Solução de massa

Não adianta juiz fazer trabalho artesanal

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31 de outubro de 2010, 6h10

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Bruno Terra - Spacca - Spacca

“Não adianta juiz fazer trabalho artesanal, enquanto os problemas surgem em linha de montagem. O Código de Processo faz do juiz um artesão. E é o Código que tem de permitir que a solução venha em linha de montagem.” A opinião é do presidente da Associação dos Magistrados Mineiros, juiz Bruno Terra. Sem essa mudança, afirma, alterações no método de trabalho, na estrutura física, no número de servidores, não serão suficientes para resolver os problemas do Judiciário.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, na sede da Amagis, em Belo Horizonte, no início de outubro, o juiz afirmou que é preciso repensar recursos que não são usados com a finalidade para o qual foram criados. Citou os Embargos de Declaração, criados para esclarecer eventuais omissões na decisão. “Às vezes, o advogado não quer vencer o adversário ao apresentar o recurso, mas é uma estratégia para ganhar tempo”, exemplifica.

“Nós temos que estar atentos à realidade dos fatos, não para suprimir recursos necessários, mas para impedir que o recurso necessário seja utilizado para finalidades diversas daquela para qual prevista. Isso também tem que ser pensado”, diz ao comentar a reforma do Código de Processo Civil em andamento no Congresso Nacional. Terra também mostra preocupação com o instituto da Súmula Vinculante. Para ele, é preciso tomar cuidado e lembrar que o convencimento dos juízes muda diante de novas realidades: “o tempo, frequentemente, faz com que convencimentos passados sejam superados”.

Bruno Terra comanda a associação de juízes em um estado onde há 296 comarcas e 829 varas. Em Minas, são 1.645 cargos de juízes, sendo 145 desembargadores no tribunal. Para o exercício de 2010, o orçamento aprovado pelo Legislativo foi de R$ 2,6 bilhões. De acordo com o levantamento Justiça em Números, em 2009, a primeira instância recebeu quase 700 mil novos processos e tinha 1,5 milhão pendente. Na segunda, foram pouco mais de 162 mil processos novos, fechando com 143 mil pendentes.

O presidente da Amagis também chama a atenção para as prerrogativas dos juízes. “Não há estado de direito com juízes terceirizados ou contratados sem garantias. A garantia não é de quem exerce essas funções, mas para que haja o correto exercício da cidadania”, diz.

O juiz defendeu mudanças na Lei Orgânica da Magistratura (Loman), disse que o quinto constitucional tem de ser repensado, não olhando para o passado e para quem entrou no tribunal, mas para o futuro. Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, diz, o argumento para a manutenção do quinto caiu.

Natural de Belo Horizonte, Bruno Terra se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na turma de dezembro de 1985. “Fui advogado, delegado de Polícia, promotor de Justiça e sou juiz de Direito, empossado em 20 de novembro de 1990. Portanto, completando 20 anos como juiz”, disse. Terra já atuou nas comarcas de Espinosa, no extremo norte de Minas, e de Raul Soares, na Zona da Mata. Também foi titular em Januária e Montes Claros. Desde o final de 2006 que atua em Belo Horizonte.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são as prioridades da Justiça de Minas?
Bruno Terra — A Justiça tem os interesses próprios, os tribunais têm os interesses próprios e os magistrados têm interesses de ambos. Nem sempre o interesse do tribunal é o mesmo de seus integrantes. Por exemplo, a presidência da corte pode querer investir na construção e reparação de fóruns, mas a magistratura pode ter interesse na quitação de direitos que não foram pagos em época própria. Mas o que vejo de interesse principal da magistratura e do Judiciário, não só mineiro, mas nacional, é um novo Estatuto da Magistratura, em substituição à Lei Complementar 35 de 1979.

ConJur — Por que o senhor defende a aposentadoria da Loman?
Bruno Terra — Não só porque a Loman foi concebida em um regime de exceção, em condições de absoluta falta de legitimidade, mas também porque ela é, principiologicamente, contrastante com uma Constituição democrática. Um exemplo é o dispositivo que prevê que somente os desembargadores mais antigos poderão concorrer à presidência do tribunal. Por sorte, nós temos hoje um desembargador que é dos mais antigos e é qualificado para administração. Mas isso nem sempre será verdade. É antidemocrático impedir o acesso dos iguais para a mesma chance de postulação. Um novo Estatuto da Magistratura é prioridade absoluta, e já com um atraso de pelo menos 20 anos. As demais carreiras jurídicas têm os seus estatutos pós-Constituição de 1988, como o Estatuto da OAB, a Lei Orgânica do Ministério Público, a Lei Orgânica da Defensoria Pública. E somente nós, magistrados, que temos o dever jurídico constitucional de assegurar à cidadania todos os benefícios da democracia, temos que conviver, nas relações internas, com uma ordem antidemocrática. Há outras questões que também são prioridade, como é o caso do Conselho Nacional de Justiça, que tem seus parâmetros fixados na Constituição, mas não têm limites bem claros.

ConJur — Como esses limites devem ser fixados?
Bruno Terra — O CNJ está em funcionamento há mais de cinco anos, já passou da hora de ter seus limites democraticamente estabelecidos em lei. Hoje, é o próprio Conselho que fixa seus limites. E, quando, em um caso concreto, alguém entende que houve excesso do Conselho, é necessário ingressar com um Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal para que seja analisado o limite. Como o Conselho Nacional de Justiça é renovável bienalmente, os nossos conselheiros, pela falta de legislação, podem cometer os mesmos equívocos e excessos de seus antecessores. E, novamente, entra-se com Mandado de Segurança, com pedido de liminar, no Supremo.

ConJur — Na maior parte dos estados, uma das principais reclamações gira em torno do orçamento do Judiciário. Em Minas também é assim?
Bruno Terra — A Lei de Responsabilidade Fiscal foi concebida há quase 15 anos. O Judiciário mudou e aumentou muito de lá para cá. Há a necessidade de investimento em tecnologia, não só para reduzir o tempo de tramitação dos processos, mas também para diminuir o seu custo. Os dados usados para determinar o percentual do orçamento do Judiciário, segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, continuam correspondendo à realidade hoje? Há estados — não é o caso de Minas Gerais — que concedem isenção fiscal para grandes empreendimentos, e assim desfalcam a arrecadação. Isso também reflete no valor a ser destinado ao Poder Judiciário. Há uma diminuição no valor de repasse, por um ato no qual ele não pode ter qualquer influência. Isso também é uma questão a ser revista.

ConJur — E quando o orçamento reservado ao Judiciário não é suficiente?
Bruno Terra — É possível apresentar propostas de orçamento suplementar. Mas há situações externas que podem impedir a aprovação. Em 2007, por exemplo, foi feito o orçamento de 2008. Em junho de 2008, foi apresentada uma proposta suplementar para 2009. Porém, no segundo semestre de 2008, veio a bolha econômica dos Estados Unidos e o ritmo do crescimento industrial contraiu. As receitas dos estados, em 2008, sofreram pouco impacto, mas, em 2009, houve um impacto efetivo. O resultado foi que a previsão de arrecadação foi uma e a efetiva foi menor do que o previsto.

ConJur — A relação entre Judiciário e Executivo é harmônica?
Bruno Terra — Sim. Existe uma boa relação. Tanto do Judiciário com o Executivo e o Legislativo, como da própria Amagis com a direção do tribunal, seu presidente, e com a Assembleia Legislativa e o Poder Executivo estadual.

ConJur — Como o senhor avalia a estrutura física do Judiciário mineiro?
Bruno Terra — A quantidade de juízes e desembargadores é possível para o momento, mas não é suficiente. Nós temos uma grande quantidade de prédios do Poder Judiciário espalhado pelo estado inteiro, que demandam manutenção e precisamos da construção de novos fóruns, como no caso de Contagem. O fórum, dividido em cinco prédios, foi concebido em uma época em que a comarca era muito menor. É preciso um fórum novo. Em Betim, acontece a mesma coisa. São investimentos necessários. Também existe a necessidade de investimento muito sério em tecnologia de informação, especificamente, para virtualização do processo. Mas não basta investir na tecnologia, também precisa investir na capacitação do servidor e do magistrado, já que a rotina muda.

ConJur — Enquanto a estrutura da Justiça Estadual não é ampliada, reestruturar o trabalho do juiz ajuda?
Bruno Terra — Não basta que os juízes trabalhem mais, assim como não basta fazer mudanças nos métodos de trabalho enquanto a legislação processual tratar como conflito individual aquilo que é conflito de massa. Ou seja, não adianta o juiz fazer trabalho artesanal enquanto os problemas surgirem em linha de montagem. O Código de Processo faz do juiz um artesão. E é o Código que tem de permitir que a solução venha em linha de montagem. Enquanto isso não acontecer, não adianta colocar mais varas, mais pessoal, mais tempo de dedicação. Não vai dar conta. O que nós precisamos é de uma alteração processual muito significativa. Evidentemente, também precisamos da preparação dos profissionais, não só dos juízes, mas de advogados, defensores públicos, de todos os atores, para que todos estejam qualificados.

ConJur — O senhor acredita que as propostas para o novo CPC, que está sendo gerado no Congresso, possa dar uma resposta?
Bruno Terra — A coletivização das demandas traz muita esperança. Vamos ver como será na prática. Mas temos que pensar em mudanças. Um exemplo muito claro é o advogado ingressar com Embargos de Declaração contra qualquer decisão apenas para ganhar tempo. Às vezes, ele não está querendo vencer o adversário, mas é uma estratégia para ganhar mais tempo, porque tem os seus problemas no escritório. Não ignoro isso. O recurso é feito para uma finalidade e está sendo usado para outra. Nós temos que estar atentos à realidade dos fatos. Não para suprimir recursos necessários, mas para impedir que o recurso necessário seja usado para finalidades diversas daquela para qual foi previsto. Isso também tem que ser pensado.

ConJur — E como os juízes mineiros encaram instrumentos como a Súmula Vinculante e Repercussão Geral?
Bruno Terra — A Súmula Vinculante tem um problema que é o engessamento do Direito. A gente tem que tomar cuidado com isso, porque toda decisão parte de um nível de conhecimento, e o tempo frequentemente faz com que convencimentos passados sejam superados. Vamos imaginar que houvesse uma Súmula Vinculante, em 1920, que impedisse deferimento de alimentos ao feto. Mas, nos anos 1970, começou a se deferir direitos e alimentos ao nascituro. Uma decisão de 1920 poderia impedir essa decisão de 1970. Nós teríamos um atraso de décadas no desenvolvimento do Direito Civil e Constitucional brasileiro. A Súmula Vinculante me preocupa muito, principalmente, por conta desse tipo de reflexo.

ConJur — Outro assunto bastante polêmico em alguns tribunais diz respeito ao quinto constitucional. O STJ e o Tribunal de Justiça paulista já rejeitaram listas da OAB. Como os juízes de Minas avaliam o quinto?
Bruno Terra — Há duas questões candentes, que estão sendo discutidas no mesmo momento: quinto e a aposentadoria aos 75 anos. Não vou discutir as circunstâncias e nem as justificativas da época em que o quinto foi criado, porque isso todo mundo já sabe. O que vamos discutir é o que se usa como argumento, hoje, para justificar o quinto. Tenho muito bons amigos que vieram do quinto e não tenho nenhum questionamento sobre sua investidura, porque todos entraram conforme a regra do jogo. Não tenho nenhum questionamento sobre quem entrou, quem está, quem se aposentou. A questão que temos que discutir é se essa regra deve continuar para o futuro. O que normalmente se diz é que o quinto traz arejamento, novas ideias para dentro dos tribunais. Historicamente, se de fato tivesse havido o chamado arejamento, não haveria razão para a criação do Conselho Nacional de Justiça. Não estou colocando em questão as razões de criação do CNJ. O quinto constitucional continua existindo, mas o seu argumento de sustentação se extinguiu. A sociedade civil, via Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Conselho Nacional de Justiça, já interfere na administração de todo o Judiciário, seja estadual ou federal.

ConJur — E a questão do aumento da idade para aposentadoria compulsória, que hoje é de 70 anos?
Bruno Terra — Nós não temos condições de aceitar a regra dos 75 anos. É muito comum os magistrados permanecerem 30, 40 ou mais anos. O processo de formação do magistrado é lento e não basta ingressar, é preciso ter a vivência da realidade do Judiciário. Mas o processo de renovação da carreira também é muito lento. Eu, em vias de completar 70 anos — se viver até lá e espero viver — terei 42 anos e três meses só de magistratura. Se houver mais cinco anos, aos 75 anos, terei 47 anos e três meses. Isso significa que o processo de renovação dos quadros da magistratura vai se tornar ainda mais grave. O ser humano, hoje, tem condições de vida muito melhores do que há 50 anos. Uma pessoa de 70 consegue trabalhar, e com qualidade. Mas, em uma sociedade que se renova na velocidade da nossa, as pessoas de 70 anos conseguem acompanhar os novos métodos do trabalho? Será que nós precisamos disso? Eu vejo que não.

ConJur — E qual a sua posição em relação às regras de remoção e promoção de magistrados? O critério da antiguidade, por exemplo, deve continuar?
Bruno Terra — Se houvesse uma régua que medisse méritos subjetivos com inteira imparcialidade, e os méritos subjetivos vão desde a qualificação, nível de conhecimento, desempenho e os atributos morais, poderíamos ter só provimentos de remoção ou promoção por merecimento. O problema é que essa régua não existe. Hoje, a magistratura de primeira instância busca critérios objetivos, ou seja, subtrair o máximo da subjetividade, já que, presumivelmente, a partir do ingresso todos são iguais. E, se todos são iguais, o que vai autorizar um a ser promovido com menos tempo de carreira do que o outro? Nós temos um exemplo em Minas Gerais muito interessante. Alfredo Araujo Lopes da Costa foi magistrado em Minas Gerais na primeira metade do século XX e um pouquinho no terceiro quarto do século seguinte. E ele passou, por força do regime de exceção getulista, mais de uma década sem poder se movimentar na carreira. Milton Campos quando governador — porque na época os provimentos eram do Poder Executivo —, restaurada a democracia para corrigir os males da franca injustiça, promoveu Lopes da Costa de uma comarca do interior direto para o tribunal. Lopes da Costa, além disso, fundou a escola, que hoje é a faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Esse é um exemplo do extraordinário: um homem com todos esses atributos e que ainda foi barrado na carreira por um regime de exceção. Quantas vezes isso aconteceu na história?

ConJur — Quantas?
Bruno Terra — Não tenho de memória outros exemplos para justificar uma coisa como essa. Ele foi promovido aos 68 anos de idade. Não passou dois anos no tribunal e se aposentou. Então, existe um problema muito sério. Se todos são presumivelmente iguais, somente distinções objetivas devem ser utilizadas. Se o mais antigo estiver respondendo a um processo administrativo que pode levá-lo a demissão, existe um motivo objetivo que pode afastá-lo da promoção. Outra hipótese: o mais antigo não quer ser promovido, então, não será. Tudo também passa por uma estruturação de carreira. Hoje nós temos o juiz substituto, que é cargo inicial, equivalente para o juiz de carreira o juiz de primeira entrância. Temos a segunda entrância. Temos a entrância especial e temos o tribunal. Enquanto nós tivermos a carreira estruturada em tantos degraus, teremos conflitos. Temos três oportunidades de desigualação. Se fosse como na Justiça Federal, com substituto, titular e tribunal, nós já diminuiríamos significativamente as possibilidades de desigualação.

ConJur — A ministra Eliana Calmon disse, em entrevista à revista Veja, das questões políticas que envolvem os tribunais. A promoção por merecimento tem ingrediente político?
Bruno Terra — As entrevistas da ministra, aparentemente, colocaram a negociação da carreira como regra geral. Definitivamente, não é. Mas nós temos o reclame da objetivação dos critérios de promoção. Isso é o importante. É claro que quando ocorre uma carreira meteórica, e são raras em Minas Gerais, há muita discussão. É exatamente isso que nos alerta para a necessidade de tratar igualmente os iguais. Eu creio que isso vai aos poucos se apagando, até porque foi estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça que para concorrer ao merecimento tem que estar entre os 20% mais antigos daquela entrância. Se não houver ninguém, os 20% subsequentes. Isso já trouxe um impedimento de quem se encontra muito recente na carreira.

ConJur — No lançamento do Anuário de Minas, o senhor falou da aproximação da imprensa com o Judiciário. Em Minas, temos o caso recente do goleiro Bruno [acusado pelo desaparecimento de Eliza Samudio], com repercussão nacional. Os juízes estão preparados para lidar com a pressão que um caso como esse acarreta?
Bruno Terra — Os juízes estão preparados, não decidem por pressão. No caso Bruno, conheço os magistrados e eles são absolutamente tranquilos. A grande questão é que não existe um estreitamento da relação entre a magistratura e a imprensa, e vice-versa. O mundo jurídico tem um vocabulário que as pessoas podem não entender muito bem. Só para ilustrar, em uma dada comarca, julguei um caso em que o autor perdeu e o réu ganhou. O advogado chamou o réu em seu escritório e disse que o caso foi julgado improcedente. O réu, que era um homem matuto, não entendeu nada. Achou que a decisão tinha sido contra ele e se revoltou; pegou uma cadeira e arremessou contra o advogado, depois saiu vociferando até o fórum. No meu gabinete, puxou uma faca dizendo que ia me matar. Foi uma confusão sem tamanho. Ele não entendeu o que era o tal do improcedente. Só para mostrar como a linguagem do meio forense não é suficientemente entendida por terceiros. E não sendo suficientemente entendida pode gerar problemas. O Judiciário e a imprensa ainda não se conhecem suficientemente. Muitas vezes, o juiz se manifesta de uma maneira e o jornalista entende de uma forma diferente. Nós temos poucos jornalistas neste país habilitados a fazer esse diálogo; poucos entendem efetivamente o Poder Judiciário. E poucos magistrados, por consequência, entendem os jornalistas. É necessário um estreitamento nesse mútuo conhecimento para que essa diversidade de linguagens não se transforme em divergência de mensagens.

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