comum nos países envolvidos no que concerne às políticas públicas voltadas para o combate às drogas. Como a política de droga é muito parecida no mundo inteiro, as constatações a que os integrantes chegaram, mesmo oriundos de países diferentes, assemelham-se a do Brasil.

Um exemplo é a questão da pena diferenciada para tipos distintos de situações que envolvam pessoas flagradas com drogas. Casara conta que esse tópico não foi pensado na realidade brasileira especificamente, mas na italiana a diferenciação de penas é menor ainda. "Não dá para comparar ‘aviãozinho’ do tráfico ao capitalista das drogas", diz.

No Brasil, observa o juiz, a nova lei de drogas introduziu uma resposta penal diferenciada. No entanto, ele a considera insuficiente já que ainda criminaliza uma série de condutas. Para o juiz, deveria haver um rol maior de hipóteses e diferenciações.

Foi através do Supremo Tribunal Federal que caiu a vedação de progressão de regime em caso de tráfico, prevista na legislação. O Supremo entendeu ser inconstitucional tal vedação por impedir a individualização da pena aplicada ao réu pelo juiz. "O legislador não tem carta branca para criar o que quiser ou vedar o que entender em Direito Penal", observa Casara.

Em 2009, houve encontro semelhante, na cidade do Porto, em Portugal. "A falta de políticas públicas em matéria preventiva por parte dos diversos governos de distinto sinal político é inversamente proporcional ao crescimento da propaganda de mão dura ou de campanhas de lei e ordem, as quais, confrontadas com a realidade, demonstram ser meras ilusões", afirmava o documento assinado à época.

Leia o documento:

Declaração de Roma 2011
Documento de magistrados latinos sobre política pública em matéria de drogas e direitos humanos
Três anos depois do “Documento de Magistrados, Representantes do Ministério Público e Defensores de Buenos Aires”, publicado pela “Comissão de Drogas e Democracia da América Latina”, e depois de dois anos da “Declaração do Porto de Magistrados Latinos”, documentos esses editados em sintonia com o informe recentemente publicado pela “Comissão Global de Políticas de Drogas, de junho de 2011” (integrada, entre outros, por Paul Becker, Ruth Dreifuss, Thorvald Stoltemberg, George P. Shultz, Kofi Annan, Maria Cattaudi, Richard Brenson, Carlos Fuentes e George Papandreu, bem como por três exPresidentes latino americanos), voltamos a insistir no fracasso da “guerra global contra as drogas“ e nas suas gravíssimas consequências para os indivíduos e para toda a sociedade.

Aderimos ao recente documento da “Comissão Global” no que diz respeito à necessidade de reformas legislativas no âmbito penal e às críticas expostas contra a excessiva utilização da legislação de emergência, que, nesses últimos 30 anos, apenas logrou atingir o resultado de aumentar os nichos de corrupção nos estamentos políticos, judiciais e, sobretudo, das forças de ordem e prevenção, em detrimento das políticas sócio-sanitárias e das garantias que todo Estado de Direito deve defender, de acordo com os diversos compromissos internacionais dos quais nossos países são signatários em matéria de Direitos Humanos, Sociais e Sanitários.

A legislação de emergência em matéria de drogas, do crime organizado e da lavagem de capitais (temas da Convenção de Viena, de l961) tem sido caracterizada, nos últimos 20 anos, pela presença de normas que violam o princípio da legalidade, inclusive mediante a criação de figuras penais de duvidosa constitucionalidade, e que violam, também, os princípios da defesa “pro homine“, da lesividade e da proporcionalidade das penas, especialmente nos casos de menor gravidade, acarretando, em consequência, a saturação do sistema judicial e o colapso do sistema carcerário com casos de pequeno potencial lesivo, desvirtuando a função e o papel do sistema judiciário no âmbito mundial e proporcionando, ainda, o fortalecimento das organizações criminosas e a corrupção, tudo em flagrante violação de todos os tratados e compromissos internacionais nessa matéria.

A legislação produzida nesses últimos 30 anos em matéria de drogas e sua relação com o crime organizado e com a lavagem de dinheiro caracteriza-se pela utilização de técnicas legislativas inadequadas, desveladas pela insuficiência de clareza na definição dos bens jurídicos tutelados, pela constante confusão entre tentativa e consumação e por uma indevida proliferação de verbos e conceitos, o que evidencia a sua criação por inspiração política, com base em argumentos forâneos, sem fundamentação doutrinária e sem confirmação empírica alguma.

As hodiernas políticas de drogas têm acarretado um agravamento dos problemas que já eram detectados na década de 70, que se agravaram nos anos 80, especialmente com o surgimento da cocaína, e que, hoje, atingem uma dimensão de extrema complexidade, principalmente em razão da dificuldade do controle da imensa movimentação de dinheiro proveniente de delitos e de sua transformação em dinheiro legal, o que está determinando a prevalência de um Estado de Emergência no âmbito social e sanitário.

A falta de políticas preventivas no âmbito social, sanitarista e cultural, a omissão de controle dos organismos estatais e a falta de uma coerente política criminal direcionada ao enfrentamento da acumulação e reemprego do dinheiro proveniente da corrupção de funcionários públicos, da sonegação de impostos, da evasão de divisas, do suborno, do contrabando de armas, da lavagem de capitais e do tráfico, evidenciam que as reformas legais na esfera penal somente têm sido produzidas como ”holofotes publicitários“, não resolvem o grave problema do aumento da demanda, não diminuem a oferta e, o que é pior, propiciam tal movimentação de dinheiro na esfera mundial, que, atualmente, é impossível saber, com exação, quanto desse dinheiro provém do circuito ilegal do narcotráfico ou do produto dos delitos de colarinho branco e corrupção.

Nesses últimos anos, temos assistido a uma preocupante confusão entre a função de segurança e defesa social com aquela que compete às forças policiais na busca de provas que permitam a um magistrado fazer um julgamento adequado.

Em alguns países, especialmente no continente americano, tem ocorrido, em face da ainda presente influência da doutrina da segurança nacional, a utilização desvirtuada das Forças Armadas na repressão até mesmo da microcriminalidade. E esse fenômeno, à evidência, tem permitido a abertura de um espaço de discricionariedade que habilita todo tipo de violações ao devido processo legal, à dignidade humana e aos direitos fundamentais das pessoas, em flagrante contradição com os princípios fundamentais do Estado Democrático.

Além disso, esse fenômeno da indevida utilização do sistema de repressão encontra respaldo na difusão dos meios massivos de comunicação, que, segundo a lógica da propaganda, incentivam a ampliação das medidas repressivas e o recrudescimento da reforma na legislação penal.

Contudo, quando essas medidas terminam em fracasso, o que ocorre com frequência, as instituições democráticas acabam sofrendo imensos e irreparáveis danos.

A adoção de um rígido proibicionismo em relação a um fenômeno tão complexo, que deveria ser enfrentado por todo tipo de políticas sociais, educativas, sanitárias, laborais, sem discriminação de nenhuma alternativa possível, impede que sejam discutidas ou implantadas medidas alternativas, como aquelas que produziram tão bons resultados no Canadá, em Portugal ou no Uruguay.

Assim, as autoridades políticas deveriam refletir sobre a gravidade de se punir condutas de insignificante lesividade, como a do porte para consumo.

As atitudes repressivas, na realidade, somente afastam os usuários de drogas do sistema sanitário, estigmatizando-os e distorcendo as funções do Ministério Público e dos juízes, deixando em segundo lugar o direito administrativo e o de família, que têm melhores e mais eficazes ferramentas que o sistema penal, que deve ser a “ultima ratio” do sistema.

No âmbito da cooperação internacional e dos tratados e convenções internacionais, não é possível olvidar os princípios reconhecidos nos instrumentos de direitos humanos, como aqueles afirmados no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. É que não há Direito Internacional isolado dos axiomas prévios dos instrumentos de Direitos Humanos e, especialmente, daqueles princípios consagrados pelo preâmbulo da Carta das Nações Unidas.

Os instrumentos internacionais têm evidentes limitações na sua eficácia quando necessária uma rápida cooperação internacional na esfera judicial, confundem narcotráfico com terrorismo, são pouco conhecidos e aplicados e, em última análise, não favorecem o trabalho de investigação nem o processo judicial quando se trata de graves delitos transnacionais.

O sistema judicial carece de instrumentos e recursos tecnológicos que permitam interceptar com eficácia e a tempo informações valiosas para conhecer e evitar operações suspeitas, abusos de poder, subornos, evasão de divisas, grandes fraudes e defraudações, tráfico ou delitos que envolvam o poder político, como a corrupção e a evasão de divisas, o que demonstra que a mera alteração de dispositivos legais constitui uma questão de forma, não de substância.

É imprescindível a reforma e a harmonização do sistema legislativo para que as normas contemplem respostas penais diferenciadas, de acordo com a natureza e gravidade dos delitos de trafico de drogas e de maior complexidade, garantindo-se que a reprovação punitiva seja proporcional ao injusto e às condições pessoais dos autores dos fatos, assegurando-se a possibilidade de não encarceramento e a implantação de medidas alternativas, bem como a imposição de condenações condicionais, e estabelecendo-se a alternativa utilização de soluções no âmbito do direito administrativo e do direito civil.

Em conclusão, reiteramos que, em face da falência da política repressiva até hoje adotada para o enfrentamento da questão das drogas, a estratégia dos Estados deve ser modificada para que sejam garantidas a assistência integral aos usuários de drogas, a realização de fortes e eficazes campanhas de informação e prevenção sobre o uso de quaisquer drogas, consideradas legais ou ilegais, e, sobretudo, a implantação de políticas públicas efetivas de inclusão social e laboral.

Roma, 11 de junho de 2011.

Martín Vázquez Acuña,
Juez de Cámara del Tribunal Nº1 en lo Criminal de la Ciudad de Buenos Aires. (Argentina).

Mónica Cuñarro,
Fiscal de la República Argentina y Profesora de la Universidad de Buenos Aires (Argentina).

Graciela Julia Angriman,
Jueza del Juzgado Correccional Nº5 de Morón, Provincia de Buenos Aires (Argentina).

Rubens Roberto Casara,
Juiz de Direito do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia (Brasil).

José Henrique Rodrigues Torres,
Juiz de Direitos de Campinas/São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia (Brasil).

Antonio Cluny,
Procurador General Adjunto ante el Tribunal de Cuentas de Portugal.

José Pedro Baranita,
Procurador Substituto de Portugal.

Luigi Marini,
Miembro de la Corte de Casación, y Presidente de Magistratura Democrática (Italia).

Piergiorgio Morosini,
Juez del Tribunal de Palermo, Secretario General de Magistratura Democrática (Italia).

Carlo Renoldi,
Juez del Tribunal de Cagliari, Miembro Ejecutivo de Magistratura Democrática (Italia).

Francesco Maisto,
Presidente del Tribunal de Vigilancia de Bologna (Italia).

Guiseppe Cascini,
Procurador Sustituto de la Repùblica, Roma (Italia).

Tiziano Coccoluto,
Juez del Tribunal de Latina, Secretaria de Magistratura Democrática, Roma (Italia)

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