Incerteza jurisdicional

Supremo sai enfraquecido da novela Ficha Limpa

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6 de abril de 2011, 12h33

Não me animo com a discussão que levou o Supremo Tribunal Federal a negar vigência imediata à Lei Complementar 135/2010. Ao contrário, me entristece profundamente que a Corte tenha deixado isso se estender por tanto tempo, envolver tanta gente, gerar e frustrar tanta expectativa e causar tanto alarde. Um tribunal constitucional um pouco mais sério não teria sequer aceito discutir o tema. Depois de dar ao país algumas poucas, mas sólidas demonstrações de maturidade, o Supremo anda pra trás, mostra-se extremamente vulnerável às influências da imprensa e incomodamente suscetível a clamores populares – não, precisamos compreender, de uma vez por todas, que isso não é vantagem para uma corte de justiça. O Judiciário sai enfraquecido da novela.

O julgamento encerra umas das páginas mais páginas mais lamentáveis da história do tribunal, pra não dizer do judiciário brasileiro. O Supremo perdeu o passo. Meteu-se onde não devia, e foi mais fundo do que podia. Tão fundo, que no final, até pra sair deu trabalho. Quase falta coragem. Menos mal assim.

A questão nunca foi de técnica. Era de lógica. A mais elementar lógica cartesiana. Só que o Judiciário foi enfeitiçado pelos holofotes de uma imprensa que, em geral, foi incrivelmente omissa no seu papel de expor ao público a complexidade, a extensão e a profundidade do que se estava discutindo. Encandeou-se. Perdeu-se num sarapatel de tolices constitucionais, e cedeu à oligofrenia coletiva, permitindo que uma idéia que mesmo ao operador de direito menos brilhante parecia absolutamente ridícula, ganhasse uma força que nunca poderia ter tido.

Viveu-se um transe hipnótico idiotizante, segundo o qual Justiça se faz a qualquer custo, o povo pode tudo, a maioria – aquela, do Nelson Rodrigues – é necessariamente inteligente, a moral de alguns é a expressão do bem, e a opinião pública é a voz de Deus. Se a Constituição não gostou, azar dela. Acordar deste transe é o primeiro passo para retomar a normalidade social e institucional no país. Mas não é ainda, nem de longe, o último.

Assusta demais que a metade da corte constitucional mais importante do país recorra sistematicamente a uma marmota hermenêutica atrás de outra, pra tentar justificar o injustificável, flexibilizar o inflexibilizável, relativizar o que não pode ser relativizado, ou, na poesia irreverente de Jessier Quirino, dexesistir o existido.

Pior de tudo. Mesmo depois de tomada a decisão definitiva, as únicas questões realmente importantes ainda permanecem sem ser discutidas.

Pra começar, por exemplo, por que o STF sempre aceita ser acuado pelo Congresso Nacional nas alterações de cenário eleitoral inconseqüentes que o Legislativo promove? Acompanhe-se a jurisprudência das Cortes, e é possível perceber sem o menor esforço que a discussão sobre a anterioridade é irritante e recorrente. Este mal-estar de viver discutindo a anterioridade é sempre criado pelo Congresso Nacional. Como pra bom entendedor, meia palavra basta, é evidente que a motivação destas alterações nunca é institucional, republicana; é sempre política, na acepção menos nobre da palavra. Se o Congresso tem realmente interesse em promover ajustes políticos, não pode fazer em um ano sem eleição, não? Tem que ser sempre às vésperas, jogando para o Judiciário a responsabilidade em decidir tudo no ato, no ano, na hora, sob pressão da imprensa, e ainda com este desgaste e esta incerteza terrível de vale/não vale?

A primeira providência sensata do STF em relação a este tema seria reconhecer, de uma vez por todas, que o ordenamento brasileiro não aceita, definitivamente não admite qualquer norma aprovada pra ter qualquer espécie de efeito, projeção ou repercussão nas eleições que se realizam no ano seguinte, ao invés de ficar remoendo este debate essencialmente tolo, estéril, de uma determinada alteração ser ou não ser regra de processo eleitoral, constantemente relendo, redefinindo a expressão processo eleitoral e sua amplitude, quando, na verdade, isto não interessa. Não faz a menor diferença.

Não importa se se trata de regra de processo eleitoral, condição de elegibilidade, inelegibilidade inata ou cominada, simples ou potenciada. Isso é pergunta pra prova de concurso de marcar com xis. Quando a eleição acabou os candidatos eleitos tomaram posse, ou ainda estão discutindo registro, filiações, convenções, inelegibilidades, regras de propaganda, prestação de contas, apuração ou práticas disciplinadas a menos de um ano da eleição? Votos legítimos terão sua validade contestada e mandatos serão alterados a meio caminho com base em lei de menos de um ano de idade? Porque se isto ocorrer, a única conclusão que o desenvolvimento mental pleno permite é que a alteração que se discute tem, sim, algum grau de repercussão, alguma influência, comunica-se, em alguma medida, com o processo eleitoral, e é isto – essencialmente isto – o que não deve ser admitido.

Aí o Congresso passa a legislatura inteira em contatos com as bases. Reforma política, que é bom, nada. Faltando menos de um ano para as eleições, pra população não dizer que não fez nada, propõe alguma alteração que podia/devia ter sido proposta a qualquer tempo, dentro do prazo adequado, pra evitar a confusão, mas isso não preocupa nem incomoda, porque, de qualquer forma, tudo vai ser rolado pra o Judiciário decidir. O serviço e a conta vão pro Judiciário, que, de Poder constituído da República, passa a mero peão, massa de manobra do jogo político. Admite o papel secundário, não reclama, chega só pra limpar a bagunça, paga a conta do desgaste e ainda continua a jogar o mesmo jogo, todas as eleições.

Este ano, por exemplo, o desgaste foi horrível, porque ao admitir a discussão sobre a aplicabilidade da nova norma, o Judiciário não percebeu que sua estrutura jamais daria conta de resolver a questão em tempo útil para a sociedade – coisa que a classe política, certamente percebeu, contou com isso. O resultado foi uma vergonha. Milhões de eleitores brasileiros chegaram ao dia da eleição sem saber sequer quais os documentos obrigatórios para exercer o direito ao voto. Quais os candidatos em quem poderiam votar sem risco de invalidar o voto, então, isso nem pensar.

O fato é que o Judiciário, como era óbvio, não conseguiu dizer à população a tempo quem eram os candidatos até o momento da eleição, discussão que se estendeu por quase seis meses após o pleito, exclusivamente por causa de uma norma jurídica promulgada a menos de 120 dias da hora do brasileiro ir às urnas. Se a norma é tão boa como a maioria – sempre aquela, do Nelson Rodrigues – defende, porque não se pode esperar pra aplicá-la sem essa pressa estranha, sem esse atropelo principiológico, sem levantar estas suspeitas inevitáveis de que há algo de podre no reino da Dinamarca, como se o país não pudesse esperar 2 anos, depois de 510 de roubalheira congênita com as duas mãos, para uma norma ser aplicada sem a impressão tão clara, tão desconfortável e tão perigosa de um golpe nas garantias constitucionais mais elementares?

Isto não é ruim para os candidatos. Maus políticos preferem normas fluidas, preferem regras obscuras, esponjosas, interpretações flácidas, cujo espírito não resista à retórica mais elementar. Isto é ruim para a sociedade, e é horrível para o Judiciário.

Esta discussão, sim, é importante. Apesar disso, sobre ela, infelizmente, nenhuma palavra.

Sobre a possibilidade da lei alterar, agravando a conseqüência jurídica que estava legitimamente estabelecida na época em que um ato foi praticado no passado, recuso-me a tecer qualquer comentário. Não é um debate para a comunidade jurídica, ou uma corte de justiça de um Estado democrático, mas para uma junta psiquiátrica, aplicando um teste de sanidade. O argumento tangencia a irresponsabilidade, e só não vou rotular de criminoso, porque acho que a alguns de seus defensores faltou o dolo. Aliás, acho que até houve alguma sincera boa vontade, porque o objetivo parecia dos mais justos, éticos e republicanos, que era impedir que Jader Barbalho, Joaquim Roriz ou Paulo Maluf, para citar apenas exemplos, voltassem a ter acesso à representação popular, ao mandato e à gestão da coisa pública. Talvez a ânsia de atingir este objetivo tenha causado uma epidemia de cegueira intelectual crônica que parecia ter sido definitivamente controlada no Ocidente nos últimos anos do século XVIII. A afirmação do Ministro Peluso, de que a restrição de direitos do cidadão – e se ele é bom ou ruim, não importa – “com base em fatos acontecidos antes do início de vigência da lei é uma circunstância histórica que nem as ditaduras ousaram fazer”, é apenas um alento. Nada mais. Vê-se que ficou o pior – o ranço.

Outra discussão importante completamente esquecida.

Por fim, a questão que me preocupa há mais tempo envolve a relativização de princípios pra todo lado, o caminho e os limites deste movimento. Nenhuma estrutura social resiste à relativização de seus núcleos mais internos, de seus valores mais substanciais, dos interesses que lhe são mais caros. Tenho absoluta convicção de que o judiciário brasileiro, do ponto de vista coletivo, institucional, não faz a menor idéia de quais são estes valores, estes interesses, estes núcleos mais internos. A discussão costuma tomar a direção singela da contraposição entre direitos individuais versus interesse público. Simples demais pra ser verdade. O tema é muito mais complexo, muito mais sofisticado, está se oferecendo em diversos momentos, mas está passando ao largo de todas estas oportunidades de debate. Em algum momento muito próximo, a sociedade precisa parar com atenção para definir estes limites de forma mais objetiva, aceitar as restrições e pagar o preço desta definição, sob pena daquilo que Edmar Bacha, Pérsio Arida e André Lara Resende chamaram de incerteza jurisdicional terminar por nos impedir de seguir em frente, de avançar, de conquistar e consolidar garantias.

Controvérsias jurídicas são interessantes sob o ponto de vista acadêmico, alimentam a evolução da Ciência do Direito, mas os tribunais vêm falhando em perceber que a sociedade, informada como está, conectada como está, interligada e dinâmica como está, não tem mais paciência para um Judiciário que se perde indefinidamente em divagações dialéticas, principalmente quando um problema prático, de enorme repercussão e urgente como este, está pendendo de uma solução objetiva.

Dois motivos determinam esta recente intolerância.

Primeiro, soluções fundamentalmente diferentes para casos essencialmente iguais não podem mais existir numa sociedade que atualiza a sua informação a cada minuto, e não mais a cada mês ou a cada ano. Uniformização, unidade, harmonia e coerência foram direções que o Judiciário sempre afirmou pretender seguir, mas que, como nunca foi possível monitorar, fiscalizar, acompanhar efetivamente, nunca aconteceu, e sempre ficou por isso mesmo. Não dá mais. A sessão do STF está na casa do cidadão. Ele mesmo fiscaliza, compara, pergunta e critica a falta de coerência entre uma decisão e outra. Ministros justificam ao vivo as diferenças entre o seu voto de hoje e de ontem porque percebem que esta realidade mudou. A questão é se o Judiciário está pronto para este novo momento.

Segundo, o tempo de reflexão a que o Judiciário tem direito não é mais o mesmo. A solução não pode mais esperar uma linda manhã de sol, em que inspiração do jurista venha particularmente iluminada, nem pode durar o tempo que o Judiciário historicamente usou para resolver as questões postas. Há pouquíssimo tempo, pedidos de vista duravam anos, distribuições duravam meses, processos duravam décadas, e isso era considerado normal. Embora hoje essas situações ainda não tenham sido superadas, a idéia de normalidade já não existe. Melhor. O cidadão não quer mais sustentar o que o Professor Roberto Dromi chamou de uma cara “máquina de impedir”. Inação e covardia são sinônimos na sociedade da informação. Não há mais distinção. Se é que houve.

Há claros avanços na Lei Complementar 135/2010, que, na sombra destes debates menores e muito menos nobres, sequer foram discutidos. O maior avanço que a norma trouxe para o cenário das disputas eleitorais no país, por exemplo, está relegado ao mais embaraçoso silêncio. O período de afastamento que a lei anterior cominava era uma afronta. Desmoralizava a própria lei. Em três anos, como estava previsto, o candidato condenado poderia até mesmo concorrer à própria reeleição, porque o período da condenação se esgotava dentro de seu próprio mandato. Isso se o processo chegasse a durar menos de três anos. Depois disso, objeto perdido. Não me lembro de algum candidato que tenha sido cassado nos termos da lei anterior, que tenha sido impedido de continuar nas disputas políticas subseqüentes que lhe interessassem. O prazo de oito anos tanto acaba com esta piada legislativa sem graça, quanto representa mais rigor, muitas vezes chegando a significar, na prática, o banimento da vida pública, a depender da idade do condenado. Pena que estas características positivas tenham ficado à margem de um debate em que se investiram tantos esforços inúteis.

Passado o furacão do momento, a poeira assenta. O Imbecil Coletivo, a idéia de Olavo de Carvalho, de “uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras”, se recompõe. A imprensa, que deu o gás, tira o corpo. A população bate a poeira e volta-se para as eleições seguintes. O precedente, ao contrário, fica. Neste caso, fica e assusta.

Comemore quem quiser, vibre quem tiver direito, e reclame quem não gostou. A minha reação ainda é de grande, mas de enorme preocupação.

Cinco dos juristas de opinião mais influente no país, e que ainda decidirão diversas questões constitucionais importantes nos próximos anos, lembraram Saint-Exupéry e demonstraram que, para eles, o essencial é invisível aos olhos.

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