Realidade e ficção

Sem segurança não adianta postular justiça

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  • José Rollemberg Leite Neto

    advogado mestre em Direito pela Universidade Gama Filho sócio do Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados membro da Comissão de Reforma do Código Eleitoral do Senado.

27 de outubro de 2010, 7h21

As estórias são conhecidas. Em O Processo, Josef K. é preso e mantido encarcerado por razões que desconhece. Nada faz sentido. Sequer pode se declarar inocente, porque ignora a acusação. É Kafka genialíssimo. Em O Estrangeiro, Albert Camus, de novo, mostra o quanto a Justiça pode ser non sense. No fundo, no fundo, Meursault é condenado por não chorar. Por não prantear a mãe. Não por homicídio. Não pela morte do árabe.

Quem desconsidera o absurdo acaba por relevar uma importante variável dos julgamentos. O imprevisível cerca a jurisdição. A álea é uma magistrada invisível. E poderosa.

A semana passada trouxe alguns exemplos. O Tribunal Superior Eleitoral julgou dois pedidos de direito de resposta. Um de Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, que pedia para ter acesso ao programa da coligação Para o Brasil seguir mudando. Afirmava haver sido ofendido no guia eleitoral dessa coligação. O outro pedido foi de José Dirceu de Oliveira e Silva, o Zé Dirceu. Ele alegava ser agredido pela propaganda da coligação O Brasil pode mais.

O TSE considerou que os pedidos foram feitos por partes ilegítimas, por terceiros estranhos às eleições. Que, apesar de poderem ter sido ofendidos, não poderiam reclamar resposta no horário eleitoral. Este é pago pelo contribuinte, não se prestando a respostas de particulares, alheios ao processo eleitoral. Disse, finalmente, que se o terceiro quiser, que pleiteie a resposta nas vias judiciais comuns.

Há notas a fazer. A Lei Eleitoral, embora mal redigida, explicitamente refere os terceiros como possíveis ofendidos na propaganda eleitoral no rádio e na televisão. A Resolução 23.191, editada pelo TSE para regência dos programas dos candidatos, diz que é possível aos estranhos às eleições o acesso ao direito de resposta. A jurisprudência sempre foi nesse sentido. A Constituição Federal, acima de tudo isso, também assinala que a resposta é uma prerrogativa de quem foi ofendido.

O TSE enveredou pelo caminho da virada jurisprudencial. Interpretou a cabeça do artigo 58 da Lei Eleitoral (que não menciona os terceiros como legitimados a pedir direito de resposta) em dissonância com o que é dito pelo seu parágrafo 3º, inciso III, alínea f (que a eles alude). Negando a possibilidade de resposta aos terceiros, a parte final deste comando normativo ficou isolada. Se havia um dogma no sentido de que a lei não possui palavras inúteis, ele acabou de ruir.

Além disso, cabe anotar que não existe, para o terceiro ofendido pela propaganda eleitoral, o caminho judicial comum. O que havia, era previsto na Lei de Imprensa. Ela foi declarada não recepcionada pela atual ordem constitucional. Foi aniquilada pelo Supremo Tribunal Federal. Está ausente, no nosso sistema jurídico, a regulamentação dessa relevantíssima faculdade, portanto.

A Justiça disse: procurem os seus direitos em outro lugar. Mas o tal lugar não há. Eis o ponto. Os terceiros foram citados no horário eleitoral gratuito. Não foram postos lá por querer. Mas não têm o direito de contraditar as acusações que receberam em cadeia nacional de rádio e televisão. É surreal.

É evidente que os magistrados podem mudar os seus pontos de vista. Que uma Corte pode girar o seu entendimento. Faz parte da liberdade de convicção judicial e é saudável que os julgadores disponham dessa margem de atuação para adaptar a realidade aos condicionamentos normativos. Para ajustar a lei, que sempre é pretérita, ao tempo presente, onde os fatos e os julgamentos moram. A jurisprudência, tal qual a dama do Rigoletto, è mobile. O problema é: ela deve mover-se quando, como e por quê?

Cada vez que uma diretriz jurisprudencial se movimenta, que um texto normativo, ainda que de resolução, é desconsiderado, o alicerce do ordenamento jurídico, a segurança, cede. E prédios normativos não se sustentam sobre um chão movediço. Sem segurança não adianta postular justiça.

Semanas atrás, a revista Veja foi punida com a ordem de publicação de um direito de resposta. Ela é alheia ao processo eleitoral. Pelo menos, formalmente. Qual Paulo Preto e Zé Dirceu. Pode ser ré. Não pode ser autora. Eles também não. Podem ser agredidos. Não podem se defender. Podem ser processados. Não podem processar. Camus e Kafka teriam rico material por aqui. E não fariam ficção.

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