Embargos Culturais

Mandrágora e a Posse Sexual Mediante Fraude

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

7 de agosto de 2011, 8h46

A coluna desta semana aproxima Direito Penal e Literatura, com o propósito de colher material conceitual para o estudo do crime de violação sexual mediante fraude (artigo 215 do Código Penal), a partir de uma peça de Nicolau Maquiavel, A Mandrágora.

Para tal, faz-se breve sumária do tipo aqui indicado. Conclui-se que, do ponto de vista metodológico, a tradição literária pode nos oferecer farto material para estudo de vários aspectos do Direito Penal.

No Direito Penal o tipo originário da posse sexual mediante fraude foi reiteradamente redesenhado. Originariamente, dispunha-se sobre ter conjunção sexual com mulher honesta, mediante fraude. Em 2005, passou-se a dispor sobre ter conjunção sexual com mulher, mediante fraude. Em 2009, a posse sexual mediante fraude passou a ser denominada de violação sexual mediante fraude, cujo tipo é descrito em conduta indicativa de ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima[1].

Expressão doutrinária indica que, no caso, “o mecanismo para atingir o resultado pretendido é a fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima[2]”, dicção que efetivamente reproduz o tipo descrito no texto legal. Tem-se também que o tipo é “misto alternativo, podendo o agente ter conjunção carnal e praticar ato libidinoso contra a mesma vítima, no mesmo local e hora, para se configurar crime único[3]”. Sujeições ativa e passiva são gerais, alcançam a qualquer pessoa[4].

Não há forma culposa; o elemento subjetivo do tipo é o dolo[5]. A fraude é ordinariamente caracterizada pela “(…) utilização de ardil, do engodo, do engano”[6]. No que se refere à fixação do meio que impeça ou dificulte a livre manifestação tem-se “(…) qualquer mecanismo disposto a conturbar o tirocínio da vítima[7]”. Ainda, do ponto de vista dogmático, entende-se que “(…) o objeto material é a pessoa que sofre a violação (…) o jurídico é a liberdade sexual[8]”.

Do ponto de vista taxionômico, é crime comum (não exige sujeição ativa especial), material (o resultado é o ato libidinoso consumado), comissivo (o que indica uma ação do agente), instantâneo (sua perpetuação se esgota em momento específico), de dano (decorre da mera lesão ao bem jurídico tutelado), admite tentativa e é plurissubsistente (a conduta é integrada por vários atos)[9].

A conduta é recorrente na experiência humana, e é captada de modo prosaico pela tradição literária. Refiro-me, especialmente, à peça A Mandrágora, do florentino Nicolau Maquiavel, circunstância cultural que fomenta o presente ensaio. Sigo com Maquiavel.

Maquiavel nasceu em Florença em 1469. É personalidade emblemática do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O movimento era marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo.

O humanismo foi também um traço definidor daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel. Ainda muito jovem, Maquiavel serviu a República de Florença, participando de missões diplomáticas na França, na Alemanha e na Santa Sé. Com a queda da república florentina em 1512, foi preso e torturado.

No ano seguinte, escreveu O Príncipe, seu livro mais conhecido. O objetivo que o moveu a escrever O Príncipe teria sido a tentativa de conquistar a amizade e a confiança de Lourenço de Médici, a quem o livro é dedicado. Chamado de volta para o governo em 1525, Maquiavel novamente caiu em desgraça em 1527. Pobre e esquecido, morreu em 1527.

Estudioso do poder, Maquiavel adiantou-se a percepções criminológicas contemporâneas, especialmente no que se refere à intuição de um biopoder, de um poder exercido sobre corpos e mentes. E o fez fugindo do dogmatismo e das teorias justificadoras morais ou espirituais.[10]

Mandrágora é comédia datada de 1515[11]. A farsa é dividida em cinco atos. Fixo o conjunto de dramatis personae, isto é, dos personagens: Nícia (o juiz e marido), Calímaco (o embusteiro), Ligúrio (o mau-caráter), Frei Timóteo (o religioso corrupto), Lucrécia (a mulher pudica), Sóstrata (a mãe de Lucrécia), Siro (o servo de Calímaco). Há também uma misteriosa mulher, cujo nome Maquiavel não revela, e que frequenta uma das cenas da comédia, que é ambientada em Florença.

No prólogo, Maquiavel apresenta os personagens, e explica-se, inclusive com certa ironia para consigo mesmo:

A comédia intitula-se A mandrágora; por que, isso dirá a representação, tenho certeza. Não desfruta o autor de muita fama; se não rirdes, no entanto, aceitará pagar-vos um bom trago. Um amante infeliz, um doutor pouco astuto, um frade de má vida, um paraíso fértil em malícia, hoje serão o vosso passatempo[12].

O enredo, de modo muito sintético, pode ser resumido, na forma que segue. Nícia, um juiz de meia idade, e muito ingênuo, é casado com a bela Lucrécia, esposa fiel e piedosa. O casal sonhava com um filho. Porém, Lucrécia não conseguia engravidar. Chega de Paris um belo jovem, Calímaco, que intrigado a propósito de uma discussão que teve, na qual se disputou quais mulheres seriam mais bonitas, as francesas ou as italianas, prestava atenção nas moças de Florença.

Acompanhado de seu criado, Siro, Calímaco conheceu Lucrécia, por quem imediatamente se apaixonou. Auxiliado por um senhor parasita, oportunista e mau caráter, Ligúrio, o vilão Calímaco planejou como possuir sexualmente Lucrécia. Ajudado por um frade corrupto, chamado de Frei Timóteo, Calímaco ganhou a confiança de Nícia, para quem se dizia médico, e a quem convenceu que Lucrécia somente engravidaria se tomasse uma droga, conhecida como mandrágora, raiz milagrosa, de onde o título da comédia. No entanto, advertiu que o primeiro homem que tivesse relações sexuais com Lucrécia, após a ingestão da droga, morreria imediatamente. A droga, mandrágora,

Conhecida desde os tempos mais remotos (…) tem atraído a atenção dos homens por suas particularidades: a forma da raiz é alongada (…) de aspecto carnudo, branco e bifurcado, lembrando vagamente o tronco e as pernas do corpo humano. Foi o antropomorfismo da raiz que fez com que ela fosse considerada uma espécie de embrião incompleto, capaz de ganhar a vida através de práticas mágicas. Como a beladona e o meimendro, sonanáceas venenosas, a mandrágora contém alcaloides. Seu aspecto sedativo já era conhecido dos hipocráticos. No século XVIII, foi empregada como analgésico de uso externo. Usavam-na como anestesia nas operações. Atribuíam-se-lhe ainda virtudes afrodisíacas. Inscrita no catálogo das plantas medicinais, ela era tida como capaz de proporcionar alívio, curar certos males ou estimular a vitalidade[13].

Sugeriu que encontrassem alguém que se dispusesse a copular com Lucrécia (e será ele mesmo, Calímaco, disfarçado de mendigo). Convencido de que o ardil o beneficiaria, o juiz também foi ajudado pela sogra, Sóstrata. Esta última influenciou a filha a ouvir os conselhos do frade. Calímaco atingiu seu objetivo, deitou-se com Lucrécia, revelando-se, e ganhando a confiança e o amor da heroína, após ser sincero para com ela. Num contexto contemporâneo, bem nítida a ilustração relativa à violação sexual mediante fraude.

Insisto, numa percepção contemporânea, Calímaco violou sexualmente a Lucrécia mediante fraude. O caso lembra problema eventualmente relatado em jornais, relativo à ação de profissional da Medicina, que mediante fraude, viola sexualidade da paciente.

No caso urdido por Maquiavel, o ardil é ainda mais amplo, na medida em que Calímaco não era médico. No entanto, duas questões permanecem intrigando ao leitor: Maquiavel não nos diz se Lucrécia engravidara; e o que pior, a vítima consolou-se no criminoso, a ele se consorciando, pelo que o consentimento, ainda que tardio, poderia ser elemento de desqualificação ou, por outro lado, inequívoca prova (ainda que literária) de que pode haver crimes perfeitos.

A peça nos oferece expressivo material para estudo do tipo previsto no artigo 215 do Código Penal. Sugere que a metodologia possa ser utilizada na avaliação conceitual e cultural de um sem número de tipos penais. Tem-se, de tal modo, a possibilidade de se explorar a tradição literária com a finalidade de se apreender a restrição para com diversas condutas, num contexto de ampla comunicação entre os vários saberes.


[1] A pena prevista é de reclusão, de dois a seis anos. O parágrafo único do art. 215 do Código Peal dispõe ainda que se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

[2] Nucci, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, São Paulo: RT, 2010, p. 919.

[3] Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[4] Cf. Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[5] Cf. Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[6] Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[7] Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[8] Nucci, Guilherme de Souza, cit., p. 920.

[9] Cf. Nucci, Guilherme de Souza, cit., loc.cit.

[10] Cf. Anitua, Gabriel Ignacio, História dos Pensamentos Criminológicos, Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p. 92. Tradução de Sérgio Lamarão.

[11] Maquiavel, Nicolau, A Mandrágora, São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2004. Coleção Os Grandes Dramaturgos. Tradução de Mário da Silva.

[12] Maquiavel, Nicolau, cit., p. 36.

[13] Brunel, Pierre (org.), Dicionário de Mitos Literários, Brasília: Editora UnB, e Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1997, p. 605. Tradução de Carlos Sussekind e outros.

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