Documentos sigilosos

É legal divulgação que vise interesse público

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2 de setembro de 2010, 17h25

O presente artigo abordará os efeitos jurídicos da divulgação do conteúdo de correspondências, à luz da doutrina processual sobre documento e da concepção administrativista de interesse público. Vejamos.

Moacyr Amaral Santos, eminente processualista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, conceituava documento:

Documento – de ‘documentum’, do verbo ‘doceo’, ensinar, mostrar, indicar – significa uma coisa que tem em si a virtude de fazer conhecer outra coisa.

Num sentido amplo, é a coisa que representa-se e presta-se a reproduzir manifestação do pensamento, ou seja, uma coisa representativa de idéias ou fatos. Transportada essa conceituação para o campo da prova judiciária, cujo objeto são os fatos, e em relação à qual também as idéias se encaram como fatos, dir-se-á que documento é uma coisa representativa de um fato (in Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, vol. IV, 7ª ed., 1994, p. 143, grifo no original).

Maria Helena Diniz, renomada doutrinadora do Direito Civil, discorreu sobre documentos particulares:

Serão particulares quando feitos por pessoas físicas ou jurídicas não investidas de função pública, p. ex.: cartas, telegramas (provam-se mediante conferência com o original assinado – CC, art. 222); radiograma; fotografias, inclusive cópias (CC, art. 223 e parágrafo único) fotográficas de documentos; salvo nos casos em que se exigir a exibição do original, reproduções gráficas, mecânicas, eletrônicas e cinematográficas e registros fonográficos (CC, art. 225), avisos bancários, registros paroquiais; livros e fichas de empresários e sociedades que provam contra as pessoas a que pertencem, e, em seu favor, quando escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, foram confirmados por outros subsídios (CC, art. 226) (in Curso de Direito Civil, Saraiva, vol. 1, 19ª ed., 2002, pp. 428-429, grifei).

Não destoava Amaral Santos:

São documentos particulares, em síntese, os escritos ou assinados por qualquer pessoa, sem intervenção do oficial público. São instrumentos particulares os escritos que, emanados da parte, sem intervenção do oficial público, respeitada certa forma, se destinam a constituir, extinguir ou modificar um ato jurídico. (…).

Os instrumentos particulares podem ser: a) escritos e assinados pela parte, v. g., confissão de dívida assinada pelo devedor, testamento cerrado; b) escritos por outrem e assinados pela parte, v. g., escritura particular, datilografada por terceiro, assinada pelas partes; c) escritos pela parte mas por ela não assinados, v. g., papéis e registros domésticos, anotações em documentos assinados; d) nem escritos nem assinados pelas parte, v. g., livros comerciais, escriturados por empregados da empresa (ob. cit., p. 161).

Sobre o valor probante dos documentos assinados, dispõe o artigo 219, caput, do Código Civil Brasileiro:

“As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários.”

O distinto sanjoanense José Antônio de Ávila Sacramento, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei/MG, publicou o instigante artigo A quem pertencem as epístolas? (Jornal de Minas, São João del-Rei,  edição de 13 a 19.08.2010, p. 2), onde destaca:

Creio que as cartas podem ser consideradas como literatura de informação. Elas, no meu modesto entendimento, são peças literárias que funcionam como sendo retratos de uma época; podem ser entendidas como documentos biográficos, históricos ou até mesmo artísticos. (…).

Ao tratarmos da propriedade dos direitos autorais de cartas, evidencio que a nossa Constituição de 1988, em seu artigo 5º, XII, trata assim do assunto da inviolabilidade e do sigilo das correspondências: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal". Evidencio, também, o nosso Código Penal, que em seu artigo 151, apregoa que não se deve devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem, nem apossar indevidamente de correspondência alheia, nem a sonegar ou destruir.

Partindo destes fundamentos e destas indagações, não fica claro para este articulista o entendimento de que se as cartas expedidas e/ou recebidas podem ser livremente publicadas e que quem revela os seus conteúdos pode invocar que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. O que posso concluir é que as cartas (especialmente aquelas que eu escrevi), se publicadas, não devem ser entendidas como instrumentos violadores de segredos ou de sigilos de quem quer que seja; certamente que a publicação delas estará resguardada pelo livre direito que tenho de me manifestar. Um pouco mais complicado é o caso das correspondências alheias que recebo: estas, se forem expostas sem a permissão dos autores, podem até ser objeto de questionamentos legais (…).

O que pretendo é saber se legalmente posso ou não posso publicar as correspondências emitidas e recebidas. Existe o direito de publicá-las? Ou existe algum impedimento legal para não publicá-las? Creio que se a norma legal não é evidente no impedimento ou permissão para publicar as correspondências – especialmente aquelas que eu escrevi –, prevalecerá como regra a liberdade para fazê-lo, ainda que a pessoa não possa se escusar das responsabilidades por possíveis ofensas aos interesses pessoais individuais ou coletivos das partes envolvidas. O que deve pesar na balança do bom senso deve ser a valoração daquilo que se pretende revelar, não em detrimento do segredo, mas em favor da magnitude da revelação que se quer expor. Ou não?

Discorreremos, em tese, sobre as oportunas reflexões do douto articulista. Cumpre inicialmente tecer algumas considerações sobre as conseqüências jurídicas da divulgação do conteúdo de correspondências.

O Código Penal dispôs sobre os crimes contra a inviolabilidade de correspondência:

Violação de correspondência

Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

Sonegação ou destruição de correspondência

§ 1º – Na mesma pena incorre:

I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;

Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica

II – quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;

III – quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;

IV – quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal.

§ 2º – As penas aumentam-se de metade, se há dano para outrem.

§ 3º – Se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico:

Pena – detenção, de um a três anos.

§ 4º – Somente se procede mediante representação, salvo nos casos do § 1º, IV, e do § 3º.

Correspondência comercial

Art. 152 – Abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo:

Pena – detenção, de três meses a dois anos.

Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

Gisele Leite discorre sobre os crimes ora enfocados:

No art. 151, caput, do Código Penal Brasileiro define-se o crime de violação de correspondência, mas o tipo penal foi substituído com a mesma redação pelo art. 40 da Lei 6.538, de 22/6/1978 que dispõe sobre os serviços postais, prevendo pena mais rigorosa que é de detenção de 6 meses, ou multa de até 20(vinte) dias-multa.


Já no parágrafo primeiro do mesmo artigo, a conduta é apossar-se da correspondência com o fim de escondê-la ou desviá-la ou para inutilizá-la, no todo ou em parte. È necessário que a conduta seja indevida e nada impede a tentativa.

São várias as condutas típicas contempladas no art. 151, parágrafo primeiro divulgar a comunicação telegráfica ou radioelétrica; transmitir o conteúdo à pessoa determinada, ainda que reservadamente; e utilizar o conhecimento da mensagem, de qualquer forma, desde que o fato não configure crime mais grave, como o de extorsão, por exemplo.

As mensagens protegidas são as transmitidas por telégrafo, telefone ou por ondas hertzianas (rádios, televisão, etc.) quando não dirigidas ao público em geral.

O dolo corresponde à vontade de violar a lei, praticar as condutas incriminadas sendo irrelevante o fim pretendido pelo agente criminoso. Consuma-se o crime com a mera divulgação do conteúdo, indepentemente da obtenção de qualquer vantagem.

A interceptação telefônica passou a ser disciplinada pela Lei 9.296 de 24.7.96 que regulamentou o art. 5º, XII parte final da CF; tal lei em seu art. 10 criminaliza conduta de interceptar ligações telefônicas, de informática e quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial prévia, e com objetivos não autorizados em lei, aplica a pena de dois a quatro anos de reclusão e multa.

Júlio Fabrini Mirabete entende que tal lei especial não revogou o art. 151, §1º, II do CP que pode ser aplicado não ao interceptador mas a terceiro que não colaborou com tal conduta. A conduta típica enunciada em lei especial é interceptar a comunicação (por escuta ou por gravação, ou qualquer outro meio) ainda que não haja divulgação ou transmissão a terceiro.

Aliás quanto a prova ilícita, discorri mais amiúde sobre o tema em artigo também publicado em 08.08.2002 no site ‘www. direito.com.br’ sob o título de ‘O princípio da proibição da prova ilícita’.

Também é crime impedir a comunicação ou conversação efetivada por telégrafo, rádio ou telefone. Qualquer pessoa pode cometer o delito, eis que é crime comum e mesmo a autoridade não pode embaraçar a liberdade de radiodifusão ou da televisão (exceto nos casos legalmente amparados por lei) e incidirá no que couber na sanção do art. 322 do CP (violência arbitrária).

O art. 151, §1º, inciso IV do CP foi substituído pelo art. 70 da Lei 4.117 do 27-8-62 que disciplinou o Código Brasileiro de Telecomunicações com a redação dada pelo Decreto-Lei 236 de 28-2-67 e pune com detenção de um ano a dois anos, aumentada da metade, se houver dano a terceiro a instalação ou utilização de telecomunicações sem a observância da lei e dos regulamentos aplicáveis.

É indispensável para a caracterização típica a comprovação do dano. Devem tais dispositivos ser interpretados à luz da nova definição legal prevista no art. 183 da Lei 9472 de16-7-1997 que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações e dá outras providências.

Acrescente-se ainda o Decreto 2615, de 3-6-1998 onde foi aprovado o Regulamento do Serviço de radiodifusão comunitária, de acordo com o art. 223 CF, a Lei 9.612 de 19-2-98, a Lei 4.117, de 27-8-62 modificada pelo Decreto-Lei 236/1997 e, ainda pelo Decreto 3.241 de 11/1/1999 onde foi promulgada a Convenção Interamericana sobre a Permissão Internacional de Radioamador, concluída em Montrouis, Haiti, em 8-6-1995.

É qualificado o crime quando o agente pratica a violação com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico, não se confundindo com o crime de abuso de autoridade previsto no art. 3º, da Lei 4.898/65.

A ação penal é sempre pública, condicionada a representação da vítima. Nos demais casos é obrigatória a representação da autoridade administrativa do Ministério Público Federal, sob pena de responsabilidade art. 45 da Lei 6.538 (in Considerações sobre crimes contra a liberdade; internet: http://www.giseleleite.prosaeverso.net/visualizar.php?idt=458345, captado em 18.08.2010, grifei).

Transcrevo acórdão sobre o tema:

 

HABEAS CORPUS – ESTRUTURA FORMAL DA SENTENÇA E DO ACÓRDÃO – OBSERVANCIA – ALEGAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO CRIMINOSA DE CARTA MISSIVA REMETIDA POR SENTENCIADO – UTILIZAÇÃO DE COPIAS XEROGRAFICAS NÃO AUTENTICADAS – PRETENDIDA ANALISE DA PROVA – PEDIDO INDEFERIDO. A estrutura formal da sentença deriva da fiel observância das regras inscritas no art. 381 do Código de Processo Penal. O ato sentencial que contem a exposição sucinta da acusação e da defesa e que indica os motivos em que se funda a decisão satisfaz, plenamente, as exigências impostas pela lei.

A eficácia probante das copias xerográficas resulta, em princípio, de sua formal autenticação por agente público competente (CPP, art. 232, parágrafo único). Peças reprográficas não autenticadas, desde que possível a aferição de sua legitimidade por outro meio idôneo, podem ser validamente utilizadas em juízo penal.

A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder a interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.

O reexame da prova produzida no processo penal condenatório não tem lugar na ação sumaríssima de habeas corpus (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 70.814-SP, min. Celso de Mello, DJU 24.06.1994, grifei).

O Código Penal capitula o crime de violação de sigilo:

Artigo 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º Somente se procede mediante representação.

§ 1º – A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada.

Celso Delmanto comenta (in Código Penal Comentado, Rio de Janeiro, Renovar, 1986, p. 260):

O elemento normativo ‘sem justa causa’ torna atípico o comportamento quando a causa é justa (ex.: defesa de interesse legítimo). ‘Segredo’ é o fato que deve ficar restrito ao conhecimento de uma ou de poucas pessoas; a necessidade do sigilo pode ser expressa ou implícita. ‘Possa produzir dano a outrem’, o que significa que deve existir a probabilidade de dano (moral ou econômico) para terceiro. (…)

Não pratica o delito do art. 153 do CP o advogado que junta documento médico confidencial para instruir ação judicial, pois, havendo justa causa, o fato é atípico (TACrSP, RHC 188.671, RT 515/354)” (grifei).

EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO. NOME COMPLETO E ENDEREÇO DO USUÁRIO TITULAR DO APARELHO CELULAR. OBJETIVO DE LOCALIZAR E IDENTIFICAR O SUPOSTO GENITOR DA FILHA DA AUTORA. MELHOR INTERESSE DO INFANTE. CABIMENTO. 1. Pretendendo a recorrente sejam fornecidos os dados cadastrais do usuário do terminal telefônico móvel, com o objetivo de localizar e identificar o suposto pai de seu filho, para que possa promover ação de investigação de paternidade, justifica-se o pedido de exibição de documentos. 2. Não se cogita de violação de sigilo telefônico, mas de identificação do titular da linha telefônica motivada por razão plenamente justificada, sendo que, acima dos interesses individuais do usuário da linha telefônica, prepondera o direito do infante de buscar o reconhecimento da sua paternidade. Recurso provido (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70029533825, des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julg. 28.04.2010, grifei).


PEDIDO DE CORREIÇÃO PARCIAL. INDEFERIMENTO DE PROVA. JUNTADA DE DOCUMENTO SIGILOSO. O simples indeferimento de prova não enseja a oposição de correição parcial. Ademais, muitos dos exames e laudos postulados pelo recorrente foram deferido pelo juízo, razão pela qual não há falar em dilação probatória injustificada. A determinação do juízo para juntada de uma carta remetida pela parte, alegadamente confidencial, não induz tumulto processual quando o conteúdo do dito documento traz alegações já postas nos autos pela própria parte remetente. JULGARAM IMPROCEDENTE (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Correição Parcial nº 70023310071, des. Rui Portanova, julg. 07.08.2008, grifei).

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. A ação monitória, segundo inteligência do art.1102A, é ação que se destina a cobrir de eficácia executiva prova escrita sem eficácia de título executivo; 2. Correspondência trocada entre credor e devedor, via internet, por emails, onde constam obrigações recíprocas, extensão das obrigações e valor da contraprestação dos honorários a serem pagos, configura documento apto e hábil a instruir procedimento monitório que, poderá, se for o caso, ser questionado quando da interposição de embargos. 3. Não pode o magistrado ex-officio extinguir o feito, de modo prematuro, sem fundamentar o seu entendimento e sem focar os documentos que instruíram o pedido. 4.Apelo provido para prosseguimento do feito monitório. APELAÇÃO PROVIDA (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70035528785, des. Niwton Carpes da Silva, julg. 14.07.2010, grifei).

Em contrapartida, haverá afronta à lei nos casos de divulgação dos dados constantes de documentos sigilosos fornecidos às Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s):

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – PODERES DE INVESTIGAÇÃO (CF, ART. 58, §3º) – LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS – LEGITIMIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL – POSSIBILIDADE DE A CPI ORDENAR, POR AUTORIDADE PRÓPRIA, A QUEBRA DOS SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO – NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO ATO DELIBERATIVO (…) A QUESTÃO DA DIVULGAÇÃO DOS DADOS RESERVADOS E O DEVER DE PRESERVAÇÃO DOS REGISTROS SIGILOSOS. A Comissão Parlamentar de Inquérito, embora disponha, ‘ex propria auctoritate’, de competência para ter acesso a dados reservados, não pode, agindo arbitrariamente, conferir indevida publicidade a registros sobre os quais incide a cláusula de reserva derivada do sigilo bancário, do sigilo fiscal e do sigilo telefônico. Com a transmissão das informações pertinentes aos dados reservados, transmite-se à Comissão Parlamentar de Inquérito – enquanto depositária desses elementos informativos -, a nota de confidencialidade relativa aos registros sigilosos. Constitui conduta altamente censurável – com todas as conseqüências jurídicas (inclusive aquelas de ordem penal) que dela possam resultar – a transgressão, por qualquer membro de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, do dever jurídico de respeitar e de preservar o sigilo concernente aos dados a ela transmitidos. Havendo justa causa – e achando-se configurada a necessidade de revelar os dados sigilosos, seja no relatório final dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (como razão justificadora da adoção de medidas a serem implementadas pelo Poder Público), seja para efeito das comunicações destinadas ao Ministério Público ou a outros órgãos do Poder Público, para os fins a que se refere o art. 58, § 3º, da Constituição, seja, ainda, por razões imperiosas ditadas pelo interesse social – a divulgação do segredo, precisamente porque legitimada pelos fins que a motivaram, não configurará situação de ilicitude, muito embora traduza providência revestida de absoluto grau de excepcionalidade. (…) (Supremo Tribunal Federal, Mandado de Segurança nº 23.452-RJ, min. Celso de Mello, DJU 12.05.2000).

Verifica-se, portanto, no campo do direito processual, que o documento particular, enquanto “coisa representativa de ideias ou fatos” (apud Amaral Santos supracitado), possui valor probante nos processos judiciais e administrativos em geral. A mais autorizada doutrina, corroborada pelos tribunais, sustenta em relação aos crimes praticados contra inviolabilidade de correspondência e os de violação de sigilo: a) somente se configuram com a comprovação de dano, b) não se caracterizam quando a causa da violação ou divulgação for justa, c) a tutela penal colimada não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas e d) acima dos interesses individuais do titular do direito à inviolabilidade ou sigilo, prepondera o interesse público em conhecer o conteúdo.

Ainda que sigilosos, portanto, o conteúdo dos documentos particulares — cartas inclusive — poderá ser divulgado em razão de interesse público. Consoante José Cretella Júnior, interesse público é “atividade de tal modo relevante que o Estado a titulariza, incluindo-a entre os fins que deve, necessária e precipuamente, perseguir. É o próprio interesse coletivo colocado pelo Estado entre seus próprios interesses, assumindo-os sob regime jurídico de direito público, exorbitante e derrogatório do direito comum. A finalidade de toda e qualquer Administração é o interesse público” (in Dicionário de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 4ª ed., 1998, p.266, grifos do autor).

O argentino Héctor Jorge Escola (El Interés Público Como Fundamento Del Derecho Administrativo, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1989, p. 238) sustenta que o interesse passa a ser público quando não é exclusivo ou próprio de uma ou poucas pessoas, mas quando nele participam ou coincidem um número tal de pessoas, componentes de uma comunidade determinada, que se pode chegar a identificá-lo como de todo o grupo.

Fora de dúvida que o conteúdo histórico de documento, público ou particular, subsume-se à concepção de interesse público. Assim estabeleceu a Constituição Federal de 1988:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º – O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º – Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º – A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º – Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º – Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (grifei).

Sobre tombamento, expalnou Maria Sylvia Zanella Di Pietro (in Direito Administrativo, São Paulo, Ed. Atlas, 8ª ed., 1997, pp. 114-115):

O tombamento é forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordinária, ‘o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (art. 1º, do Decreto-lei nº 25, de 30.11.1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional). (…)


Pelo tombamento, o poder público protege determinados bens, que são considerados de valor histórico ou artístico, determinando a sua inscrição nos chamados Livros do Tombo, para fins de sua sujeição a restrições parciais, em decorrência desta medida, o bem, ainda que pertencente a particular, passa a ser considerado bem de interesse público, daí as restrições a que se sujeita o seu titular. (…)

O tombamento pode atingir bens de qualquer natureza: móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, públicos ou privados (grifos no original).

Pesquisei jurisprudência:

ADMINISTRATIVO – TOMBAMENTO – COMPETÊNCIA MUNICIPAL. 1. A Constituição Federal de 88 outorga a todas as pessoas jurídicas de Direito Público a competência para o tombamento de bens de valor histórico e artístico nacional. 2. Tombar significa preservar, acautelar, preservar, sem que importe o ato em transferência da propriedade, como ocorre na desapropriação. 3. O Município, por competência constitucional comum – art. 23, III –, deve proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. 4. Como o tombamento não implica em transferência da propriedade, inexiste a limitação constante no art. 1º, § 2º, do DL 3.365/1941, que proíbe o Município de  desapropriar bem do Estado. 5. Recurso improvido (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial em Mandado de Segurança nº 18.952-RJ, minª Eliana Calmon, DJU 30.05.2005, grifei).

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, um dos maiores cultores do Direito Administrativo em nosso país, as pedras angulares do regime jurídico-administrativo se delineiam em função de dois princípios: 1) supremacia do interesse público e 2) indisponibilidade do interesse público. Em nome do primado do interesse público, ampliaram-se as atividades assumidas pelo Estado, para atender às necessidades coletivas, com a conseqüente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com o poder de polícia estatal, que deixou de impor obrigações positivas e ampliou seu campo de atuação. Passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. As Constituições, enfim, passaram a conter preceitos novos, reveladores da crescente interferência do Estado na vida econômica e no direito de propriedade. Concluiu o professor paulista:

Todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público (in Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 19ª ed., 2005, pp. 43 e segs.).

Para arrematar, ainda que sigilosos documentos privados — cartas e congêneres — não caracterizará ato ilícito a sua divulgação, se contiver comprovado interesse histórico. O interesse histórico, inserido na categoria interesse público, deverá ser analisado caso a caso.

Recordo a lição do jurista mineiro Sálvio de Figueiredo Teixeira, também aplicável à apreciação, pelos magistrados, de questões atinentes ao conteúdo de interesse público de determinado documento:

Ao juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como admiravelmente adverte o art. 5º, LICC, incumbe dar-lhe exegese construtiva e valorativa, que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido que ela deve refletir não só os valores que a inspiraram, mas também as transformações culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 162.998-PR, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diário do Judiciário da União, 01.06.1998).

Os operadores jurídicos não olvidarão jamais a árdua tarefa dos historiadores, extraída das palavras de Boris Fausto (in História do Brasil, São Paulo, Edusp, 1994, p. 13):

Sem ignorar a complexidade do processo histórico, a História é uma disciplina acessível a pessoas com diferentes graus de conhecimento. Mais do que isso, é uma disciplina vital para a formação da cidadania. Não chega a ser cidadão quem não consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do conhecimento da vivência das gerações passadas.

Qualquer estudo histórico, mesmo uma monografia sobre um assunto bastante delimitado, pressupõe um recorte do passado, feito pelo historiador, a partir de suas concepções e da interpretação de dados que conseguiu reunir. A própria seleção de dados tem muito a ver com as concepções do pesquisador.

A História — dizia Cícero, notável político e tribuno romano — “é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida” (Cícero, O Orador, apud cf. Paulo Rónai, Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1985, p. 437).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 19ª ed., 2005.

CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 4ª ed., 1998.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1986.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil São Paulo: Saraiva, vol. 1, 19ª ed., 2002.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, 8ª ed., 1997.

ESCOLA, Héctor Jorge. El Interés Público Como Fundamento Del Derecho Administrativo. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1989.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994.

LEITE, Gisele. Considerações sobre crimes contra a liberdade; internet http://www.giseleleite.prosaeverso.net/visualizar.php?idt=458345, captado em 18.08.2010.

RÓNAI, Paulo. Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1985.

SACRAMENTO, José Antônio de Ávila. A quem pertencem as epístolas?, Jornal de Minas, São João del-Rei-MG,  edição de 13 a 19.08.2010, p. 2.

SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil Rio de Janeiro: Forense, vol. IV, 7ª ed., 1994.

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