Escassez de qualidade

Ensino Jurídico precisa ser reinventado

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26 de setembro de 2010, 8h00

A crise do ensino jurídico decorre da crise do próprio sistema jurídico, e tem sido uma questão mundial. Na verdade, infelizmente o curso de ciência jurídica tornou-se um mero passaporte de reserva de mercado e não tutela um real saber científico. O conhecimento jurídico atualmente passa por natural questionamento de suas estruturas. Mas, o problema maior é que o Estado Democrático de Direito tem sido confundido com o Estado do Bacharel em Direito e então todos querem esta titulação. Quando da queda do Brasil Imperial alguns estudiosos afirmaram que apenas estava havendo a troca de títulos de nobreza por títulos supostamente acadêmicos na República com base no Iluminismo.

O problema é que vários cargos que exercem funções de apoio como “furar, juntar e numerar folhas”, intimar, ou até mesmo apenas copiar jurisprudência e doutrina sem conseguir ter autonomia própria, tornaram-se “privativos de bacharel em Direito”, ou seja, banalizou-se o conhecimento jurídico. Imaginemos que o Curso de Medicina fosse pré-requisito para Agentes de Saúde e também para Médicos, ou seja, não formaria nem Agentes, nem Médicos, pois teria um público e objetivos muito diversos. A função de juntar papel tende a ser reduzida bastante, a médio prazo, com a digitalização do processo, logo estes profissionais terão que ser direcionados para outras atividades. E o Ministério da Justiça já identificou em pesquisa que somos proporcionalmente o país que mais tem servidor do Judiciário por habitante. E mesmo assim ainda estamos na lanterninha de agilidade processual.

Ademais, somos o único país no mundo em que para ser soldado, em alguns Estados, tem que ser bacharel em Direito. Será que todo o resto do mundo está errado e nós somos os únicos certos? Pode um Curso de Direito conseguir formar de Soldado a Ministro do STF e Procurador Geral da República? Ou seja, um público com objetivos tão diferentes? Também somos o único país do mundo em que cargo de Delegado de Polícia é privativo de bacharel em Direito. Em muitos países é privativo de curso superior, em alguns de nível médio, mas apenas no Brasil é privativo de Bacharel em Direito. Nada contra esta previsão no Brasil, mas será que quem ser Policial precisaria aprofundar em processo civil e nada ver sobre investigação, ou focar mais em Direito Civil do que Penal? Pois é assim nas faculdades no Brasil.

Em que ponto devemos começar a oferecer as especializações? Em que ponto o mercado pode começar a exigir as especializações? Em Portugal, já há  especializações formais para advogados, como ocorre na área médica no Brasil. Ou seja, em Portugal forma-se “generalista”, somente é especialista quem tiver aprovação em cursos reconhecidos pela Ordem de lá. Não basta colocar uma placa dizendo “especialista nisto ou naquilo”, tem que ter a formação acadêmica. Isto é bom ou ruim ? Para agravar, no Brasil, criamos varas especializadas em direito ambiental, família e outros, mas os juízes e demais profissionais não são especializados. Ora, isto seria o mesmo que criar centros avançados de cardiologia, mas os médicos seriam clínicos gerais. Faz sentido? No Brasil, nem discutimos isso. A rigor, a crise não é apenas do ensino jurídico.

Outro problema é que no inconsciente coletivo as pessoas acham que Curso de Direito é curso de “advocacia”.  Mas, não é. A lei não diz isso. E o curso apenas se tornou um pré-requisito para se fazer o Exame da OAB.

Nos cursos de Direito chegamos ao cúmulo de estudantes não terem hábito de leitura, ou seja, seria como se tivéssemos um curso de educação física para quem não gosta de esportes.

Outro aspecto que empobrece o ensino jurídico é a falta de vocação para as lides sociais e políticas. Tanto o Presidente dos Estados Unidos, o Obama, como Fidel Castro, são formados em Direito.  Logo, não se discute a ideologia, mas a capacidade de ter idéias. Será que nossos cursos de ciência jurídica no Brasil conseguem formar líderes sociais e políticos? Ou apenas formamos pedreiros jurídicos? Os quais decoram conceitos sem capacidade para analisar o sistema. Ou seja, olham para o tijolo e não conseguem ver a estrutura predial.

Retoricamente usam termos como “transformação social”, mas na prática mal conseguem pesquisar e copiar trechos do google. O que tem prevalecido nos meios acadêmicos é apenas a busca de emprego ou a possibilidade de mandar em alguém através do cargo.  Não se tem uma função de pacificação social, ou de interação com a sociedade. Além disso, interesses corporativos também inibem a capacidade de pensar das Escolas, pois repressões aos Núcleos de Prática Jurídica, NPJs, impedem que saiam da mesmice de “guarda, alimentos e divórcio”, pois não podem atuar de forma mais social, pró-ativa e em áreas como previdência, trabalhista, administrativo, direitos coletivos, pois a OAB se acha no direito de descredenciar quem faz isso. Ora, mas não existe lei que estipule que os NPJs devem ser credenciados pela OAB.

Questões de status também dificultam o avanço das mudanças, pois seria muito importante que fossem criados cursos técnicos e tecnológicos na área jurídica, como Direitos Humanos, Infância e Adolescência, Direito Autoral, Legislação Educacional, Meio Ambiente, Registros Públicos, Segurança Pública e vários outros setores que não são ensinados nos cursos de bacharelismo, mas que paradoxalmente são temas “privativos” de reserva de mercado para bacharéis em Direito.

No entanto, “tecnizar” conhecimento jurídico é considerado por setores do MEC como um absurdo e perda de status palaciano. Atualmente não há como dissociar ensino de profissão, mas se não discutirmos o que é conhecimento jurídico, em breve vão alegar que cargo de porteiro de fórum é privativo de bacharel em Direito, pois pode orientar melhor as pessoas que passam pela portaria.

O corpo de professores também tem a sua responsabilidade, pois não conhece a legislação educacional, e apenas ensina tecnicamente a sua matéria, nem mesmo propõe uma visão crítica.  Não raro, muitos professores acham que os alunos serão concorrentes futuramente, logo não querem discutir mercado de trabalho. Nem mesmo se sabe o funcionamento do sistema jurídico  e educacional em outros países.

Como pensar é uma atividade dificultosa, então os cursos de Direito tornaram-se  Escola de Copistas, como na idade média em que se copiava livros, pois não existia a gráfica ainda. Hoje o que a apostila fala como verdade, assim o será, principalmente dependendo de quem fala. Não existe mais lógica jurídica, argumentação ou análise estrutural.

Algumas faculdades tradicionais impõem os seus dogmas históricos e vivem distantes da realidade social e tornam-se uma espécie de profetas do Direito, mas sem usarem estatísticas e baseando sempre na retórica de justificar suas posturas com base nos seus antepassados.

Em suma, dizem que a Terra é quadrada, pois algum Papa assim o escreveu anteriormente e então a Terra tem que ser quadrada mesmo, mas ninguém ousa inspecionar se a Terra é quadrada, mas recebem rios de dinheiro público, incluindo bolsas, para fazerem estas pesquisas de resumir textos, e muitas ficam apenas na gaveta mesmo, pois apenas confirmam copiando argumentos de outros pensadores que a Terra é quadrada mesmo e objetivo era mais escrever bonito e justificar a bolsa do que descobrir algo novo.

Outrossim, nas faculdades de ciência jurídica não se discute o mais importante: o cliente. E agrava-se ainda mais, pois temas como processo eletrônico, direitos sociais, mercado de trabalho, sistemas internacionais, gestão jurídica, marketing, função social e outros não são tratados como importantes. Afinal, relevante é discutir diferença entre alimentos provisionais ou alimentos provisórios, ou questões processuais, e sempre judiciais. O mundo externo não existe.

Infelizmente estamos formando tecnocratas processuais que sobrevivem da burocracia e não dos resultados.

Alguns pesquisadores Norte-americanos e da Espanha analisam que o curso de ciência jurídica tende a desaparecer ou ao menos perder a reserva de mercado. Afinal, com a democratização do conhecimento através da internet, muitos dogmas e o conhecimento hermético tendem a se popularizar e as pessoas terão autonomia.

Joaquim Nabuco já criticava os cursos jurídicos em 1900 e dizia que se perguntassem algo sobre direito material a um bacharel, este daria uma longa resposta sobre temas processuais e ao final não diria nada.

Hoje, se alguém perguntar como obter um direito simples como isenção da tarifa da água ou bancária, poucos saberão responder, pois mais focados nas questões mais comuns da classe média. Tanto é que não existem obras sobre a saúde pública (SUS), mas existem sobre a saúde privada (planos de saúde).

Outro grande risco à democracia são os rompantes de “decidir conforme consciência” contra a lei e até mesmo a Constituição Federal, usando evasivas como dignidade humana (pois comporta tudo), pois isso pode implicar em uma ditadura jurídica e fim da separação de poderes.

Hiltler e outros ditadores também usavam palavras bonitas para justificar seus atos. Para se entender Direito é preciso estudar a história, a sociologia, a psicologia, a economia, ciência política e outros setores fundamentais para se entender o contexto sistêmico. Não basta citar conceituadores de dignidade humana, afinal Hitler buscava a dignidade humana da “raça ariana” quando cometeu suas atrocidades.

Precisamos refletir sobre este tema, pois o Direito e o seu ensino, bem como seus propósitos, precisam ser reinventados, pois excessivamente focados na processualite e no judicialismo. Isto é, o processo deixou de ser meio e passou a ser um fim em sim mesmo, pois quanto mais dificuldade cria, mais exalta o “acesso jurídico”.

Aparentemente a melhor solução é a criação de cursos técnicos (nível médio) e tecnológos (superior de dois anos)  na área jurídica, pois permitiriam a inclusão social  e a difusão de conhecimentos básicos para atividades mais restritas e específicas, deixando as atividades mais complexas e amplas para o curso de bacharel (graduação de cinco ou mais anos) e também discutirmos  o papel social e de extensão dos cursos de pós-graduação (tanto lato, como stricto), pois o excesso de preocupação com a graduação tem apenas preocupação com reserva de mercado e não com os paradigmas, tanto é que nada se fala na pós-graduação ou em tecnização do ensino jurídico.

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