Decisão descumprida

Ex-superintendente da PF nunca cumpriu a pena

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6 de abril de 2011, 15h55

É senso comum a afirmação de que decisão judicial não se discute, cumpre-se. Quando a decisão parte da Corte Suprema, teoricamente, não há sequer mais a quem recorrer, nem tampouco o que se discutir. Mas, nem sempre a teoria vale na prática. Há decisões do Supremo que não conseguem ser executadas, nem mesmo pelos próprios membros do Poder Judiciário. Que o digam o juiz da 1ª Vara Federal Criminal do Rio, Marcos André Bizzo Moliari, e a vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, desembargadora Vera Lúcia Lima. Ambos fizeram ouvidos moucos à determinação da ministra Ellen Gracie, aprovada por unanimidade na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

A ordem emanada pela ministra Ellen Gracie e referendada pela 2ª Turma do STF em dezembro de 2009 determinava a baixa do processo 94.0040099-3 no qual, em 1997, o delegado federal (hoje aposentado) Edson Antônio de Oliveira foi condenado a quatro anos e seis meses de reclusão, pagamento de 50 dias-multa e a perda do cargo público, por tentativa de extorsão (concussão) em 1986.

Ao apreciar os Embargos de Declaração em Agravo de Instrumento (759450-RJ), a relatora vislumbrou como medidas procrastinatórias os pedidos do réu e seu advogado Nascimento Alves Paulino: “Parece-me claro que, no presente feito, o ora embargante tenta, a todo custo, protelar a baixa dos autos, o que representará o início do dever de cumprimento da pena que lhe foi imposta. A interposição de Embargos de Declaração com finalidade meramente protelatória autoriza o imediato cumprimento da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da publicação do acórdão”, expôs a ministra.

Apesar de a ementa do acórdão ser clara com relação à decisão da 2ª Turma (“à unanimidade, rejeitou os Embargos de Declaração e determinou a imediata baixa dos autos para execução, nos termos do voto da relatora”), decorridos 15 meses, a execução da pena continua em suspenso e o réu em liberdade, percebendo o salário como aposentado. Vinte e cinco anos após o crime, ele se mantém impune.

Polícia e política

Oliveira é ex-superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro e ficou famoso por ter, como chefe da Interpol no Brasil, ido buscar o tesoureiro da campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello, Paulo César Faria, quando ele foi preso em Bangcoc, na Tailândia, em 1993. Na verdade, Oliveira tinha por incumbência descobrir o acusado, mas mesmo depois de o ex-tesoureiro ter sido localizado por jornalistas em Londres, o delegado não conseguiu prendê-lo. No ano seguinte, licenciou-se do cargo para concorrer às eleições de deputado federal, apresentando-se como o “homem que prendeu PC”. Além de não ter sido eleito, sofreu novo revés: seu nome foi descoberto na contabilidade do jogo do bicho depois que o procurador-geral de Justiça, Antônio Carlos Biscaia, estourou a fortaleza do contraventor Castor de Andrade.

Processado, Oliveira foi condenado, mas acabou se beneficiando por erro do Superior Tribunal de Justiça que levou o TRF-2 a entender que a Ação Penal contra ele tinha sido trancada e não apreciou o recurso interposto. O erro foi descoberto em 2009 pelo ministro Paulo Galotti que mandou reabrirem o caso. Em setembro do ano passado, ao julgar o recurso, a 1ª Turma Especializada refez o entendimento anterior daquele tribunal que havia absolvido os demais réus e não apenas confirmou a condenação do ex-superintendente, como ainda duplicou sua pena, estipulando-a em sete anos de reclusão. Depois disto, o mesmo tribunal mandou prosseguir Ação de Improbidade Administrativa contra os envolvidos no caso do jogo do bicho que estava parada.

Decisão do STF

No caso do processo da condenação pelo crime de concussão, quando o processo baixou para a primeira instância, a procuradora Lilian Guilhon Doré pediu a execução da sentença, tal como determinara o STF. Mas o juiz Bizzo Moliari teve entendimento diverso do Supremo e concluiu que a mesma estava prescrita. Com base neste entendimento, em abril de 2010, decretou extinta a punibilidade com o arquivamento do processo, apesar de, antes, a prescrição ter sido rechaçada tanto no Superior Tribunal de Justiça como no STF, tal e qual já tinha esclarecido Ellen Gracie no voto proferido no Agravo de Instrumento, em agosto de 2009:

“A decisão proferida pela instância a quo está em consonância com entendimento desta Suprema Corte no sentido de que ‘Não se pode, a pretexto de aplicar a prescrição retroativa, desconsiderar a ocorrência da primeira causa interruptiva — recebimento da denúncia (CP, art. 117, I) —, para somente levar em conta o prazo decorrido entre a data do crime (CP, art. 111, I) e aquela em que sobreveio a sentença condenatória recorrível (segunda causa de interrupção do lapso prescricional — CP, art. 117, IV)’".

Já naquela época, ela apontava a tentativa da defesa de protelar o cumprimento da pena: “A utilização indevida das espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros e sucessivos recursos contrários à jurisprudência desta Suprema Corte, como mero expediente protelatório para evitar a execução da pena pela ocorrência da prescrição, desvirtua o próprio postulado constitucional da ampla defesa”. Mas considerou inviável determinar naquele momento a execução da pena, por ter o Plenário do Supremo, contra o seu voto, considerado que "ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”. Com isto, a defesa pode recorrer aos Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento, finalmente julgado em dezembro, quando mais uma vez a ministra se posicionou com relação à tese da prescrição, na qual o advogado Paulino insistia:

“O acórdão condenatório que reforma decisão de primeira instância ‘qualifica-se como causa de interrupção da prescrição penal, posto que equiparado, para tal fim, à sentença condenatória recorrível’ (HC 70.810/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 01.12.2006). No caso concreto, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal para condenar o agravante também pelo crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP), delito pelo qual não tinha sido condenado em primeira instância. Não se cuida, portanto, de mero acórdão confirmatório da sentença, já que esta foi reformada para condenar o réu por crime não reconhecido pelo juiz de primeiro grau”, explicou.

A condenação

Edson Oliveira foi denunciado em 1994 por, em 1986, época em que chefiava o setor de Migração e Passaportes, ter conduzido “investigação informal” ao descobrir dois comissários da extinta Varig com vultosas quantias depositadas em contas no exterior. Diante dos indícios da prática criminosa, o delegado não formalizou uma apuração formal, mas passou a exigir dos dois valores como contrapartida para não proceder à investigação oficial.

Conforme consta do processo, na tentativa de obter vantagens ilícitas, ele foi à casa dos suspeitos e chamou-os para um almoço no restaurante Rios no qual discutiu extraoficialmente o caso. Depois, levou os dois à sede da Polícia Federal onde, os ameaçou de interrogá-los, ainda que não houvesse uma investigação formalizada. Pressionados por estas intimidações, os “investigados” apresentaram queixa-crime junto à 14º Delegacia de Polícia contra o delegado como incurso no artigo 148, do Código Penal — sequestro e cárcere privado. Com a reação dos investigados e objetivando ocultar seus atos anteriores, Oliveira preparou um expediente, com data retroativa, dando ciência da “investigação” ao Coordenador Regional Policial. Por este documento foi denunciado também por falsidade ideológica, mas ao condená-lo, o juiz só considerou o crime de concussão.

A defesa alegava que a sentença de 1997 estava prescrita, mas todas as instâncias judiciais consideraram que a contagem da prescrição recomeçou quando o TRF-2, em abril de 2002, acatou recurso do Ministério Público e reformulou a decisão, condenando-o também pelo crime de falsidade ideológica. Como o acórdão demorou a ser publicado, acabou ocorrendo a prescrição da pena de falsidade ideológica, mas não a da concussão, segundo o entendimento do TRF-2, do STJ e do STF.

Apesar de os três tribunais terem rechaçado a tese da prescrição, o juiz Bizzo Moliari deixou de executar a sentença como pedida pelo MPF. Aceitou a tese da defesa, decretou a prescrição e declarou extinta a punibilidade com o arquivamento do processo. Novamente, a procuradora Lilian recorreu da decisão, posição que foi sustentada no Tribunal Regional Federal pelo procurador regional Aloísio Firmo no Recurso Estrito. Em novembro de 2010, a desembargadora Maria Helena Cisne e os juízes convocados Aloísio Gonçalves de Castro Medes e Flávio Lucas, na 1ª Turma do TRF-2, acataram a posição do MPF.

No seu voto, o juiz convocado Castro Mendes, ressaltou que a questão já havia sido apreciada — e rechaçada — pelo Supremo Tribunal: “A controvérsia nos presentes autos se cinge à ocorrência ou não da extinção da pretensão punitiva estatal, nos moldes em que reconhecida pelo magistrado a quo, e o consequente impedimento do início do cumprimento da pena imposta ao acusado Edson Antonio de Oliveira. Impende ressaltar, de início, que a questão foi amplamente analisada e rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do voto proferido pela Exma. Rel. Min. Ellen Gracie, por ocasião do julgamento dos Embargos de Declaração interpostos do v. acórdão que negou seguimento ao Agravo de Instrumento, este interposto em face da decisão que inadmitiu o Recurso Extraordinário interposto pela defesa”.

Depois de transcrever trechos do voto da ministra Gracie, finalizou: “Uma vez já apreciada e decidida a questão pelo Supremo Tribunal Federal, é descabida a sua revisão pelas instâncias inferiores, o que representaria afronta aos julgados do Excelso Pretório. Isto posto, voto pelo provimento ao recurso, para que, afastada a declaração de extinção da punibilidade do acusado, Edson Antonio de Oliveira, seja dada imediata execução do julgado condenatório”.

Acatado por unanimidade na turma, seu voto parecia que iria gerar efeito imediato, mas o mandado de prisão do réu jamais foi expedido e o processo não baixou à 1ª Vara por conta do novo Recurso Especial interposto pela defesa pedindo que o caso volte a subir aos Tribunais Superiores. Embora ali a questão já tenha sido amplamente discutida e decidida, a desembargadora Vera Lúcia, como vice-presidente do TRF-2 acatou o pedido em decisão publicada no último dia 18. Com isto, a ordem da ministra Gracie que foi referendada por unanimidade na 2ª Turma do STF, permanece letra morta. A sentença não é executada, o réu continua impune e recebendo salário do Departamento de Polícia Federal, do qual, por decisão judicial, já deveria ter sido expulso.

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