A letra da lei

Execução de título judicial e Justiça gratuita

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6 de setembro de 2010, 0h24

    Ementa: Processual civil. Gratuidade da justiça. Execução das verbas sucumbenciais. Possibilidade. Interpretação sistemática e teleológica da Lei 1.060/1950 em conjugação com o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. O beneficiário da gratuidade da justiça que possui patrimônio penhorável, vencido ao final da demanda, pode ter esses bens excutidos para a satisfação da obrigação consubstanciada no título de crédito construído pela sentença definitiva.     

A Lei 1.060/1950, que regula o benefício da gratuidade da justiça, não encerra um direito absoluto, como de resto, segundo a moderna exegese, não existem direitos absolutos. A absolutidade de direito é incompatível com o princípio segundo o qual toda norma jurídica deve ser interpretada e aplicada levando-se em conta os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum, que no sistema jurídico brasileiro está entronizado no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Sob tal perspectiva, o aplicador da norma jurídica deve conciliar a interpretação sistemática com a teleológica a fim de encontrar a melhor fórmula de aplicação da regra. Somente assim consegue-se alcançar os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum, conciliando a norma regente com os princípios e as demais regras que permeiam o ordenamento em vigor.

Tendo isso em vista, força convir, o fato de o sucumbente ser beneficiário da gratuidade da justiça ex vi das disposições contidas na Lei 1.060/1950 não constitui empeço a que se proceda à execução da sucumbência contra ele, notadamente da verba honorária, por diversos fundamentos.

A aplicação da Lei 1.060/1950, exatamente porque concebida há mais de 60 anos, impõe repassar seu exame para atualizar sua interpretação, quando menos, a fim de situá-la no contexto jurídico da atualidade, completamente diferente do momento em que veio a lume.

O primeiro ponto a enfrentar diz respeito aos fins a que se dirige a lei em questão. Numa palavra, essa questão pode ser resolvida com a resposta à seguinte indagação: qual a finalidade visada pela Lei 1.060/1950, ao outorgar o benefício da gratuidade da justiça àqueles que a requererem cumprindo os requisitos que estabelece?

A resposta é imediata: obsequiar ao interessado o acesso à Justiça. De um lado, o Estado moderno avoca para si o monopólio da tarefa de distribuição e realização da Justiça. De outro, veda ao indivíduo a justiça de mão própria. A avocação do múnus público de administração da Justiça associada à vedação que se faz da justiça de mão própria implica necessariamente o reconhecimento de que a todo indivíduo deve ser franqueado o acesso ao sistema de solução dos conflitos de interesses em que se vir envolvido. Numa palavra, o direito de acesso à Justiça constitui um direito fundamental cujo exercício não pode ser obstado pelo Estado, ainda que deva ser pago, porque se assim não for, o indivíduo ver-se-ia manietado, imerso num dilema insolúvel, pois nem teria acesso ao serviço estatal de prestação da tutela jurisdicional, nem poderia fazer justiça com as próprias mãos. Tão repugnante é a justiça de mão própria que o ordenamento a proscreve com vigorosa proibição, classificando como crime o exercício arbitrário das próprias razões. 

Embora o serviço estatal de prestação da tutela jurisdicional seja oneroso — paga-se para o Estado prestá-lo —, como, aliás, soem ser todos os serviços estatais em geral, em razão de sua importância para a coesão e preservação da paz social, e da exclusividade estatal sobre tal prestação, não seria moralmente lícito, pelo menos num sistema democrático, dificultar ao indivíduo o exercício do direito manejado em face do Estado para dele obter a prestação jurisdicional.

Destarte, a gratuidade da justiça introduz o mecanismo necessário para favorecer o fim social maior de pacificação das partes e solução dos conflitos que entre elas possa emergir. 

No direito pátrio, o acesso à Justiça está assegurado na Constituição Federal, protegido pela couraça da cláusula pétrea, de modo que não pode ser modificado. Deveras, a todos é assegurado, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (CF, art. 5º, XXXIV, ‘a’), e a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV). 

A garantia constitucional de acesso à Justiça não estaria completa, se não houvesse um mecanismo capaz de assegurá-lo independentemente da condição econômica da pessoa. Em outras palavras, a garantia constitucional que promete a todo indivíduo a prestação da tutela jurisdicional para a solução das lesões ou ameaças de direito que sofrer não seria plena, se em razão da condição econômica do indivíduo, este não pudesse requerer os serviços jurisdicionais. 

Para assegurar a eficácia de tal garantia, a própria Constituição Federal não só admite como também impõe ao Estado a prestação do serviço de tutela jurisdicional gratuitamente sob determinadas condições. A cláusula de eficácia do acesso gratuito à Justiça encontra-se revestida pelo tegumento que a cristaliza e torna imutável, inscrita que está no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal. 

Esse inciso, contudo, tem como destinatário apenas o próprio Estado. Por outro falar, trata-se de um preceito constitucional que traça limites precisos a respeito da relação Estado-indivíduo, não atingindo a relação indivíduo-indivíduo. 

A gratuidade da justiça tal como modelada pela Constituição Federal deve, contudo, ser ampla, sob pena de o acesso à Justiça não ser pleno. Assim, o serviço estatal não pode ser entendido com restrições, como a só atividade do Estado-juiz, porquanto no palco forense atuam outros atores e toda relação jurídica processual litigiosa compõe-se angularmente por três partes, uma imparcial e duas parciais. A gratuidade da justiça deve, portanto, abranger todos os serviços estatais relacionados com a administração, distribuição e aplicação da justiça. 

Nesse sentido milita, outrossim, a proteção outorgada pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que em seu artigo 8º dispõe, «in verbis»: 

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 

A conclusão dessa primeira etapa do exame sobre o benefício da gratuidade da justiça é, então, que possui um fundamento material moralmente forte e válido, e em razão disso ganha foros jurídicos para entrar no ordenamento positivo como norma de direito. 

O inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, no entanto, condiciona a gratuidade da justiça à satisfação de um requisito material e outro formal. O requisito material constitui a insuficiência de recursos do interessado. O requisito formal é a exigência de que tal hipossuficiência seja demonstrada pelo interessado. Em outras palavras, não basta que o interessado experimente uma situação de falta de recursos que lhe impeça o acesso à Justiça, é necessário que faça a prova dessa carência financeira. 


Não obstante, a Constituição Federal não avança o escrutínio da questão para determinar com maior precisão o que deva ser entendido por insuficiência de recursos e qual a prova deve o interessado produzir para demonstrá-la. Nem seria curial que Constituição Federal descesse a tal nível de pormenorização, até porque, essas questões são de índole eminentemente técnica, razão por que devem ser deixadas a cargo da doutrina ou da legislação infraconstitucional. 

Nesse ponto, entra em cena a Lei 1.060/1950, a qual regula a concessão do benefício da gratuidade da justiça suprindo, exatamente, aquelas lacunas deixadas pela Constituição Federal. 

O parágrafo único do artigo 2º da Lei 1.060/1950 determina o requisito necessário ao deferimento do benefício da gratuidade da justiça: «[c]onsidera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família». 

O estado de miserabilidade considerado pela lei não é, portanto, um estado de hipossuficiência absoluta, mas, isto sim, um estado de necessidade que se afere a partir do cotejo entre as despesas do processo e o sustento do interessado ou de sua família no confronto da receita familiar. É, então, um estado de miserabilidade relativo. 

Além disso, a situação econômica a que o dispositivo legal faz expressa referência deve considerar-se como a renda do interessado, a qual representa seu fluxo financeiro, porquanto é a renda das pessoas que responde pelo sustento delas. Em outras palavras, a situação econômica que autoriza a concessão do benefício nada tem a ver com o patrimônio ou a poupança acumulada do interessado, seu estoque de riqueza, já que o sustento não se obtém do patrimônio, mas, isto sim, da renda que aufere, seja com o seu trabalho, seja com a exploração rentável do patrimônio possuído (v.g., aluguel, dividendos, etc.). 

A lei estabelece um critério coerente. Se a tutela jurisdicional é um serviço estatal, e se esse serviço é monopólio do estado, de modo que o indivíduo não tem outra alternativa para perseguir a possibilidade de exercício ou reparação de um direito violado, então, não pode ser compelido a se desfazer do patrimônio acumulado para ter acesso a esse serviço, nem impedido desse acesso por não ter recursos suficientes para o pagamento das custas e honorários de advogado ou obrigado a sacrificar o sustento e o conforto próprio ou de sua família para defender pela única forma possível o direito de que entende ser titular. 

A isso soma-se o fato de que as custas representam um adiantamento pelo serviço estatal, já que devem ser recolhidas com a petição inicial, antes mesmo do início da prestação correspondente por parte do sujeito passivo da prestação jurisdicional, o Estado-juiz. Adiantamento porque normalmente paga-se pelo serviço prestado, e não pelo serviço a prestar. Demais disso, a obrigação de pagar as custas processuais constitui obrigação do sucumbente, que só se conhece ao final da demanda, e caso o beneficiário da gratuidade da justiça saia vencedor, será o seu antagonista o devedor das despesas pelo serviço da tutela jurisdicional prestado. 

O artigo 11 da Lei 1.060/1950 não passa, na atualidade, de uma excrescência jurídica, já que de acordo com o artigo 20 do Código de Processo Civil, será sempre o vencido quem deverá arcar com as custas e despesas do processo. 

O artigo 12 do mesmo diploma legal deve ser bem compreendido para não ser causa de desvio conceitual nem gerar iniquidades. Primeiro, a redação dada pelo legislador de 1950 incide em erro grosseiro na sua literalidade, mas que é prontamente perceptível por quem conheça bem as normas da língua escrita. Esse erro consiste em que há duas partes que encerram comandos distintos, partes essas que formam períodos distintos e, por essa razão, deveriam estar separadas por um ponto, em vez de uma vírgula. Em outras palavras, sobram duas vírgulas no texto legal, uma das quais deveria ser um ponto. Para aclarar o tema, reproduzamos a seguir o texto legal, colocando entre parênteses as vírgulas indevidas. Diz o artigo 12: 

A parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo(,) sem prejuízo do sustento próprio ou da família(,) se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita. 

O texto ficaria melhor e mais bem escrito de acordo com as normas da língua portuguesa, se apresentasse a seguinte redação: «[a] parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita.» 

A primeira parte contém um comando cuja aplicação só pode ocorrer no curso da demanda, antes, portanto, da sentença final. É um erro pensar ou interpretar a oração subordinada adverbial condicional «se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento» como prótase de todo o período anterior, porque tal interpretação implicaria ter de aceitá-la como prótase daquele período e da oração principal que se lhe segue «a obrigação ficará prescrita. Uma interpretação assim implicaria também em que a apódose «a obrigação ficará prescrita» deveria relacionar-se com todo o período anterior por coordenação aditiva, dificultando sobremaneira o entendimento do conjunto. Mas basta reescrever as orações em outra ordem para verificar o absurdo a que isso conduz, sempre levando em conta as vírgulas empregadas no texto original: «a obrigação ficará prescrita e a parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento» ou «a parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família e a obrigação ficará prescrita, se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento». O absurdo liguístico é palmar. 

Cumpre, então, encontrar a redação mais consistente e em conformidade com as normas da gramática da língua portuguesa que melhor permita exprimir o comando legal sob análise. Tal redação é aquela acima oferecida, em que há uma cisão do enunciado legal em dois períodos distintos porque produz um texto claro, preciso, sem ambiguidades e sem incorreções gramaticais, como demonstra a análise sintática abaixo engendrada: 

1º período: «[a] parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo sem prejuízo do sustento próprio ou da família.»

Período composto por subordinação, oração complexa.

Oração principal (apódose) «a parte … obrigada a pagá-las»;
Sujeito da OP «a parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas;
Predicado da OP «ficará obrigada a pagá-las» nominal;
Verbo «ficará», de ligação;
Predicativo «obrigada»;
Complemento nominal de «obrigada» «a pagá-las», oracional;
Oração subordinada substantiva completiva nominal «a pagá-las», reduzida de infinitivo, complementa o sentido do adjetivo «obrigada»;
Sujeito da OSSCN elíptico (a parte);
Predicado «pagá-las», verbal;
Verbo «pagar», nocional, transitivo direto;
Objeto direto do verbo «pagar» «las» (as custas);
Oração subordinada adverbial condicional (prótase) «desde que possa fazê-lo… da família»;
Locução conjuntiva condicional «desde que»;
Sujeito elíptico (a parte);
Predicado «possa fazê-lo… da família», verbal;
Locução verbal «possa fazer», transitiva direita;
Objeto direto da locução verbal «possa fazer» «lo» (refere ao pagamento das custas);
Adjunto adverbial de modo «sem prejuízo do sustento próprio ou da família», formado por um sintagma preposicional, modifica a circunstância expressa pela locução verbal «possa fazer»;


2º período: «se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita.»

Período composto por subordinação, oração complexa.

Oração principal (apódose) «a obrigação ficará prescrita»;
Sujeito «a obrigação»;
Predicado «ficará prescrita», nominal;
Verbo de ligação «ficará»;
Predicativo «prescrita»;
Oração subordinada adverbial condicional «se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento»;
Conjunção condicional «se»;
Sujeito da OSAC «o assistido»;
Predicado «não puder satisfazer tal pagamento dentro de cinco anos, a contar da sentença final», verbal;
Verbo «puder», nocional, transitivo direto;
Advérbio de negação «não», modifica o processo verbal expresso pelo verbo «puder»;
Objeto direto de «puder» «satisfazer tal pagamento», oracional;
Oração subordinada substantiva objetiva direta «satisfazer tal pagamento», reduzida de infinitivo;
Sujeito da OSSOD elíptico (o assistido);
Predicado «satisfazer tal pagamento», verbal;
Verbo «satisfazer», nocional, transitivo direito;
Objeto direto de «satisfazer» «tal pagamento»;
Adjunto adverbial de tempo «dentro de cinco anos», circunstância que altera o processo verbal;
Adjunto adverbial de tempo «a contar da sentença final», modifica o adjunto adverbial de tempo anterior.
Oração subordinada adverbial de tempo «a contar da sentença final»;
Sujeito elíptico (o prazo de cinco anos);
Adjunto adverbial de tempo «da sentença final», estabelece o marco temporal inicial, ou o dies a quo do início da ação verbal de contar o prazo, significando o momento em que a sentença final é proferida.

A análise retrodesenvolvida não se afigura possível sem considerar a existência de dois períodos distintos no enunciado legal do artigo 12 da Lei 1.060/1950. Em outras palavras, se se considerar que o artigo 12 da Lei 1.060/1950 contém um só período a análise sintática torna-se extremamente complexa, difícil e trabalhosa, além do que, produzirá um resultado ambíguo, que dificulta a inteligência da mensagem transmitida no comando legal, fonte geratriz de muita confusão. Por isso, deve preferir-se a análise sintática mais simples, que evita ambiguidades e permite uma intelecção fluída do enunciado legal, como a apresentada acima. 

Esclarecida a questão da interpretação gramatical do artigo 12, insta observar que o segundo período a norma em apreço refere à obrigação do sucumbente em pagar as dívidas constituídas no título judicial. Na primeira parte desse dispositivo legal, cuida a norma de reafirmar a exigência de que as custas e despesas processuais não serão cobradas no curso da demanda, enquanto persistir o estado de hipossuficiência econômica que decorre da insuficiência de renda do beneficiário da gratuidade da justiça. Ou seja, enquanto o beneficiado não experimentar uma melhora no nível do seu fluxo de renda, de onde extrai o sustento próprio e de sua família, não estará obrigado ao pagamento das custas e despesas processuais. 

Porém, a situação final, depois de alcançada a sentença definitiva, é substancialmente diferente. Isto porque a lei alude à obrigação, quando admite estará ela prescrita se, ao cobro de cinco anos, o beneficiado não puder pagá-las. 

Aqui o intérprete deve ater-se para o que dispõe o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual, ao aplicar a lei, o juiz deverá atender aos fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum. Tendo isso em mente, deve indagar: qual o fim social a que a lei da gratuidade da justiça se dirige? Reposta: ao fim social de franquear o acesso à Justiça. Quais as exigências do bem comum? Resposta: que as partes cumpram os princípios gerais de direito: «honeste vivere, suum quique tribuere et neminem laedere», o que reconduz à necessidade de fazer valer os princípios gerais de direito, entre os quais figura o princípio de que o patrimônio do devedor é a garantia geral de seus credores. 

De outro lado, a segunda parte do artigo 12 da Lei 1.060/1950 só tem aplicabilidade quando o beneficiário da gratuidade da justiça é o maior sucumbente na ação. Isso porque, ao sair vencido na demanda, contra ele constrói-se um título obrigacional, consistente do dever de pagar as custas e despesas processuais, aí incluída a verba honorária devida ao advogado da parte antagonista vencedora. 

Porém, já não há mais falar em acesso à Justiça. A prestação da tutela jurisdicional foi entregue em sua totalidade. Ao final da demanda, com o trânsito em julgado contrário aos interesses do beneficiário da gratuidade da justiça, surge para ele uma obrigação de pagar. O que antes era apenas um adiantamento para as despesas processuais — tanto que se saísse vencedor, a obrigação seria da parte perdedora, ou se não fosse beneficiado pela gratuidade da justiça e tivesse efetuado o adiantamento das custas previstos na lei, teria direito de restituição em face desta última —, agora constitui-se em obrigação perfeita e acabada, consolidada em um título obrigacional. 

De acordo com o sistema jurídico vigente, é o patrimônio da pessoa que deve responder por suas obrigações. Já não se cogita mais do fluxo de renda de onde o beneficiário da gratuidade da justiça extrai o sustento de si e de sua família, mas, isto sim, do estoque de riqueza que possui e constitui a garantia geral de seus credores. 

Assim, a situação econômica do interessado na gratuidade da justiça deve ser bem compreendida porque se apresenta com natureza diversa antes e depois da sentença definitiva.

Antes desta, tal situação econômica é, na verdade, a expressão financeira do fluxo de renda do interessado, porque é daí que ordinariamente toda pessoa desfalca os recursos necessários ao pagamento das custas e despesas processuais. Se tal desfalque causar prejuízo para seu sustento ou de sua família, defere-se o benefício, ainda que o interessado possua portentoso patrimônio (ninguém pode ser compelido a desfazer-se de um bem patrimonial para ter acesso à Justiça). Se, por outro lado, no curso da demanda, experimentar um incremento em sua renda que lhe permita o pagamento das custas sem prejudicar o sustento que não pode ser sacrificado, então, deverá fazê-lo sob pena de ser condenado no décuplo das custas (§ 1º do artigo 4º da Lei 1.060/1950). Se, durante o processo, o beneficiário não experimentar uma alteração positiva no seu fluxo de renda, o benefício será mantido até a sentença definitiva. 

Contudo, depois da sentença definitiva, a avaliação econômica do beneficiário deve operar-se sob outra perspectiva. Já não mais sob o ângulo do seu fluxo de renda, até porque, dependendo da natureza dessa renda, jamais poderá ser objeto de penhora (salários, honorários, aposentadoria, etc., conforme a proibição inscrita no artigo 649 do Código de Processo Civil), mas sob o ângulo do patrimônio, do estoque de riqueza, porque, como já mencionado linhas atrás, é o patrimônio do devedor que responde pelas obrigações que contraiu. 

Assim, se o beneficiário da gratuidade da justiça possuía patrimônio, mas não renda suficiente, no início e ao longo do processo, conquanto lhe tenha sido franqueado o acesso à Justiça graciosamente, sendo vencido, i.e., sucumbente, a obrigação representada no título judicial contra ele constituído, notadamente a de pagar as custas e despesas do processo, inclusive a verba honorária do advogado da parte vencedora, devem ser executadas contra o patrimônio que (o beneficiário da gratuidade da justiça) ostentar no momento da execução. 

Obviamente, as custas processuais deverão ser executadas pela Fazenda Pública. Também é evidente que se o patrimônio do beneficiário constituir-se apenas do imóvel em que reside, estará ao abrigo de qualquer excussão por ser bem de família (Lei 8.009/1990). Porém, se tiver outros bens penhoráveis, recursos monetários ou investimentos que não se caracterizem com a insígnia da verba alimentar, como são os depósitos em caderneta de poupança, investimentos financeiros, depósitos a vista não decorrentes do pagamento dos últimos três salários, etc., tais bens, que integram o patrimônio do beneficiário, poderão ser executados para a satisfação dos créditos constituídos contra ele pela sentença definitiva que fez surgir um título obrigacional. 

Podemos concluir que a interpretação aqui dissecada confere plena harmonia dos ditames da Lei 1.060/1950 com os preceitos contidos na Lei de Execuções Fiscais, no Código Tributário Nacional, na Lei 8.906/1994 e no Código Civil, artigo 202, § 5º, segundo os quais a obrigação de pagar as custas, dívida de natureza fiscal, assim como a de pagar honorários de advogado e a de restituir as despesas processuais pagas pela parte vencedora, agora constantes de título (judicial) escrito, prescrevem em cinco anos. 

A prescrição da obrigação no prazo de cinco anos, como expressamente estatuída na segunda parte do artigo 12 da Lei 1.060/1950, não significa estarem a Fazenda Pública, a parte vencedora e seu advogado impedidos de insurgência contra o patrimônio do devedor, o beneficiário da gratuidade da justiça, para obter a satisfação do crédito que lhes foi outorgado com a sentença que o condenou nas verbas sucumbenciais. A prescrição de tal obrigação, «rectius» da pretensão de obter a satisfação do crédito correspondente à obrigação representada no título judicial, opera-se no prazo de cinco anos, se e somente se o devedor, beneficiário da gratuidade da justiça, não tiver condições de quitá-la, ou seja, se seu patrimônio não for suficiente para fazer frente ao pagamento da dívida. 

Tal execução jamais se fará contra o fluxo de renda do beneficiário da gratuidade da justiça, de modo que a proteção pretendida pela norma a respeito do seu sustento ou de sua família continuará preservada e operosa, pois se a renda não pode ser objeto da execução, o sustento não sofre qualquer ameaça. O alvo da execução serão os bens que compõem o patrimônio do beneficiário sucumbente. O estoque de sua riqueza acumulada. Se ele não possuir bens penhoráveis, o transcurso do lapso de cinco anos colherá com a prescrição a pretensão dos credores pelo título judicial, ainda que não houvesse expressa menção nesse sentido na segunda parte do artigo 12 da Lei 1.060/1950, «ex vi» das disposições contidas em outros diplomas legais no mesmo sentido. 

A interpretação correta do artigo 12 da Lei 1.060/1950 atende aos fins sociais a que se dirige a norma e às exigências do bem comum, harmoniza-se com os demais preceitos contidos no sistema jurídico em vigor e acarreta a concretização dos valores mores do direito: «neminem laedere, suum quique tribuere et honeste vivere», assegurando o princípio geral, fruto da evolução do direito obrigacional, segundo o qual é o patrimônio da pessoa, e não ela própria, que deve suportar suas obrigações.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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